ESP, uma aberração

ESP, uma aberração

Escola sem partido: breves notas sobre uma aberração

SEG, 28/08/2017    do Coletivo Transforma MP

Escola sem partido: breves notas sobre uma aberração

por Thiago Rodrigues Cardin

Dentro da onda conservadora à qual assistimos nos últimos anos, um dos projetos que ganhou força – e com alguma frequência tem sido aprovado em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas – é o chamado “escola sem partido”, que pregaria um suposto “ensino livre de doutrinação ideológica e moral”.

A essa altura, em especial após o deferimento pelo Ministro Luís Roberto Barroso de medida liminar que suspendeu uma lei de Alagoas baseada no “escola sem partido” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.537/AL), esperávamos que o Supremo Tribunal Federal já houvesse sepultado de uma vez por todas a discussão sobre o tema.

Todavia, como ainda não sobreveio o julgamento de mérito em referida ação, entendemos pertinente traçar algumas reflexões sobre o “escola sem partido”, especialmente considerando que professores e instituições de ensino continuam recebendo “notificações” e intimidações por parte dos defensores do projeto - isso sem falar de Vereadores que invadem escolas públicas em busca de “doutrinação ideológica”.

Antes de mais nada, importante ressaltar a manifesta inconstitucionalidade dos projetos inspirados no “escola sem partido”, seja por ofensa aos princípios da liberdade de ensino, do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e da gestão democrática do ensino (artigo 206, incisos II, III e VI da Constituição da República), seja pela violação de diversas outras garantias constitucionais, como, por exemplo, a liberdade de expressão. Nesse sentido, segue ementa do parecer ofertado pela Procuradoria-Geral da República nos autos da já mencionada ADI n.º 5.537:

“1. Usurpam iniciativa legislativa do chefe do Poder Executivo os arts. 2º a 7º e anexos da Lei 7.800/2016, do Estado de Alagoas, originários de iniciativa parlamentar, porquanto inovam na organização administrativa estadual e no regime jurídico de servidores públicos, em afronta ao art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição da República.

  1. Invadem a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da CR) e sobre normas gerais de ensino e educação (art. 24, IX) dispositivos de lei estadual que disponham sobre princípios das atividades de ensino.

  2. Dispositivos de lei estadual que limitem o conteúdo da manifestação docente no ambiente escolar, em razão de hipotética contrariedade a convicções morais, religiosas, políticas ou ideológicas de alunos, pais e responsáveis, não se compatibilizam com os princípios constitucionais que conformam a educação nacional, os quais determinam liberdade de ensinar e divulgar cultura, pensamento, arte, saberes, pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e gestão democrática do ensino (CR, art. 206, II, III e VI).

  3. Vedação genérica e vaga à “doutrinação” política e ideológica, à emissão de opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas e à contrariedade a convicções morais, religiosas ou ideológicas de pais ou responsáveis constitui restrição desproporcional à liberdade de expressão docente, a qual se revela excessiva e desnecessária para tutelar a liberdade de consciência de alunos.

  4. Parecer por procedência do pedido”.

Em abril de 2017, também o Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) demonstrou sua preocupação com o tema, recomendando ao governo brasileiro a adoção de atitudes para conduzir uma revisão dos projetos de lei que tratam do “escola sem partido”. Segundo a ONU, tais projetos poderiam colidir com a base dos direitos humanos internacionais e a Constituição Federal de 1988, que protegem o direito à opinião, sem interferências, e o direito a buscar, receber e partilhar informações e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras ou meios. Além disso, o “escola sem partido” poderia retirar das salas de aula discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como diversidade e direitos das minorias. [1]

Não obstante o brilhantismo do parecer da Procuradoria-Geral da República e a pertinência da recomendação da ONU, entendemos que a melhor definição para o “escola sem partido” ainda é aquela dada por Leandro Karnal no programa Roda Viva, em julho de 2016: [2]

“É uma asneira sem tamanho, uma bobagem conservadora, de gente que não é formada na área e que decide ter uma ideia absurda, que é substituir o que eles imaginam que seja uma ideologia por outra ideologia (…). É uma crença fantasiosa de uma direita delirante e absurdamente estúpida de que a escola forme a cabeça das pessoas e que esses jovens saem líderes sindicais. Os jovens têm sua própria opinião. Os jovens não são massa de manobra (...). Toda a opinião é política, inclusive a ‘escola sem partido’ (...). A demonização da política é a pior herança da ditadura militar, que além de matar seres humanos, ainda provocou na educação um dano que vai se arrastar por mais algumas décadas”.

