Em tempos de “escola sem partido” – uma tentativa de impedir o livre debate de ideias e concepções pedagógicas nas nossas escolas para impor uma única ideologia – a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitindo que as aulas de ensino religioso nas escolas de educação básica sejam ministradas com base em um único credo, libera o proselitismo de uma determinada religião aos estudantes e representa um grande retrocesso e a desconstituição de um avanço histórico da sociedade, que foi a separação entre Igreja e Estado.


A laicidade do Estado e, portanto, da educação pública, é uma necessidade da democracia e da formação dos nossos estudantes de acordo com princípios humanistas, para prepará-los ao exercício pleno da cidadania, para a continuidade dos estudos, para o mundo do trabalho, enfim, para a vida.

A religião que cada um de nós professa ou a decisão de não professar religião alguma é de foro íntimo, definida a partir da influência da família, dos amigos e das relações pessoais; nada tem a ver com a esfera pública, com o Estado e com o ensino regular ministrado nas escolas públicas.

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A separação entre a Igreja e o Estado no Brasil data da proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, e todas as nossas Constituições a mantiveram desde então. Na prática, a decisão do STF quebra esta separação.

Pretenderia o Supremo Tribunal Federal estabelecer a partir de agora no espaço escolar uma disputa entre as diferentes religiões pela primazia de doutrinar nossos estudantes? Voltaríamos a permitir uma educação catequizadora, como aquela praticada pelos padres jesuítas junto aos povos originários no início da colonização brasileira? Qual religião terá a preferência de nossos governantes para a realização desta doutrinação? A escolha recairá sobre a religião que cada prefeito, governador ou presidente da república professar, alterando-se esta escolha de acordo com a alternância dos mandatos? Os professores terão, neste caso, que ser doutrinados em primeiro lugar, para que possam doutrinar os estudantes? Padres, pastores, rabinos e outros sacerdotes poderão ocupar o lugar dos professores nas aulas de ensino religioso?

A decisão cria uma situação tal que nos permite imaginar uma hipotética disputa entre o Bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, e o Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, junto ao Governador de São Paulo e aos 645 prefeitos e prefeitas para definir qual das instituições religiosas atuará no maior número de unidades escolares. Podemos imaginar todo tipo de disputa entre os credos. Entre os cristãos, um insólito debate – em se tratando de um espaço escolar – entre as concepções de Cristo como um ser sobrenatural ou como um revolucionário para a sua época, como defendem alguns grupos, entre elas os adeptos da Teologia da Libertação.

Preocupa-nos não apenas esta disputa entre religiões majoritárias, mas também possíveis discriminações a credos de matriz africana (como o candomblé e a umbanda). Mais que um ataque a essas religiões, representa também um ataque a uma etnia, já majoritária no Brasil. Os praticantes de outras religiões, como o islamismo, o budismo, o judaísmo podem vir a ser alvo de intolerância e preconceitos no ambiente escolar, considerando este clima de disputa que certamente irá se estabelecer.

Na minha opinião, o ensino religioso, inserido e articulado ao projeto político-pedagógico da escola, não deve permitir ou incentivar este tipo de disputa ou doutrinação. Deve pautar-se pelo estudo e compreensão da história das religiões, o significado e o papel de cada uma no desenvolvimento das civilizações humanas, a realização de estudos sobre a Bíblia, o Corão, a Torá e outros livros religiosos para compreendê-los em seus contextos históricos, filosóficos, sociológicos e até mesmo políticos, sem qualquer tipo de preconceito e discriminação e sem desrespeitar nenhuma religião.

Como disse anteriormente, a escolha da religião que seguir ou a decisão de não professar nenhuma delas é uma escolha individual de cada estudante e não deve ser determinada pela escola ou pelo Estado.

Como pessoa que professa a religião católica, como cidadã e como Presidenta do maior sindicato de professores do Brasil e um dos maiores do mundo, não me furtarei a este debate e continuarei a manifestar claramente meu ponto de vista.

Juntamente com a toda a diretoria da APEOESP, seus conselheiros e representantes de escolas, promoveremos o diálogo com a nossa categoria e com as comunidades escolares para que compreendam o grande retrocesso que esta decisão representa, no sentido de que todos lutemos para revertê-la.

Maria Izabel Azevedo Noronha – Bebel
Presidenta da APEOESP

 

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