10 anos da Lei de Cotas

10 anos da Lei de Cotas

10 anos da Lei de Cotas para estudantes negros: ‘Era um ambiente hostil, havia um silenciamento’

'Maior conquista do movimento negro em três décadas', Lei de Cotas completa 10 anos em 2022 e deve ser revisada

Por   Fernanda Nascimento    fn.imprensa@gmail.com 


Uma das mais significativas políticas de inclusão do Brasil completa uma década em 2022 e deverá ser tema de intenso debate nacional: a Lei de Cotas. A legislação 12.711/2012 prevê uma revisão do programa 10 anos após a implementação. O principal ponto de debate são as cotas raciais, que estão na mira de diferentes segmentos sociais que negam ou não reconhecem o racismo como elemento estrutural da formação da sociedade brasileira e, consequentemente, das desigualdades sociais, culturais e econômicas. Na semana da Consciência Negra, o Sul21 ouviu histórias de alguns dos primeiros estudantes negros a ingressarem nas universidades públicas a partir das ações afirmativas. Nas lembranças, diferentes episódios de racismo, histórias de aprendizados para além da sala de aula e a percepção de que o debate posto se encontra em outro patamar, mas ainda está em disputa.

A Lei de Cotas prevê a reserva de 50% das vagas em universidades e institutos federais para pessoas oriundas de escolas públicas. Deste montante de vagas, metade são destinadas para a população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. Cada instituição também deve reservar um número de vagas para negros, indígenas e pessoas com deficiência que seja, no mínimo, proporcional ao percentual destas parcelas da população em seu Estado, seguindo dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No Congresso Nacional, mais de 30 projetos tramitam sobre o tema. Se, de um lado, algumas matérias propõem a ampliação do prazo para a revisão nacional; o estabelecimento de gatilhos com metas de inclusão para o fim da proposta ou a transformação da Lei de Cotas em política permanente no país, por outro, há projetos que defendem a exclusão do critério étnico-racial para o acesso ao ensino.

No Brasil, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi pioneira na implementação da política de cotas, em 2003. Aqui no Rio Grande do Sul, as primeiras universidades públicas a implementar políticas de ações afirmativas foram a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 2008 – quatro anos antes da legislação nacional. Atualmente, mesmo sem uma legislação específica, alguns cursos de pós-graduação já adotam políticas de inclusão que preveem reserva de vagas para pessoas a partir de critérios econômicos, sociais ou raciais.

Entre o racismo explícito em palavras, olhares e gestos, muitos estudantes negros chegaram às universidades e seguiram enfrentando preconceitos que já conheciam das ruas. E os corredores da universidade foram mais do que locais de aprendizado de conteúdo, se transformaram em espaços para a construção de reconhecimento e pertencimento.

“Me perguntavam se eu era brasileiro”   João Morales. 

O primeiro ano em que os estudantes pretos ou pardos passaram a ser maioria nas instituições públicas de ensino superior foi 2018, conforme o Censo da Educação Superior, elaborado pelo IBGE. Uma década antes, em 2008, quando João Morales ingressou no curso de Jornalismo da UFRGS, essa realidade era bem diferente: 38,2% dos estudantes do país se autodeclararam pretos ou pardos. Naquele ano, entrava em vigor o Programa de Ações Afirmativas da UFRGS, que estabelecia uma reserva de 30% das vagas dos cursos de graduação para estudantes egressos de escolas públicas – sendo metade deste percentual destinado para os estudantes autodeclarados pretos ou pardos.

E, se em 2007, antes do início do programa, o percentual de egressos de escola pública auto-declarados negros e classificados no vestibular da instituição era de 3,27%, no ano seguinte o número saltou: 11,04%. João Morales era um deles e sua presença foi, em algumas oportunidades, recebida com um racismo mal disfarçado de estranhamento.

“Eu lembro que sentia um pouco de apreensão, porque o debate ainda estava muito acalorado. Entrei e fiquei meio receoso do que poderia encontrar de oposição dentro da universidade. Mas é curioso, porque as situações se deram em um registro menos beligerante do que eu imaginava ou esperava. O que acontecia era que alguns professores me perguntavam se eu era brasileiro. E quando eu perguntava o porquê, alguns afirmavam que os estudantes negros costumavam ser africanos, outros desconversavam”.

Apesar de ter vivido menos tensões do que imaginava, Morales – que é brasileiro – precisou também explicar que não era um funcionário terceirizado da universidade – uma das únicas atividades profissionais em que a presença de pessoas negras não causa estranhamento nas instituições de ensino. Situações que, de acordo com sua percepção, se alteraram com o tempo, especialmente a partir da pressão dos estudantes negros dentro dos campus. “Tudo isso mudou a cara da universidade e, ao mesmo tempo, acho que impeliu certas atitudes. As pessoas começaram a se policiar mais, até porque estavam sendo confrontadas com mais competência”, analisa.

Morales se formou em 2015. No ano seguinte, ingressou de maneira concomitante no curso de graduação em Ciências Sociais e no mestrado em Antropologia Social. Hoje, mestre em Antropologia Social, cursa doutorado. Primeira pessoa da família a ingressar em uma universidade pública, desde 2008 segue ocupando a UFRGS.

