Campus de discriminados

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Alunos denunciam atos racistas na maior universidade de Minas


Tentando, dá para esquecer um monte de ofensas colecionadas ao longo da vida, para ignorar o passado e até acreditar que o país vive uma democracia racial. Tentando, até dá para fazer isso. Mas tem gente que não deixa, que fica o tempo inteiro reforçando a divisão social covarde e obscura entre negros e brancos. Dentro dos lugares menos imagináveis. Por exemplo, na universidade pública, local de diversidade, produção de conhecimento e troca de saberes. Entre elas, está a federal mineira, a respeitada UFMG, envolta em cortina, de silêncio e omissão, que esconde uma prática cotidiana de discriminação racial e até mais que isso.

As histórias são muitas. Vem de professores, alunos, servidores. As vozes, poucas. Um e outro se aventura a falar, a dizer “sim, aconteceu comigo; sim, fui vítima de racismo”. Por vergonha, por constrangimento, por medo. “Eu fiquei muito tempo sem conseguir falar desse assunto”, conta uma das poucas vozes que ousou se manifestar. É de Alysson Armondes da Costa, 28 anos, aluno de ciências sociais. “A primeira vez que fui apontado como negro foi dentro da UFMG”, diz. Foi de uma forma inesperada para ele, mas que revelaria, a partir de então, ideologias, crenças, preconceitos e conceitos que fazem parte da mente dos produtores de conhecimento.

Após uma intervenção à fala do professor, ainda no início do curso, Alysson ouviu de um dos colegas de sala: “Tinha de ser negro”. O resto da turma riu. Alysson paralisou. “Não consegui reagir. Aquilo me incomodou profundamente.” E assim ficou por muito tempo, sem tocar no assunto. Foi quando a ficha caiu a respeito da forma como ele era visto pelo mundo exterior e o fez entrar para a militância, na esperança de mudar com palavras e ações uma realidade em vigor, que não está apenas em situações expressas, verbalizadas. Como em outro momento em que ele e dois amigos voltavam de uma festa dentro do campus da Pampulha, conversando alto e brincando. Os outros dois brancos, apenas ele negro. “Eu era o que estava mais quieto, mas os policiais vieram em cima de mim. Como eu já estava mais politizado, acabei discutindo com eles e até chamaram o chefe da segurança.”

Alysson não está sozinho no grupo dos que vivem um cotidiano universitário racista, muitas vezes mascarados por piadinhas ou argumentos de tratamento igual a todos. No dia 18 de março, uma das faces desse tipo de discriminação foi revelada com o trote pregado pelos veteranos do curso de direito. Pintaram os novatos de preto. Um deles, mulher, presa a corrente puxada por um veterano, teve de carregar placa em que estava escrito “Caloura Chica da Silva”, referência à ex-escrava que viveu em Diamantina, no século 18. Outro foi amarrado em uma pilastra e, junto a três alunos, que fizeram a saudação nazista.

Logo depois disso, um estudante do mesmo curso deu entrevista em que disse que não é racista e que tem até amigos negros, inclusive, o símbolo da Atlética dele é um macaco. Em seguida, uma série de manifestações, em tom de brincadeira, começaram a ser divulgadas, como nas músicas da charanga do direito, que atacam mulheres e estudantes de instituições privadas. Essas primeiras divulgações revelaram ferida aberta dentro da universidade e, ao mesmo tempo, uma espiral do silêncio compactuada até pelas autoridades acadêmicas.

Estudante da pós-graduação, negra e mulher, Joyce Santos, 29 anos, decidiu entrar na discussão a respeito das manifestações discriminatórias do direito, em um grupo do Facebook. Foi incisiva, protestou, argumentou contra quem acha que não passou de brincadeira. Não ficou por menos. Em questão de minutos, um perfil fake entrou no grupo e começou a postar mensagens de agressão aos negros. O nome dele era Ethan White e, apesar de ser o mesmo nome de jogador negro, dos Estados Unidos, tinha a foto de uma criança branca e loura. A primeira postagem foi um banner com a foto do político José Serra e os dizeres “Adoro negros. Pena que pararam de vender”. Depois desse, outro banner foi postado. Tinha um cachorro pastor alemão dirigindo veículo e os dizeres: “Negros a vista. É hora de acelerar”. Embora estivesse discutindo com alunos do direito no momento, Joyce prefere não atribuir o perfil a um dos membros.

