12 Anos de Escravidão

12 Anos de Escravidão

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO E A SOCIEDADE DO CONSUMO

A pior escravidão não é aquela que aprisiona só o corpo, mas que mantém a mente e o coração escravos de um sistema.

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Em 12 Anos de Escravidão há vários elementos que geram reflexão. Ficaria muito longo e exaustivo ao leitor a exposição de todas as cenas relevantes, de todas as cenas em que nos deparamos com o nosso mal interior. O filme que teve Brad Pitt na produção e foi dirigido por Steve McQueen conta a história autobiográfica de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um negro livre que foi sequestrado, transformado em escravo e forçado a ficar nesta situação por 12 anos. O período que se passa o filme é anterior a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, na qual, após o seu término, a escravidão foi abolida mediante a Décima Terceira Emenda á Constituição, em 1865.

Uma cena que me impactou e me fez refletir sobre a nossa atual sociedade foi aquela em que Solomon fica por horas pendurado na forca, equilibrando-se nas pontas dos pés, correndo o risco de escorregar e morrer estrangulado. Este cenário bizarro e agônico foi assistido e naturalizado por todos. O sofrimento de Solomon era apenas mais um elemento naquela paisagem degradante e repulsiva. Os outros escravos, os empregados livres e a mulher do dono da fazenda demonstravam uma insensibilidade com a dor alheia que nos faz pensar na desumanidade da nossa humanidade. Somente uma escrava teve a coragem de um ato bondoso, dando a Solomon um pouco de água. A banalização do mal estudada por Arendt no caso do julgamento de Adolf Eichmann serve de esteio pra análise desta cena angustiante do filme, pois podemos aventar que a indiferença perante o sofrimento do escravo faz parte de um padrão vigente da sociedade, na qual a escravidão e as suas idiossincrasias eram o status quo. Mas, se na época de Solomon a escravidão era o sistema naturalizado que nos fazia humanos desumanos, qual é o sistema de hoje que causa o mesmo efeito? E outra, será que a escravidão ainda permanece de alguma forma?

Para começar a responder a estas perguntas, volto a uma cena do filme em que Harriet Shaw (Alfre Woodard) fala das comodidades de ser mulher de um homem branco, das benesses de ser livre e ter os seus próprios escravos. Harriet ao deixar sua condição de escrava, de oprimida, não pensou duas vezes em assumir a posição de algoz do seu grupo, de opressor, e por mais que tratasse bem os seus escravos, ela lhes negava o que mais desejavam a liberdade. Este procedimento infelizmente tão comum em nossos dias foi anunciado por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido, no qual ele lembra que se a educação não for libertadora o sonho do oprimido é se tornar o opressor. A escravidão foi abolida legalmente em todas as partes do mundo, pelo menos a escravidão de que trata o filme, escravidão que só foi proibida aqui no Brasil às portas do século XX. A escravidão que temos hoje é refinada, é uma servidão voluntária como diria La Boétie, que substitui os grilhões pelo desejo e o panótico pela internet. Somos escravos de uma sociedade de consumo.

Os nossos desejos nos aprisionam em incontáveis desejos insaciáveis. Nossa prisão não tem muros, nossa escravidão é alienada e alienante. Não temos liberdade, temos uma falsa liberdade que cria a ilusão de termos escolhas. O filósofo Zizek reverberando Kant chega ao paradoxo de que podemos pensar livremente desde que obedeçamos. Nossa autonomia tem a mão invisível da heteronomia. As nossas escolhas são pré-selecionadas e somos conduzidos como gado, um gado que consome as pré-obsolescências. A escravidão, respondendo a uma das perguntas, continua a todo o vapor, ou melhor, a uma velocidade de 2 Gbps, só que com uma instrumentalização diferente, ornada com ideologias e marketing. O sistema de escravidão continua, mas com vicissitudes. Solomon continua a sofrer nas pontas dos pés, porém não tratamos com indiferença, a nossa inação foi substituída pelo gozo do sofrimento alheio. Este sadismo contemporâneo é moldado pela competição, pela satisfação do infortúnio de outrem, pois não basta estarmos em uma boa posição, o outro impreterivelmente tem que estar abaixo.

A Sociedade do Consumo pode ser, respondendo a outra pergunta, o sistema que hoje nos desumaniza, que banaliza o mal e que nos escraviza, poderia citar também a financeirização da vida ou o capitalismo do século XXI (informacional, globalizado e monopolista). Independentemente da denominação e dos aportes teóricos, a nossa desumanização parte da intensificação dos nossos desejos, houve um investimento no domínio do principio do prazer sobre o principio da realidade, e estamos beirando a uma sociedade hedonista que privilegia a satisfação imediata. Nossos jovens não querem mais ser, querem ter, pois acham que tendo serão, e tudo tem que ser pra agora, uma total ditadura do momento. Nossos jovens estão se desumanizando, estão em processo de reificação. Na época de Solomon o escravo era coisa, agora todos somos coisas, objetos que suscitam utilidade ou não de pessoa para pessoa. E infelizmente até os sentimentos se coisificaram e atribuímos preço, tornamo-nos almas monetárias.

12 Anos de Escravidão, com certeza, mereceu o Oscar de melhor filme de 2014, ele nos permite refletir sobre muitos vieses. Tentei fugir do óbvio tema do preconceito racial (inaceitavelmente sempre atual) e fazer uma análise que alcançasse algo mais amplo, mas, ao mesmo tempo, mais psicológico; queria que nós nos voltássemos para o nosso mal interior, um mal alimentado por esse novo modus operandi da sociedade. Um mal banalizado, que nos deixa nas pontas dos pés, mas que nem percebemos. O que aperta nosso pescoço não é a gravata ou o colar de pérolas, é uma forca.


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