Assim como Morales, ao ingressar na universidade, Silvana dos Santos Rodrigues tinha receio do que a esperava, em 2009. Medo da hostilidade, medo de ser perseguida, “medo de não saber usar os talheres no R.U. [Restaurante Universitário]”: “Eu pensava: ‘eu vou entrar e como é que vão me tratar?’. Nessa época a minha percepção era semelhante à do grande público. Meu letramento racial veio depois, ao longo da graduação”.

A formação profissional e acadêmica aconteceu junto com a formação social. Silvana começou a participar de atividades do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS) e a entender que as situações que passava não eram únicas, tampouco isoladas. A proximidade com a militância negra fez com que revisse situações que nem sabia nomear. “Fui começando a entender processos bem violentos que havia vivido. Pequenas coisas. A maneira como te tratam, como se tu soubesse menos ou como se o fato de não ter tido acesso a outro idioma fosse culpa tua, uma falta de esforço teu. Outra coisa que nunca me esqueço era de estranhar as aulas em que ouvia os professores falarem em ‘outra realidade’. Em uma sala de aula em que 30% das pessoas da turma eram essa ‘outra realidade’ e não eram ouvidas. A ‘outra realidade’ estava ali, cheia de desejos, cheia de capacidade e astúcia e não era ouvida”.

Oriunda da Lomba do Pinheiro e primeira pessoa da família a ingressar no ensino superior, Silvana enfrentou diversos confrontos com a realidade social diferente e desigual. Em 2013, trancou o curso de licenciatura em Teatro. No ano seguinte, começou a cursar a graduação em Políticas Públicas, mas não se adaptou. Voltou para o Teatro, mas sua área não era licenciatura: prestou novo vestibular e ingressou no bacharelado em Direção Teatral. Formou-se em 2019.

Com uma década na instituição, diz perceber poucas e lentas mudanças. “Existe um esforço, às vezes cínico, mas existe. Claro que é diferente de 12 anos atrás, eu vivia em um lugar solitário. Os cotistas eram sempre as pessoas negras. E as pessoas negras, cotistas ou não, tinham que sempre gerar respostas para as coisas que estavam acontecendo. Há uma preocupação, dos professores, em fazer falas mais politizadas e repensar a questão, mas ainda são passos lentos”.

Os 10 anos em que permaneceu na UFRGS são narrados por Silvana em sua produção artística e em seu trabalho de conclusão de curso: “Estatística negra: onde eu estiver sempre haverá uma – os verbos de ligação desta mulher negra nas artes cênicas em Porto Alegre”.

“A maior conquista do movimento negro em três décadas”   Matheus Gomes

Os primeiros egressos das políticas de ações afirmativas também começaram a ocupar espaços de poder na política institucional. Matheus Gomes, o quinto vereador mais votado no último processo eleitoral em Porto Alegre, ingressou na graduação em História em 2008, na primeira turma de cotistas. Liderança estudantil e das Jornadas de Junho de 2013, também participou das discussões para a criação dos primeiros grupos de alunos que ingressaram a partir das ações afirmativas.

“Eu lembro de ser retirado da fila do restaurante universitário porque o segurança achou que eu não era um aluno. Lembro de ser barrado na entrada da biblioteca. Além de uma campanha dos estudantes da UFRGS afirmando que ninguém deveria deixar as mochilas no R.U. porque era perigoso, porque agora havia cotistas. E a gente enfrentava um preconceito bem grande quando começamos a nos organizar”.

Ao longo dos anos, diferentes coletivos formados por estudantes participaram das discussões para a ampliação e manutenção de políticas de ingresso e permanência na graduação e pós-graduação. Em muitos locais, os estudantes também protagonizaram as denúncias às fraudes de cotas e o debate sobre a elaboração de estratégias para fiscalização da efetiva implementação das ações, especialmente no preenchimento das vagas destinadas às pessoas negras e indígenas.

Para Matheus Gomes, há um amadurecimento do debate sobre a importância da política de ações afirmativas, que travará tentativas de retrocesso. “As ações afirmativas são a maior vitória que o movimento negro teve nas últimas três décadas e ajudou a reposicionar a luta antirracista na sociedade. Sei que existem mais de 30 projetos sobre o tema no Congresso e que o presidente [Jair Bolsonaro] é contrário, mas já há um grau de consolidação. As cotas transformaram a vida de muita gente e é muito difícil que consigam nos derrubar neste aspecto. Criamos uma barreira difícil de ser ultrapassada”, analisa.

“A gente quer pessoas ingressando e egressando”  Winnie Silva. 

A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) também iniciou uma política interna de ações afirmativas em 2008, antes da criação da Lei de Cotas. Naquele momento, uma votação apertada, com 19 votos favoráveis e 18 contrários, foi responsável pela implementação do Programa de Ações Afirmativas de Inclusão Racial e Social da UFSM. A maior divergência era a criação de cotas raciais.

