100 anos de Paulo Freire

100 anos de Paulo Freire

100 anos de Paulo Freire: debates para pensar a educação do nosso tempo

Federico Puy

Virginia Pescarmona

Este ano se completam 100 anos do nascimento de Paulo Freire e, no último 2 de maio, 24 anos desde a sua morte. Por meio da virtualidade, não faltam encontros nacionais e internacionais para discutir a atualidade de seu pensamento. Queremos propor alguns debates e contrapontos para pensar e repensar a educação no sistema capitalista, dialogando com um de seus críticos mais famosos, sabendo que estamos em um cenário particular em meio à pandemia, onde tanto se fala em educação, a partir dos governos e grandes meios de comunicação, mas tão pouco se reflete.


Um reencontro com Freire

Ir a um encontro com Freire abre múltiplos debates para nós. Vamos nomear quais, a nosso ver, são os mais importantes, e vamos aprofundar, particularmente, em sua trajetória como marco da reflexão sobre a relação entre a questão pedagógica, a luta de classes, o “homem novo” e a “conscientização”. Mas, fundamentalmente, queremos enfatizar a questão do caráter do Estado, a relação do Estado com a sociedade civil e a educação, a escola e seu papel em tudo isso.

Resumidamente, para o leitor mais afastado do mundo da educação, diremos que Paulo Freire nasceu em 1921 em Recife, no nordeste do Brasil. Em 1947 ingressou no Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria. Segundo ele, foram as conclusões deste trabalho que lhe permitiram elaborar, posteriormente, uma de suas obras mais conhecidas, traduzida em mais de 20 línguas e uma das mais citadas por pedagogos de todo o mundo: a Pedagogia do oprimido . É com esse texto que mais dialogaremos nesta nota.

O educador participou de várias experiências estatais de colaboração e elaboração de planos educacionais e planos de alfabetização. Fez parte do primeiro Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade de Recife e, em 1963, como parte do governo João Goulart, lançou sua famosa Campanha Nacional de Alfabetização, que começou com trabalhadores das plantações. Ele propôs ampliar um direito democrático elementar, uma vez que a alfabetização era um requisito para votar. Essa operação atingiu 5 milhões de brasileiros.

Durante a ditadura militar que começou em 1964, ele ficou preso por 70 dias e depois foi para o exílio no Chile por 16 anos. Após a ditadura, foi Secretário da Educação do município de São Paulo entre 1989 e 1992, como integrante do Partido dos Trabalhadores (PT). Faleceu em 2 de maio de 1997.

Como ele mesmo definiu, a educação é um “ato político”, por isso acreditamos que podemos, então, analisar politicamente e discutir suas posições e experiências, como parte integral de suas concepções e experiências políticas. Desse ângulo, não seremos neutros sobre isso.

Para além das suas obras mais conhecidas, como Pedagogia do oprimidoPedagogia da esperançaPedagogia da autonomiaCartas a quem ousa ensinar, existem também textos como os decorrentes da sua experiência como Secretário da Educação do Município de São Paulo, A educação na cidade e Política e Educação.

O autor é estudado nos cursos de Pedagogia, nas Ciências da Educação, licenciaturas e na formação de professores, além de em experiências pedagógicas alternativas, grupos e organizações políticas e sociais. Evidentemente que não deve haver pessoa ligada à educação que não tenha uma opinião (positiva ou negativa) em torno da ideia postulada pelo pedagogo: “a educação é um ato político”.

Mas também é preciso reconhecer que uma frase de Freire sempre fica bem para um discurso oficial, um ato formal, uma carta ou uma epígrafe. Seu uso adocicado tenta tirar a força do que questionava e que, a seu modo, motivava seu trabalho: transformar uma realidade insuportavelmente desigual, injusta e opressora para a vida de milhões de trabalhadores, camponeses, diaristas, indígenas e mulheres.

Sem ir muito longe, o ministro da Educação da Argentina, que não garante dispositivos, internet ou orçamento para que milhões não fiquem de fora do sistema educacional em meio a essa pandemia, também acredita que tem credenciais para homenagear Freire.

É que sobre Freire podemos encontrar todos os tipos de leituras. Como sintetiza Adriana Puigross [1], há leituras que o reduzem à análise de seu método e analisam a “palavra geradora” como doutrina e “no outro extremo, a contribuição de Freire se limitou a um método de ensino, aplicado em programas assistencialistas ou absorvido pelo formalismo escolar.” Também há ataques brutais como os de Bolsonaro contra sua figura e obra: ele “entraria no Ministério da Educação com um lança-chamas para eliminar Paulo Freire”, disse o presidente brasileiro em sua campanha eleitoral de 2018. O certo é que, excluindo a recalcitrante direita, ele é reivindicado pelos mais diversos setores progressistas.