O que os defensores do “escola sem partido” parecem não compreender (ou intencionalmente fingem ignorar) é a absoluta impossibilidade de um ensino neutro. Não se deve confundir a obrigação de apresentar aos alunos as diversas concepções sobre determinado tema (pluralidade de ideias) com um ensino acrítico ou “sem partido”. Da mesma forma, o fato de os pais professarem determinada ideologia ou convicção moral não permite que esta seja imposta a seus filhos, excluindo das salas de aula discussões que possam contrariar sua visão de mundo.

Como nos lembra Guilherme Perez Cabral em seu artigo “As escolas livres da ‘escola livre’” [3], o Estado brasileiro e a Constituição não são neutros, tomando partido o tempo todo – por exemplo, quando proclamam os valores da democracia, da liberdade, do pluralismo e da dignidade. Assim, essa seria a complexa tarefa da escola: “ensinar no ambiente da pluralidade, reconhecendo que não há neutralidade”.

Para exemplificar o que afirmamos acima, em relação à impossibilidade de um ensino neutro, segue trecho de reportagem (“Escola Sem Partido – Uma Demonstração Prática”) publicada no site “Instituto Liberal” e que supostamente serviria justamente para demonstrar as virtudes do projeto “escola sem partido” [4]:

“Professor de Física e Matemática, Wilson Delfino dos Santos Júnior tem feito o contraponto à cartilha de Paulo Freire na Escola Estadual de Ensino Médio Barão do Amazonas. Diante do olhar perplexo de alunos acostumados a ouvir sempre as mesmas abordagens com viés de Esquerda, ele procura demonstrar, no transcurso de suas aulas, conceitos básicos de microeconomia, de forma a estimular o empreendedorismo (e mudar a imagem dos empresários de ‘capitalistas exploradores’ para pessoas que geram valor para a sociedade), explicar como são formados os preços no mercado, e até mesmo elucidar conceitos como ‘utilidade marginal’ citando, inclusive, economistas da Escola Austríaca.

(...)

A melhor forma de contra argumentar as ruidosas reações da maioria dos professores, os quais alegam que ‘seria impossível’ cumprir o que propõe o ESP, sob o pretexto de que a lei representaria uma mordaça, é demonstrar, na prática, como seriam as aulas no futuro: sem alunos lobotomizados por um único discurso, e usufruindo da chance de analisar vários pontos de vista e eleger qual deles norteará sua vida.

Alguns deles, aliás, já fascinados pela didática do Sr Wilson, fazem parte do time de futebol ‘Opressores’, que disputa o torneio do colégio, cujo uniforme ostenta a figura de Ludwig Mon (SIC) Mises, e estampa o nome de pessoas que contribuíram com a disseminação dos ideais liberais e conservadores no Brasil e no mundo, como Friedrich Hayek e Rodrigo Constantino. Já estão nas quartas-de-final. Go, oppressors!”.

A reportagem acima possui vários pontos que, por si só, mereceriam uma análise aprofundada. Mas o que mais choca é o fato de quem a escreveu aparentemente (propositalmente?) não perceber que, na defesa da tese de empresários como meros geradores de riquezas e de personalidades como Mises e Hayek, há uma absoluta tomada de partido. O maior absurdo é os adeptos do “escola sem partido” aparentemente (propositalmente?) não enxergarem que, no fundo, apenas pretendem silenciar o ensino de uma visão com a qual não concordam para impor sua própria ideologia (quase sempre “liberal” ou “conservadora”).

Aliás, analisando as circunstâncias nas quais se levantam as vozes defensoras do “escola sem partido”, percebe-se que, na grande maioria das vezes, estão relacionadas à intolerância com ideologias consideradas “progressistas” ou com discussões envolvendo direitos de minorias. Além de alguns surtos falso-moralistas, como o que buscou impedir a divulgação de um livro didático sobre educação sexual com ilustração de órgãos genitais [5] (e isso em um país onde uma em cada cinco crianças nascidas é filha de adolescente), o que no fundo o “escola sem partido” repudia são aulas nas quais se discutam igualdade social, respeito às diversas orientações sexuais e emancipação feminina.