Em 2010, Winnie Silva, ingressou na segunda turma do recém criado curso de Engenharia da Computação da universidade. Em uma turma de 40 alunos era a única mulher negra. “Entrei por cotas por ser uma oportunidade, um direito, mas não era uma militante. Eram cinco meninas e 35 meninos. Eram três pessoas negras na turma. E em nenhum momento esse assunto era discutido, ninguém queria ser chamado de cotista”, relembra.

Em uma das primeiras aulas, ao ser questionada por um professor sobre a origem do nome, explicou que se tratava de uma referência à Winnie Mandela – ativista e política sul-africana. “Quando pequena eu não gostava, porque não entendia. Quando ele perguntou, fui explicar a história por trás e o professor começou a debochar na frente da turma. Lembro até hoje dessa cena”.

Conhecer o movimento negro universitário “foi uma virada de chave”. E a aluna que havia ingressado sem um conhecimento aprofundado da discussão sobre as ações afirmativas acabou atuando como bolsista no Observatório de Ações Afirmativas para o Acesso e Permanência nas Universidades Públicas da América do Sul, o Afirme, na UFSM, e contribuiu para a construção de importantes documentos avaliativos da política de cotas na instituição. “A gente começou a estudar quem eram os cotistas da universidade, o número de ingressos, o número de egressos. E um dos pontos mais marcantes que lembro é a importância da assistência para a permanência. A cota abre uma porta para entrar, mas a gente precisa de um acompanhamento para permanência”.

Winnie trancou a universidade em 2013. Realizou uma formação em nível técnico em Química. Retomou a graduação e concluiu o curso de Engenharia da Computação em 2018. “Em 2010 eu não sabia de nada. Três anos depois eu estava falando sobre o tema, exigindo respeito e defendendo a importância da política”, relembra. Este ano, foi uma das autoras a assinar o e-book lançado pela editora UFSM: “10 anos de ações afirmativas na UFSM: relatos de experiência”.

A ex-coordenadora do Afirme, Ana Lúcia Aguiar Melo, afirma que a trajetória de Winnie é ilustrativa da experiência de muitos estudantes que ingressaram por ações afirmativas. “Ela demorou, mas se formou. Por muitas situações, os cotistas podem ficar retidos ou demorarem mais tempo, mas eles não desistem. Eles têm todas as dificuldades, mas não desistem”, afirma. Servidora aposentada da universidade, doutora em Políticas Públicas e professora voluntária do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Sociais e Humanas da UFSM, Ana Lúcia participou de discussões para a criação de políticas específicas para o atendimento de demandas de estudantes ingressantes por políticas afirmativas. E avalia que ainda há um longo caminho a ser enfrentado, como as políticas na pós-graduação. “Há um conhecimento que ficou represado por décadas e que hoje estamos vendo o início da discussão. Não dá para pensar em parar”, avalia.

Assim como muitos estudantes negros com poucos recursos financeiros, Tenório começou a trajetória no ensino superior em uma instituição de ensino privada – onde permaneceu durante três anos. Com dificuldade de pagar a mensalidade em um período pré-cotas, decidiu parar o curso e estudar para o vestibular, sonhando ingressar na universidade pública. Conseguiu uma das vagas e ingressou no bacharelado em Letras na UFRGS. Permaneceu no curso por três anos até perceber que queria fazer Licenciatura. Já estava dentro da universidade quando o debate sobre cotas se acirrou e enquanto tentava, sem sucesso, a transferência para a Licenciatura viu a política de ações afirmativas ser aprovada na universidade. Fez novo processo seletivo e ingressou, dessa vez, como um dos primeiros cotistas.

“O que se ouvia nos corredores eram coisas absurdas. Que a universidade ia colocar gente despreparada, que o curso ia diminuir sua pontuação, que os profissionais seriam ruins, que sofreriam discriminação no mercado de trabalho… Os professores, de certo modo, diferenciavam alunos cotistas dos não cotistas. Era um ambiente hostil, havia um silenciamento, as pessoas não falavam que eram cotistas”, relembra.

Por aproveitar disciplinas já cursadas anteriormente, Tenório se formou dois anos após o início das ações afirmativas na UFRGS, em 2010. Mesmo período em que viu florescer um movimento negro mais organizado internamente. “Os dois primeiros anos foram muito difíceis. O assunto não era tocado o tempo todo, os estudantes negros tinham medo de ser prejudicados, de sofrer retaliação, de mostrar sua identidade. E aí, depois, você começa a ver a universidade mais colorida, mais organizada e com transformações também no currículo”.

Tenório, assim como todos os egressos entrevistados, vê uma gradativa e lenta transformação que impacta a universidade internamente: em seus debates e, de forma mais reduzida, em seus currículos. “É muito difícil que no curso, em algum momento, não exista uma discussão sobre pautas que atravessam a questão racial, porque se tornou incontornável. Esses alunos negros trazem demandas, esses alunos acabam forçando uma mudança ou uma inclusão. Mas claro, essa transformação ainda não aconteceu no corpo docente”.

 

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