“Estou considerando o benefício da dúvida. Podem ter colocado isso lá porque acharam engraçado, sem a intenção de agredir, mas, independentemente da motivação, são mensagens racistas”, observa Joyce. Diante da agressão explícita, ela foi a todas as instâncias que podem investigar e punir os responsáveis: no site de crimes pela internet e no da Polícia Federal, na Delegacia de Crimes Cibernéticos, no Ministério Público estadual e federal, no Movimento de Juventude Negra Nacional, na ouvidoria da UFMG e em um grupo de direitos humanos do Rio de Janeiro. Também já acionou advogado.

Articulada e militante, Joyce diz que essa é apenas uma das manifestações que já presenciou e a primeira diretamente contra ela dentro da universidade. No entanto, já perdeu a conta do número de denúncias que recebeu. Muitos dos ataques vêm pela internet. “Existem manifestações muito sutis e outras que são feitas como coisa normal, por exemplo, as piadinhas. Fora as tentativas de tentar diminuir a inteligência dos negros, de quem passou no vestibular por cotas ou bolsas.” Até contra deficientes físicos, a estudante já viu dentro da universidade.

Coordenadora do programa Conexão de Saberes – que oferece bolsas de pesquisa para estudantes de trajetória popular –, a professora de psicologia social Cláudia Mayorga confirma a existência de manifestações de discriminação dentro da UFMG. Ela mesma, quando fazia pesquisa sobre a trajetória dos alunos negros dentro da universidade, recebeu a denúncia de uma aluna, negra e de baixa renda, que é de chocar. A jovem contou que deixaram uma banana em cima da carteira dela. “Chegam muitos casos semelhantes”, afirma Cláudia. Além de racismo, de homofobia, de assédio de professores contra alunos, de discriminação por gênero. E, em volta disso tudo, impera o silêncio. “Quando você diz que está disponível para ajudar, a pessoa não quer denunciar. Isso demonstra que a UFMG não garante uma permanência bem-sucedida de determinado segmento na universidade.”

Episódios do tipo levantam a questão, conforme a professora, do papel que a universidade exerce, ao permitir que atos desse e outros, como o trote, aconteçam. Na opinião dela, deveria haver punição rigorosa. “Tem de jubilar”, defende. Para ela, o fato de a UFMG não nomear essas atitudes e de não assumir a existência da discriminação cria uma barreira para o combate desses problemas. Ela exemplifica com a campanha Bocado de gentileza, criada para desestimular o trote, substituindo-o por bom recebimento dos calouros. “Não estamos falando de gentileza, mas de racismo. E racismo é crime. O trote é a ponta de um iceberg.” Acredita que a instituição deve criar uma política permanente para atacar essas situações e preveni-las.

Dois fatores estariam por trás das manifestações discriminatórias dentro da universidade, conforme a professora. A primeira delas é o fato de a academia ter se firmado ao longo dos anos como o lugar da neutralidade, o que tem consequências sérias, como o de silenciar as pessoas. A segunda é o momento de mudança, no caso das federais, com a implantação do Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão (Reuni) – na UFMG, em 2008 – e dos sistemas de bônus (2008) e cotas (2013). Essas ações têm ampliado a diversidade dentro da instituição, mas não na mesma medida do aumento do debate sobre essas políticas, o que acaba levando aos atos violentos de negação à democratização do espaço. A falta de diálogo e de posicionamento da universidade sobre o assunto faz com que outras formas de discriminação surjam, contra os alunos vindos de bônus, cotas e de cursos do Reuni. Como este é o primeiro ano de cotas na UFMG, os boatos que correm entre os alunos é de que os calouros estão sendo pintados de preto em referência aos cotistas. A informação não foi confirmada. O que se sabe apenas é que um cotista que participou do trote do direito foi chamado para falar na comissão de sindicância que foi organizada pela UFMG para investigar o caso e que tem até 19 de maio para apresentar seu relatório.

