Rio Grande do Desmonte

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Rio Grande do Desmonte: três décadas de ataques ao serviço público

Há trinta anos o discurso é o mesmo no Rio Grande do Sul: há crise e é preciso cortar no setor público. Um novo austericídio, agora sob a batuta de Sartori, promete ser o mais radical de todos.

Pedro Simon e José Ivo Sartori

Na semana que passou, a seção “Há 30 anos…”, do jornal Zero Hora, resgatou uma manchete com ares de 2016: “Recebo o Estado com as finanças em calamidade”, dizia o então governador recém-eleito do Rio Grande do Sul, Pedro Simon. Na legenda da foto, a promessa do novo mandatário: enxugar a máquina pública e diminuir despesas com o funcionalismo.

Simon assumiu o Rio Grande do Sul em 1987. Na década anterior à posse, o RS crescera mais que o Brasil, mas as taxas caíram abruptamente no período de recessão econômica, de 1980 a 1985, quando o Estado cresceu 0,5%, enquanto o país cresceu 1,7%. Os dados são das fundações de Economia e Estatística (FEE) e Getúlio Vargas (FGV). Eles aparecem em um documento disponível na Internet, intitulado Diretrizes de Ação, o próprio plano de governo de Simon para os anos de 1987–1990 (o governador renunciou antes do fim do mandato).

Este elucidativo projeto, que aponta os caminhos tomados pelo governador de então, um dos “monstros sagrados” do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), usou o discurso da recessão e da crise econômica para propor uma série de medidas capazes de solucionar os problemas do Estado. Entre as páginas 20 e 25, por exemplo, o relatório “detecta” as origens dos problemas sulinos: inchaço da máquina pública e excesso de servidores. Dali por diante, o documento aponta as chamadas “soluções”, tratadas como de “complexidade infinita”. Nas páginas 31 e 32, um listado de medidas administrativas estratégicas dá as diretrizes para o fim do “colapso financeiro” do RS. Vale reproduzir o original:

“Diretrizes de Ação”, Secretaria de Coordenação e Planejamento, Governo do Estado do Rio Grande do Sul, 1987.

Quando saíram do papel as medidas de Simon colapsaram parte dos serviços gaúchos. No primeiro ano de governo, 1987, ele descumpriu a lei constitucional que ordenava o pagamento de 2,5 salários mínimos aos professores, causando a maior greve do magistério sul-rio grandense em toda sua história (a chamada Greve dos 100 Dias). O movimento paredista ficou famoso não só por sua extensão, mas também pelo Acampamento na Praça da Matriz (transformada em “Praça da Sineta”). Para negociar com os grevistas, Simon nomeou uma comissão integrada à época por jovens peemedebistas, entre eles Cesar Schirmer e um tal José Ivo Sartori. Entre passeatas que chegaram a reunir 40 mil pessoas, tentativas de diálogo com o governador e até mesmo uma rebelião de deputados da base aliada do Governo (que decidiram apoiar os grevistas), Simon seguiu arrochando o magistério. Como resposta, em 88 levou outra greve. Brigadianos e demais servidores não tiveram melhor sorte.

Gaúchos e gaúchas de todas as querências seguiram em crise. Simon e seus sucessores pouco ou nada fizeram para dirimir o endividamento e o desgaste financeiro do Rio Grande do Sul. Como mostra o gráfico a seguir, a dívida pública gaúcha só aumentou desde então:

Evolução da dívida pública do Rio Grande do Sul (Fonte: Zero Hora).

O gráfico mostra, também, um detalhe que não passa desapercebido. Foi durante o governo de Antonio Britto, outro peemedebista, que a dívida pública do Rio Grande do Sul mais cresceu (ao menos em tempos democráticos). Foram exorbitantes 122% de crescimento do passivo, um número assustador, gerado pelo processo de renegociação da dívida entre os governos do Estado e a União. Esse processo, promovido pelo governo neoliberal do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995–2002), prometia dar nova oportunidade de crescimento aos Estados, mas foi, na realidade, vetor de nova crise.

Como Simon, Britto também tinha um programa de governo, hoje acessível na Internet. O projeto Rio Grande Unido e Forte (assinado por PMDB, PSDB e PL) apresenta “72 ideias de Britto para um Rio Grande unido e forte”, um conjunto generalista de propostas difusas, palavras belas e pouca objetividade, registrado nas 19 páginas do documento. Esta proposta, utilizada na campanha eleitoral de Antonio Britto, foi complementada por outro documento, apresentado à Secretaria de Planejamento do Rio Grande do Sul depois da eleição — e hoje digitalizado e disponível junto ao primeiro. Esta segunda proposta, menos ingênua e mais “verdadeira”, aponta os reais rumos do projeto peemedebista para o Rio Grande do Sul. O capítulo III, intitulado “Ações prioritárias e programas emergenciais”, classifica o serviço público gaúcho como “anacrônico”, “desorganizado”, “vulnerável às interferências político-partidárias” e outros adjetivos depreciativos. No mote deste discurso, o texto elenca pontos a serem resolvidos na administração estadual: adequar o serviço público ao básico e privatizar os não-básicos, “reduzir, simplificar e dar coerência funcional e organizacional ao aparelho estatal” e, entre outros, reexaminar a “chamada Administração Indireta com base numa avaliação aprofudada das funções, do desempenho e da situação patrimonial de cada uma das fundações, empresas públicas e autarquias” do Estado (mais na página 14 do documento original).