Para quem transita pelas salas de aula (de forma presencial ou online) e mais, diante da pandemia, com um regresso às aulas contraditório, difícil, ou melhor, caótico e perigoso, em que o centro da discussão está nas dificuldades e contradições do caso, acreditamos que contribuirá para tentar aproximar posições e contrapontos sobre nossos referenciais e práticas pedagógicas e a obra de Paulo Freire.

Três ideias centrais de Paulo Freire

Sem querer simplificar sua vasta produção, acreditamos que podemos organizar suas ideias em três pontos centrais:

1) A educação como ato dialógico. Educação é diálogo, é interação de saberes, que retira o aluno do lugar de “depósito” e também retira o professor do lugar de possuidor do saber que deve ser transmitido ao educando. Trata-se de converter a instância pedagógica em uma instância de “negociação cultural”, “negociação de significados”. A chave de sua visão libertária está na possibilidade de educar quem educa e romper com os papéis de oprimidos e opressores na relação educacional. Nesse sentido, parece-nos um marco para pensar a questão pedagógica. Nós escrevemos sobre isso aqui.

2) Que toda fragmentação do conhecimento produz compartimentos estanques em nosso aprendizado. O conhecimento é o conhecimento da realidade para voltar a essa realidade e transformá-la, e toda fragmentação nos impedirá de ter uma visão global sobre o mundo, favorecendo uma visão restritiva e, portanto, dificultando sua transformação. Nesse ponto, propõe que o conhecimento deveria ser uma rede de saberes articulados, a partir de uma visão humanista e transformadora da história, e da história como história global. Somos seres “em relação”, transformamos o meio ambiente enquanto nos transformamos, e na ação concreta estruturamos a consciência, como reflexo da realidade material. Segundo Freire, esse aspecto da circulação do conhecimento e a forma como ele é transmitido não é acidental ou ingênuo. Para o pedagogo, as classes populares não carecem de compreensão nem de capacidade, mas uma falta de compreensão crítica se deve “às condições precárias em que vivem e sobrevivem, porque há muito tempo lhes é proibido saber”. Dentro desse próprio pensamento, ele monta outra dialética na qual “como indivíduo e como classe, o opressor não liberta nem se liberta. Libertando-se na e para a luta necessária e justa, o oprimido, como indivíduo e como classe, liberta o opressor pelo simples facto de o impedir de continuar a oprimir…”.

3) Educação bancária. O conceito de educação bancária é para Freire uma definição política. O termo “bancária” não é ingênuo. Embora seja usado como sinônimo de “depositária”, estamos falando de uma característica que se aprofunda com o capitalismo em sua etapa neoliberal/financeira. Partindo desse ponto crítico da educação “tradicional”, ele afirma que “ninguém educa ninguém” ou que “o educador deve ser educado”. Este olhar questiona a concepção de desigualdade evidente imposta pela educação moderna. A “razão pedagógica” é a naturalização da desigualdade em que há donos do saber e despossuídos dele. Neste ponto, falamos de uma coincidência com as pedagogias críticas que questionam o chamado “reprodutivismo”.

Entendemos que todo o desenvolvimento crítico sobre a educação em Freire não é um ataque à escola em si, mas uma visão que questiona a “relação pedagógica” imposta a um sistema baseado na desigualdade. Ele considerou que o que se deve romper é com a dialética desigual entre “educador-educando” em uma sociedade dividida em classes. Divisão esta que, entendemos, é garantida por um Estado próprio da classe opressora. Neste ponto abre-se um debate fundamental, uma vez que ter uma concepção sobre a estrutura social do capitalismo como desigual, e a educação como não alheia a ela, não resolve o problema. A pergunta necessária é: como acabar com essa desigualdade? Freire interpela, não há dúvida. Está em nós fazermos uma leitura crítica e aceitarmos o desafio.

Uma educação libertária e humanista é possível neste sistema?

Esses três pontos que acreditamos estruturar uma parte importante do pensamento de Freire, centrado na busca de uma consciência individual e coletiva por meio de uma pedagogia crítica, são atravessados ​​por aquela que, em nossa opinião, não foi suficientemente desenvolvida pelo pedagogo, e é a questão do caráter de classe do Estado. Fato curioso, já que o próprio Paulo Freire expôs grande parte de sua prática como funcionário de diferentes Estados burgueses. Por isso e, segundo nossa perspectiva, para debater e trazer Freire 100 anos após seu nascimento, a análise deve contemplar não apenas a estrutura de classes do capitalismo atual, mas também a do Estado.