Alysson Armondes, que sofreu discriminação durante uma aula: “não consegui reagir”. 

Recém-formada em ciências do estado – que surgiu com o Reuni –, Cecília Reis Aquino, 22 anos, relata como o curso e os alunos dele foram discriminados quando chegaram à UFMG, especialmente porque ele foi instalado no prédio da Faculdade de Direito, no centro, e funcionava na parte da tarde. “Tentaram a todo custo tirar a gente de lá. Diziam que ciências do estado não era curso, mas disciplina do direito.”

Cecília foi da primeira turma do curso e acompanhou todos os embates. Dentre os episódios, ela se lembra de que os estudantes de direito diziam que os elevadores iam ficar muito cheios por causa do ciências do estado. Também se recorda das festas com som alto. “Eu, várias vezes, desci ao pátio para pedir para abaixarem, porque estavam atrapalhando.” Segundo ela, muitas denúncias foram feitas, mas providências não eram tomadas. “É ridículo a UFMG dizer que não sabia de nada. Lá é um território livre.”

E não foram somente dos alunos do direito que as agressões chegaram aos de ciências do estado. De professores, também. Cecília Reis Aquino conta que um dia duas colegas de sala dela tinham passado bilhetinho uma para a outra. O professor viu e disse, interrompendo a explicação: “Esse é o problema do Reuni”. Em seguida, continuou a aula. “Na hora, eu não acreditei. Depois é que nós fomos debater isso.” Segundo ela, professores e alunos de cursos tradicionais discriminam os do Reuni.

Um estudante do sexto período de direito – que pediu para não ser identificado – diz que já presenciou manifestações de professores contra cotistas e bonistas. “Um colega da minha sala fez pergunta e o professor respondeu: que pergunta idiota! Parece até que você é cotista.” Ele conta que se manifestou na hora, questionando o professor, mas foi uma reação solitária. Segundo ele, a questão das cotas é polêmica entre os estudantes do curso, sendo que a maioria se manifesta contra o sistema. Da mesma forma, afirma que a comunidade está dividida sobre a ocorrência e repercussão do trote de cunho racista, sexista e nazista. “Há os que veem uma oportunidade para a faculdade repensar sua postura e tem os que acham que é sensacionalismo da mídia e, logo, todo o mundo esquece e as coisas voltam ao normal.”

O trote de cunho nazista despertou surpresa em parte da comunidade acadêmica e das pessoas que estão fora dela, mas não é surpresa para muitos. “Esse aluno (um dos que faz gesto nazista) sempre se manifestou abertamente como sendo da extrema direita. Agora a gente só não sabe até que ponto ele está engajado em movimentos, se somente simpatiza com a ideologia ou se manifesta para chamar a atenção”, diz. O aluno, G. S., que é o que se manifesta como membro da ultradireita, aparece em fotos disponíveis nas redes sociais com um símbolo do movimento Pátria Nostra Brasile (MPN), de extrema direita, que já teve o primeiro encontro em Belo Horizonte, sob o nome Movimento Pátria Brasil, conforme o jornal italiano A tutta destra.

Professora de história social na UFMG e ativista, Regina Helena Alves da Silva não se surpreende com o fato. “Muitos ex-alunos meus me procuram para me pedir ajuda porque eles vão dar aula e encontram alunos com pensamentos neonazistas e não sabem como lidar.” Segundo ela, não é novidade existir núcleos ultradireitistas na UFMG. “Tudo o que tem fora da universidade tem dentro.” O que deve haver, de acordo com ela, é uma manifestação clara da instituição, dizendo que não admite discriminação e intolerância de qualquer tipo.

Regina também acredita que está havendo incremento nas manifestações devido à maior democratização da academia. “O que estamos vendo é o acirramento da disputa entre os que se julgam privilegiados contra aqueles que eles não consideram. Isso se chama nazismo. Nada mais que isso.” Ela refuta o argumento de que os alunos que vêm de rede pública, cotas e bônus têm menor condição de fazer os cursos. “A universidade não trabalha com conteúdo, mas com produção de conhecimento. Há pesquisas que mostram que esses estudantes têm até melhores notas.”