Três décadas se passaram desde Simon. Duas, desde Britto. Em meio a elas, governos petistas, tucano, outro peemedebista, mais crise, mais crescimento vegetativo da dívida e um notório e incessante sucateamento dos serviços públicos. Hoje, trinta anos depois do primeiro governo do PMDB (o partido que mais geriu o Rio Grande do Sul na era democrática, até agora 14 de 30 anos), aquela velha capa de Zero Hora volta à vista como que impressa hoje. O governador é, agora, José Ivo Sartori, o mesmo que um dia compôs a comissão responsável por negociar com os grevistas de 87, o mesmo que presidiu a Assembleia Legislativa quando Britto era governador.

Sartori, eleito quase que por acidente, num contexto de crescente anti-petismo, assumiu o governo gaúcho em 2015, escondendo seu partido (“Meu partido é o Rio Grande”, dizia sua campanha). Como seus antecessores peemedebistas, demorou muito pouco até vestir a carapuça infalível da crise. Em fevereiro, segundo mês de seu mandato, o novo governador já anunciava aumentos de impostos, congelamento de salários e enxugamento da máquina pública. “O RS está na UTI”, disse numa entrevista. Em seguida, vieram os primeiros projetos visando o fechamento de estruturas públicas, a suspensão de concursos, o parcelamento de salários e o crescimento de tarifas. Em dezembro de 2015, o Rio Grande do Sul inclusive deu o calote em seus servidores, obrigando-os a fazer uma operação de crédito para garantir o minguado 13º salário.

Nesse período, praticamente nada de objetivo foi feito para diminuir os gargalos produtivos do Rio Grande do Sul ou reduzir regalias de setores que — estes sim — se locupletam de parcelas exorbitantes do dinheiro público. Basta lembrar que em meio àquela que é chamada de “a maior crise da história do Estado”, Sartori permitiu o aumento nos salários dos poderes Legislativo, Judiciário e no de todo o seu Gabinete (incluindo-o), acrescido de 8,13%. Atualmente, como aponta este gráfico do jornal O Estado de São Paulo, o Rio Grande do Sul é o quarto estado brasileiro que mais gasta com o Poder Legislativo:

Fonte: O Estado de São Paulo.

Na semana passada, servidores do Judiciário gaúcho receberam 26 milhões de reais pelo pagamento retroativo do vale-alimentação (referente aos anos de 2011 a 2014). O Tribunal de Justiça Militar, que já não existe em vários estados da federação (justamente pela pouca utilidade pública), custa cerca de 30 milhões de reais por ano aos combalidos cofres gaúchos. Só entre março e maio de 2016, o Governo Sartori gastou R$ 2,8 milhões em publicidade. As diárias de viagens do estafe de José Ivo já registram aumento de quase dez milhões de reais em relação ao ano passado.

Neste ínterim, o Estado do Rio Grande do Sul anunciou hoje, 21, o pacote “Um novo Estado, um novo futuro”, uma série de medidas de enxugamento do Estado, desmonte dos serviços públicos e arrocho, um programa de “refundação” do Estado (como diz o próprio Executivo). A novilíngua, nem tão nova assim, é mais um austericídio promovido pelo PMDB, saudado por setores conservadores e vendido pela mídia hegemônica como única solução para os problemas financeiros do Rio Grande do Sul.

Em linhas gerais, o projeto prevê o fechamento de nove fundações de pesquisa com a dispensa de seus mais de cinco mil funcionários, a legalização do atraso e parcelamento de salários e 13º (através da quebra da lei que obriga o pagamento dos vencimentos até o último dia de cada mês), a extinção da licença-prêmio e da aposentadoria compulsória dos brigadianos e uma proposta de aumento da contribuição para a previdência, paga pelos servidores estáveis, dos atuais 13,25% para 14%. Como já havia noticiado a colunista Rosane de Oliveira — uma espécie de porta-voz de Sartori — o governo propôs, ainda, um conjunto de privatizações que incluem a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a Companhia Riograndense de Mineração (CRM) e a lucrativa Sulgás, além da venda da Corag.

(A propósito das estatais CRM e Sulgás, recomendamos matéria do Correio do Povo de 27/07/2016, que mostra o lucro líquido de tais empresas e o quanto seria descabido vendê-las).

Embora o “pacotaço” de Sartori não seja uma novidade se comparado a outros já apresentados por governantes do PMDB, há um fator por detrás dele que deve ser desnudado. O Correio do Povo do último domingo, 20, traz uma instigante reportagem que revela a atuação de consultorias privadas no governo Sartori, com destaque para a maior delas, prestada pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC). De acordo com a reportagem, só entre janeiro e novembro deste ano, o governo gaúcho pagou cerca de 32 milhões de reais para que consultorias avaliassem a situação do Estado e propusessem alternativas à crise. O MBC levou mais de 1,5 milhão de reais.