A grande ironia é que, ainda que realmente professores estivessem realizando uma “doutrinação comunista, gayzista e feminazi”, os defensores do “escola sem partido” não teriam com o que se preocupar: tais professores têm falhado miseravelmente, eis que a sociedade brasileira continua absurdamente desigual, machista e homofóbica.

Nesse sentido, basta lembrarmos que o Brasil é o décimo país mais desigual do mundo, segundo dados divulgados no Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) elaborado pelas Nações Unidas [6]; um terço dos brasileiros ainda concorda com a frase “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada” [7]; mais de 1.600 pessoas foram assassinadas no Brasil por motivações homofóbicas em cerca de quatro anos e meio, transformando o país no lugar mais perigoso do mundo para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros [8].

Além de ofenderem diversos princípios e garantias constitucionais, os adeptos do “escola sem partido” ignoram que a redução das desigualdades sociais e o combate a toda forma de discriminação são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3º, incisos III e IV da Carta Magna), de forma que, mais do que o poder, os professores (agentes estatais que são) têm o dever de defender tais valores em salas de aula.

Desprezam ainda que, como em qualquer classe profissional, há professores que seguem as mais diversas crenças ideológicas, inclusive aqueles que apaixonadamente promovem perante seus alunos as virtudes dos “economistas da Escola Austríaca”. E, o mais importante, ignoram que estudantes não são massa de manobra, que possuem raciocínio próprio e que serão melhor estimulados justamente quando confrontados com diversas ideologias e visões de mundo, mesmo que contrariem aquelas eventualmente professadas por seus genitores.

Concluindo, espera-se que o Supremo Tribunal Federal encerre o mais rápido possível as discussões sobre o tema, declarando de uma vez por todas a inconstitucionalidade de leis promulgadas para combater supostas “doutrinações ideológica, moral e sexual”.

Até lá, que prestemos total apoio aos professores e instituições de ensino para que possam repudiar com veemência qualquer ofensa aos princípios da liberdade de ensino e do pluralismo de ideias, dando-lhes condições de educar uma juventude crítica, consciente e, quiçá, mais tolerante que os defensores desta aberração ultraconservadora denominada “escola sem partido”.

Thiago Rodrigues Cardin – Promotor de Justiça em São Paulo e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador

1 “ONU alerta para impactos do projeto Escola sem Partido na educação brasileira”, disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-04/onu-alerta-para...

2 “Leandro Karnal desmonta o ‘escola sem partido’ em menos de 2 minutos”, disponível em https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/07/leandro-karnal-desmonta-o-escola-sem-partido-em-menos-de-2-minutos.html 

3 “As escolas livres da ‘escola livre’”, disponível em http://educacao.uol.com.br/colunas/guilherme-cabral/2017/04/03/as-escolas-livres-da-escola-livre.htm 

4 “Escola Sem Partido – Uma Demonstração Prática”, disponível em https://www.institutoliberal.org.br/blog/escola-sem-partido-uma-demonstracao-pratica/ 

5 “Pais acionam MP para tirar de escolas livro com ilustração de órgãos sexuais”, disponível em http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/brasil/2017/04/01/pais-acionam-mp-para-tirar-de-escolas-livro-com-ilustracao-de-orgaos-sexuais.htm 

6 “Brasil é o 10º país mais desigual do mundo”, disponível em https://oglobo.globo.com/economia/brasil-o-10-pais-mais-desigual-do-mundo-21094828 

7 “Um terço dos brasileiros culpa mulheres por estupros sofridos”, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/09/1815301-um-terco-dos-brasileiros-culpa-mulheres-por-estupros-sofridos.shtml 

8 “Brasil é o país mais perigoso para homossexuais, diz NYT”, disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/brasil-e-o-pais-mais-perigoso-para-homossexuais-diz-nyt/

 

http://jornalggn.com.br/noticia/escola-sem-partido-breves-notas-sobre-uma-aberracao-por-thiago-rodrigues-cardin 




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