Brincando de ser adulto

Brincando de ser adulto

 

Brincando de ser adulto

Marcos Cezar de Freitas 


brincadeiras


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Para conhecer os costumes e os problemas de uma sociedade, pode ser útil observar como brincam suas crianças. No transcorrer do século XIX, tal como hoje, as crianças brasileiras brincavam de ser adultos. E assim reproduziam a realidade de um país marcado pela escravidão e pela desigualdade entre homens e mulheres.


A diversão infantil se dava em um mundo à parte dos adultos. Há poucos registros de homens brincando com crianças – uma exceção era os momentos em comum ao redor de gaiolas, criando passarinhos e inventando nomes para cada um. Quando os pequenos mobilizavam a atenção de algum adulto, costumava ser a da mãe. Atender crianças, para brincar ou não, não era “coisa de homem”.


Mas mesmo apartadas dos adultos, as brincadeiras da época demonstram um olhar sensível para a realidade à sua volta. Brincar de ser adulto possibilitava para os meninos de elite imaginar-se como senhores de engenho, representar o papel de proprietário de escravos e maltratar animais diante das crianças escravas, para demonstrar com exemplos o que poderiam fazer com “seus escravos”. Algumas crianças tinham seus próprios chicotes e os meninos das grandes propriedades faziam das crianças escravas o brinquedo em si, exigindo que fossem seus cavalinhos ou “animaizinhos de fazenda”.


O convívio entre crianças livres e filhos de escravos no âmbito privado é objeto de diversos relatos, mas nos livros de viajantes costuma ser tratado de forma superficial. Em Viagens ao interior do Brasil, de 1809, John Mawe escreve sobre a amizade e a “familiaridade” entre os filhos dos escravos e os dos senhores. O ambiente doméstico e o fato de brincarem sob o mesmo teto reforça a impressão de “camaradagem” entre crianças livres e não-livres, como se comprovasse que as brincadeiras infantis eram inofensivas, capazes de diluir a violência escravocrata. Mas não era assim. Embora fosse possível encontrar no cotidiano situações nas quais crianças brincavam juntas apesar da distinção que se estabelecia entre o mundo dos senhores e o mundo dos escravos, com muita frequência irrompiam ações que demonstravam o lugar de mando ocupado pela criança branca, filha do proprietário de escravos.


“Através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado ‘leva-pancadas’, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico. Quase que do moleque ‘leva-pancadas’ se pode dizer que desempenhou entre as grandes famílias escravocratas do Brasil as mesmas funções de paciente do senhor moço que na organização patrícia do Império Romano o escravo púbere escolhido para companheiro do menino aristocrata: espécie de vítima, ao mesmo tempo que camarada de brinquedos”, escreveu Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala (1933).


Entre as meninas, havia a brincadeira de “tornarem-se comadres” quando tinham um objeto raro em comum: a boneca de louça. Batizavam as filhas bonecas e tomavam chá repetindo alguns ritos que podiam observar nas vezes em que senhoras consideradas distintas se visitavam. Esse hábito é um típico costume da região Nordeste, no âmbito das grandes propriedades e relacionado àquilo que se considerava como etiqueta de elite.


Bonecas de louça tinham um padrão: cabelos louros cacheados e olhos azuis. Eram vestidas de modo senhoril e expressavam uma ideia de elegância a ser assimilada por suas “mães”. Mas, assim como suas “mães”, elas raramente saíam às ruas. Produzidas na Europa, uma vez retiradas das embalagens algumas nunca mais passavam de volta pela porta em que entraram.


As bonecas que conheciam a luz do sol eram as de pano, produzidas nas mais variadas situações por costureiras, tias ou madrinhas dedicadas às habilidades manuais relacionadas à linha, ao tecido e à tesoura. As bonecas de pano eram vistas como o brinquedo possível para crianças de famílias não tão abastadas, não tão impregnadas pelo teatro de ostentação que se percebia nos sobrados mais ricos. Bonecas de pano eram doadas quando suas donas cresciam, e refeitas, costuradas, restauradas sempre que necessário. Doar bonecas de louça era menos comum. Crescendo a menina mãe da boneca de louça, era mais provável que o brinquedo permanecesse entre as relíquias da casa.


Enquanto as meninas da elite brincavam mais dentro de casa, os meninos brincavam fora – não necessariamente na rua, mas nos quintais das casas de maior porte, como os sobrados.


Frutos da imaginação infantil, as “comadres” unidas no batismo das bonecas de louça e os “senhores” que transformavam pequenos escravos em animais foram personagens do Brasil Império. Demonstrações de como uma geração enxerga a outra.

 

Marcos Cezar de Freitasé professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizador da trilogia História social da infância no Brasil (2000),Os intelectuais na história da infância  (2002) eDesigualdade social e diversidade cultural na infância e na adolescência (2004), todos publicados pela Cortez Editora.

 

Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/brincando-de-ser-adulto

 

http://desacato.info/2013/03/brincando-de-ser-adulto/




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