A lebre já havia sido levantada ano passado, pelo mesmo Correio do Povo e pelo portal Sul 21. Em 2015, o Governo do Estado pagou 7 milhões de reais para consultorias, a maioria delas a partir de convênios (que dispensam licitações), como o 768/2014, voltado a “desenvolver programas de qualidade, produtividade e modernização, no âmbito estadual, de gestão dos serviços de natureza pública e dos bens públicos”. O maior bastião das consultorias no governo gaúcho é o PGQP, Programa Gaúcho de Gestão de Qualidade, um produto oferecido pelo Movimento Brasil Competitivo.

O MBC nasceu em 1992, por iniciativa do empresário gaúcho Jorge Gerdau (um dos investigados pela Operação Zelotes, acusado de pagar propina ao CARF, órgão responsável por cobrar sonegadores). Em seu site, o movimento se apresenta como destinado a “ promover a competitividade sustentável do Brasil elevando a qualidade de vida da população”, mas por detrás do discurso difuso de desenvolvimento, o MBC publica estudos e promove eventos nos quais reza a cartilha neoliberal: reduzir o Estado, enxugar a máquina e fomentar privatizações (as chamadas “parcerias público-privadas”). No início do governo Sartori, o MBC contratou a PricewaterhouseCoopers (PwC), que apurou um rombo de 7,1 bilhões de reais como herança “maldita” do governo de Tarso Genro (PT, 2010–2014). O rombo foi amplamente noticiado pela imprensa, mas desmentido por Genro e, depois, pelos próprios técnicos do Tribunal de Contas do Estado (que aprovaram as contas de Tarso reiteradamente, a última vez por unanimidade).

O MBC esteve/está presente em diversos governos estaduais e até mesmo na gestão da ex-presidenta Dilma Rousseff, mas nem sempre seus serviços foram bem vistos. Em 2008, fiscais da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo contestaram um convênio com o MBC no valor de 8,5 milhões de reais. Os fiscais alegaram que, com a parceria, o Movimento teria acesso a dados de contribuintes e servidores, quebrando o sigilo fiscal previsto em lei — pois na prática o convênio entregava dados públicos ao setor privado. Anos depois, em 2011, nova contestação à OSCIP de Gerdau: durante o governo Rousseff, o MBC recebeu 120 mil reais para uma consultoria ao Ministério da Saúde. Na época, foram entregues como fruto do trabalho “ inacreditáveis 4 páginas”, como classificou, à época, o Tribunal de Contas da União.

Em setembro deste ano, Sartori palestrou no Congresso “Rota para o futuro: o novo Estado”, promovido pelo Movimento Brasil Competitivo. Na ocasião, o governador explanou sobre as propostas para tirar o RS da crise, ao lado do também governador Geraldo Alckmin. No evento, Sartori afirmou que pauta sua ação de governo pelo Acordo de Resultados, um levamento sobre a situação do Estado realizado pela Fundação de Economia e Estatística, uma das que agora ele pretende fechar

Sartori no Congresso promovido pelo MBC (Foto: Karine Viana/Palácio Piratini).

De acordo com dados do Sindicato dos Técnicos Tributários da Receita Estadual do RS (Afocefe) e do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda (Sinprofaz), só em 2016 4,5 bilhões de reais de impostos foram sonegados no Rio Grande do Sul. Para que se tenha uma ideia, o principal posto de fiscalização do ICMS no Estado, em Torres, literalmente desabouna semana passada. O presidente da Afocefe declarou, na ocasião: “Não é à toa que a arrecadação desaba no Rio Grande do Sul, já que o desmonte nas estruturas de fiscalização é visível. Negligenciar um posto fiscal, por onde passam mais de oito mil caminhões de carga por dia, é um desrespeito com o contribuinte, com os servidores públicos e com toda a sociedade, que deixa de ter atendidas suas necessidades básicas pela alegação de falta de recursos’’.

Sartori, sua equipe e as consultorias não previram uma forma de atacar a incessante sonegação. Foi assim com Britto e, antes, com Simon. Como eles, o governador peemedebista segue a cartilha do Estado mínimo de Gerdau. Os resultados já estão aí: em 2016, o RS registrou o pior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) desde 2005; nos últimos seis meses, os latrocínios cresceram 35% no Estado; a remuneração básica de um professor da rede estadual do Rio Grande do Sul já é a mais baixa do Brasil (R$ 1.039).

Atualmente, 530 mil gaúchos e gaúchas estão desempregados.

Chico Cougo é professor de História no Colégio Estadual Inácio Montanha e arquivista
https://medium.com/@chicocougo/rio-grande-do-desmonte-tr%C3%AAs-d%C3%A9cadas-de-ataques-ao-servi%C3%A7o-p%C3%BAblico-8d98e75b3996 




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