O jogo plebiscitário

O jogo plebiscitário

 

O jogo plebiscitário: reforma política e democracia direta

 

Na esteira do Decreto Federal n. 8.243/2014, houve do dia 01 de setembro de 2014 ao dia 07 de setembro de 2014 uma proposta para que se fizesse um plebiscito constituinte para mudança do sistema político. O cerne da proposta direcionava-se ao aprofundamento radical da democracia direta no Brasil. É o que será aqui discutido.

A constituição é um jogo com palavras. Como num jogo, há uma série de elementos importantes, decisivos para o desfecho da partida, muitos dos quais visíveis apenas aos mais experientes jogadores ou analistas como, para o caso do futebol, a altura da grama, a proximidade com a torcida ou a alimentação dos atletas.

Qualquer jogo possui também regras. O constitucional não foge disso. Tê-las está muito distante de se engessar o espetáculo. Um tenista precisa acertar a bola na área demarcada para ganhar o ponto. Disso não decorre que se limite a velocidade ou a altura da bolinha[1].

Há muito espaço para que se jogue com as atuais regras constitucionais. Mas elas podem mudar, assim como as regras de qualquer jogo.

As melhores e piores jogadas constitucionais colocam-se todos os dias à disposição de nossos congressistas: eles podem variá-las se seguirem as regras pré-estabelecidas, assim como podem, obviamente, alterar as regras através da interpretação, já que esse é um jogo com palavras.

Não são apenas eles que o podem, mas eles podem conferir sentidos a cada palavra enquanto o jogo constitucional permanecer sendo jogado.

Na política democrática, há um binômio evidente: oposição e governo. É neste digladiar que parlamentares fazem emendas constitucionais, leis subordinadas à constituição, decretos para aumentar salários do funcionalismo público etc.

Ao contrário de um jogo de polo ou de basquete, não há aos olhos de um jogador do direito não político um claro adversário quando são analisadas as regras que compõem a constituição. Há doutrinas e interpretações concorrentes quanto ao significado de vários termos. Dependendo da corrente que observa, podem ser qualificados como vagos, obscuros, equívocos, de significante vazio, de textura aberta. Há até mesmo os “pétreos” para boa parte da doutrina pátria. Há, apesar disso, uma luta para que o significado advogado saia-se vencedor.

Aqui está uma das esquisitices do fenômeno constitucional: ele não tem apenas um pé no direito enquanto fonte positiva, como ouvimos nas faculdade de direito, mas tem também um pé na política enquanto estruturador do jogo democrático. É um jogo, assim, jogado na fronteira entre dois esportes com regras distintas. E um dos problemas brasileiros é que outras regras prevalecem quando as constitucionais em seu lugar deveriam. Interesses econômicos casuísticos, por exemplo.

Tudo isso pra dizer que esse jogo não tem hora pra acabar. Acaba quando há uma crise, que pode ocorrer quando determinado regime atinge o fundo do poço, pois se tornou estrutura ou operacionalmente incapaz de atender as demandas sociais. Pode acontecer que uma constituição ou o jogo que fizeram a partir dela tenha se tornado insensível à sociedade que a ronda. Às vezes de uma crise eclode a mudança com o poder das armas, como foi com o golpe militar de 1964 no caso brasileiro, ocasião na qual estabeleceu-se um jogo como o de Rex I narrado por Hart.

A mim, com Marcelo Neves, parece-me que a verdadeira revolução brasileira seria não uma mudança constitucional, mas uma realização constitucional.

Se as palavras que compõem o jogo constitucional de 1988 fossem efetivadas ou se estivessem mais próximas da efetivação, já que há certos direitos que nunca serão totalmente realizados por não terem sido constituídos para isso, como a liberdade, seria a maior transformação social já experimentada no Brasil. Os próximos passos estariam mais à disposição dos brasileiros.

Contudo, a constituição tal como regrada também contém regras que paradoxalmente tornam sua realização mais difícil. Parece, assim, que um dos principais problemas que obstam a concretização constitucional é o arranjo atual do congresso nacional tal qual estabelecido pela Constituição. E acho que nesse ponto deve haver mudança.

O que aconteceu no ano de 2013 com as manifestações não foi pouca coisa. É o sintoma das enfermidades políticas e jurídicas pela qual atravessa o Brasil. Muitos disseram que precisaríamos de uma nova constituição. Houve também um intenso debate a respeito da possibilidade de uma nova constituinte apenas para a reforma política.

Abriu-se, então, uma discussão que opõe democracia representativa e democracia direta e, agora em setembro, houve a votação do plebiscito visando uma nova constituinte.

Cláudio Weber Abramo, em artigo publicado na Folha de S. Paulo intitulado “Fantasias Plebiscitárias” apresenta as seguintes objeções à proposta: Em primeiro lugar, diz que se unem organizações díspares como a Igreja Católica, a OAB, O Movimento Contra a Corrupção Eleitoral e uma “porção de coletivos”. Para Weber Abramo, elas não representariam a sociedade como um todo para dizer que os políticos atuais são dela representantes ilegítimos. Em segundo lugar, argumenta que não seria possível a exclusão dos atuais políticos no eventual processo constituinte.

Weber Abramo não considera, no entanto, que a proposta é apenas uma das armas políticas à disposição para que se mude a constituição. A constituinte de 1988 não nasceu com o movimento das Diretas, por exemplo. Ela foi gestada pela organização de diversas entidades civis que elaboraram documentos como as Conferências dos Partidos Comunistas na Década de 1960, a “A carta de Recife” de Marcos Freire de 1971, a “Carta aos Brasileiros” de 1977 de Gofredo da Silva Telles Júnior e a “Declaração dos Advogados Brasileiros” da OAB federal de 1978. Ao lado desse movimento, intelectuais como Miguel Reale opunham-se a uma mudança constitucional. Não há nada de ilegítimo em entidades pleitearem uma mudança constitucional, e ela provavelmente acontecerá quando as pressões tornarem-se cada vez maiores.

Ainda, embora não fosse possível nem desejável a exclusão dos atuais políticos e partidos de uma constituinte, ela seria eleita justamente para que uma reforma política fosse feita no sentido de implementar-se mais instrumentos de democracia direta. Os eventuais eleitos teriam esse mandato a cumprir.

Realizar a constituição significa, como a leio, fazer com que a política democrática possua uma representatividade mais adequada, fazer com que torne-se menos dependente dos fluxos não jurídicos e nem políticos que podem corrompê-la, bem como alargar os mecanismos de democracia direta. Para isso, acho adequadas as propostas relativas ao voto distrital misto e ao financiamento público de campanha. Seriam dois mecanismos para que o jogo constitucional transcorra sem que ele mesmo seja seu obstáculo.

Em relação à democracia participativa, entendo que o Decreto Federal n. 8.243/2014 não é inconstitucional, e é apenas uma gota do que precisaria ser feito. A mim, parece que aqui a Constituição merece, ao menos, uma reforma para que sejam ampliados mecanismos como este. Os esforços nesse sentido, como as contidas nessa proposta plebiscitária, parecem-me necessárias.

É a possibilidade que temos de jogar com regras que tornam o jogo constitucional menos excludente, com menos interferência de jogos de palavra estranhos ao constitucional e passem a ter como participantes também que apenas até agora aplaudiu. Ou vaiou.

 

[1]Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, § 68.

 




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