Ela também já presenciou manifestações de discriminação dentro da UFMG. Um deles era um famoso trote em que estudantes de engenharia iam até a Fafich para gritar, na cantina: “Um, dois, três, quatro, aqui só tem veado; quatro, três, dois, um, eles dão para qualquer um”. Professores e alunos passaram pedindo a proibição dele à reitoria, até que conseguiram tirá-lo. Outra situação de que se lembra ocorreu quando apareceu o primeiro travesti. “Houve uma onda leve de gente querendo três banheiros.”

A ideia de que existe um grupo superior a outro dentro da UFMG também se manifesta na delicada relação entre professores e alunos, na forma de assédio, moral ou sexual. A reportagem teve conhecimento de pelo menos três professores com investigação contra eles por causa desse crime. Um deles leciona sociologia na Faculdade de Educação (FAE); outro é do Departamento de Sociologia e Antropologia; e o terceiro é professor de direito penal. Os nomes foram preservados porque a UFMG se recusou a informar seu posicionamento a respeito das denúncias.

O da FAE teria denúncias por discriminação e preconceito; o da sociologia, por assédio sexual a alunas; o de direito por assédio a alunos. Este último chegou a ser expulso da universidade após a conclusão das investigações. No entanto, ele prestou concurso novamente e retornou às salas de aulas. Alunos do curso contam que a banca que o aprovou era formada somente por ex-alunos dele e que não foi a primeira vez.

Outro grupo que sofre pressão cotidiana é o dos alunos intercambistas, especialmente os que vêm do continente africano. V. B, 25 anos, natural do Benin, formou-se na instituição e agora cursa o mestrado. “O preconceito aqui é oculto. Todo o mundo diz que não tem, mas, na convivência, você acaba vendo.” Com ela, nunca houve manifestação direta, mas indireta era recorrente. “Eu via que, quando tinha trabalho em grupo, ninguém me chamava. Não posso acusar, mas é a impressão que passa.” Também questionam o motivo de os africanos estarem lá.

Servidores técnico-administrativos também têm queixas contra professores. “Tratam como se fôssemos invisíveis e querem decidir nossa vida. Isso ficou muito claro com a imposição do ponto eletrônico para a gente e, para eles, não”, diz a presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Federais (Sindifes-MG), Cristina del Papa.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG, William Santos observa que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável. “Isso quer dizer que, daqui a 10 anos, a pessoa pode responder ainda. E também não dá para pagar fiança, pode ser presa em flagrante”, diz. Segundo ele, o problema é que os policiais são despreparados para receber as denúncias e, assim, classificam como injúria racial, e o crime pode ser convertido em prestação de serviço à comunidade.

A reportagem procurou a UFMG por três dias seguidos – 25, 26 e 27 de março. No entanto, a instituição não forneceu respostas sobre as denúncias. Informou apenas o número de africanos: 70 na graduação. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Escolares, existem 58.605 alunos negros nas instituições federais do país, em universo de 1.032.936 (cerca de 5%). Na UFMG seriam 3%, conforme o Coletivo de Estudantes Negros, que também há apenas uma professora-titular negra. Mas a reportagem apurou outra aprovada recentemente.

Trotes na UFMG com conteúdo discriminatório

Racismo, sexismo e nazismo: dois alunos, um homem e uma mulher, foram pintados de preto por veteranos. A menina foi acorrentada e carregou placa com os dizeres “Caloura Chica da Silva”; o menino foi aprisionado em uma pilastra; os três veteranos que o acompanhavam fizeram saudação nazista; todos estavam com bigode em referência a Hitler

Sexismo: alunas do curso de engenharia tiveram que simular sexo oral em cassetetes revestidos por preservativos

Homofobia: alunos de engenharia invadiam a Fafich, cantando: “Um, dois, três, quatro, aqui só tem veado; quatro, três, dois, um, eles dão para qualquer um”

 

 

segue o link da revista onde você pode fazer o download do pdf e verificar o artigo na página 43.

revistaviverbrasil.com.br/plus/modulos/listas/?tac=edicao-anterior&id_edicao=102&op=visualizar

Jornalista Claudia Rezende (autora) 

 

 




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