É por isso que não vamos ignorar o fato de que suas práticas incluem posições díspares em relação ao Estado (e diferentes regimes em particular em diferentes décadas): isso inclui desde práticas alternativas a colaborações com distintos governos no Chile, Brasil, Portugal ou Guiné-Bissau e outras nações africanas. Em 1973, chegou a participar de um treinamento para alfabetizadores como parte da política educacional do ministro Taiana durante a presidência de Cámpora na Argentina. A partir dessa experiência surge a sua obra Pedagogia da esperança, onde relata de forma clara como o Estado atuou naquele momento. Por um lado, o jornal Clarín intitulou a visita como “Um revolucionário na pedagogia”. Por outro, as entrevistas com os educadores que ele deveria formar, convocados pelo próprio governo, foram infiltradas por policiais: “a presença deles revelou o desequilíbrio entre o poder e governo. Do início ao fim, tratava-se de uma reunião oficial, promovida pelo governo, convocada pelo Ministério da Educação e, mesmo assim, os órgãos repressores tinham o poder de se infiltrar e vigiar”. Freire dará conta disso no mesmo livro, mas sem uma análise da profunda relação de classe entre esses eventos. Não eram regimes de governo diferentes do mesmo Estado da mesma classe? Tudo isso confirma a necessidade de discutir quais concepções sobre o Estado estão subjacentes.

Podemos concordar que hoje a situação do capitalismo é diferente daquela conhecida pelo próprio Freire e, portanto, o papel da escola e o papel do Estado também foram mudando sua aparência de acordo com as necessidades do capital, para o estágio de desenvolvimento do forças produtivas e da luta de classes. É claro que os avanços mercadológicos da educação foram barrados como resultado de importantes lutas populares e direitos em relação à educação pública foram conquistados. Mas, com avanços e ataques, como temos refletido em diferentes artigos, estamos diante de uma escola cada vez mais transformada por organismos de crédito internacionais como o FMI, o Banco Mundial ou a OCDE, onde os governos a consideram um enorme e organizado depósito de crianças, para que as famílias trabalhadoras tenham e possam trabalhar longas horas, garantindo uma grande economia aos capitalistas nas tarefas de cuidado e criação. A pandemia, com sua virtualidade e sua presencialidade, exacerbou todas essas contradições e, ao mesmo tempo, as expôs à vista de milhões.

O que opinamos ser mostrado é o limite de pensar a transformação social com mais dessa educação, mas também com uma versão voluntarista do desenvolvimento de uma pedagogia crítica dentro do estado burguês, à margem dele, dentro ou fora de sua escola capitalista.

Uma pedagogia do (para, com, a parte de?) oprimido

Desde a década de 1960, Freire trabalhou com conceitos que expõem o aprofundamento da desigualdade social no sistema educacional. Atribuiu à educação transmitida pelos estados capitalistas as características de elitista e autoritária.

Sabemos que sua obra não é estritamente pedagógica. Suas reflexões e balanços de experiências configuram uma proposta política: a necessidade de reconhecer, tomar consciência da opressão, para que o sujeito (coletivo) assuma a luta por sua libertação. Nesse sentido, Freire propôs uma pedagogia que faça da opressão e de suas causas o objeto de reflexão dos oprimidos. Em Pedagogia do oprimido ele diz que ela deve ser elaborada com ele e não para ele (oprimido), numa luta permanente pela recuperação da própria humanidade. Dessa prática deveria resultar o compromisso necessário com a luta pela libertação, na qual essa pedagogia será feita e refeita.

Consequentemente, ele suscita dois “momentos” políticos interligados, que se relacionam. Para Freire, trata-se da passagem de uma “consciência ingênua” para uma “consciência crítica”, de gerar/construir a consciência de que se é oprimido e de que é preciso assumir o controle da própria vida, em termos individuais e coletivos. A pedagogia que fomenta este processo é, para o pedagogo, uma “pedagogia da libertação”. Essa tensão e “acúmulo” de consciência contra as “falsas” mensagens das classes opressoras culmina no compromisso “radical” de agir. Freire fala de compromisso social, político, sindical ou nos movimentos.

Parece-nos que podemos dialogar virtuosamente com essa ideia, já que a proposição é que não se trata apenas de “construir consciência” a partir de fora (embora principalmente sim), mas que efetivamente os oprimidos são os criadores de seus destinos, que tomam controle de suas vidas e seu futuro. A ação consciente dos opressores, colonizadores e dominadores deve ser confrontada com “a palavra e a ação organizada e coordenada dos oprimidos” [2]. Isso ele chamará de práxis.

Nesse sentido, Freire escreveu: “A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.” [3].

O ponto polêmico é que, para Freire, existe uma ideia que antecede a ação: a consciência do oprimido que deseja deixar de ser oprimido. Ele dirá que para existir é preciso “dizer” a necessidade de transformar o mundo. Este processo de “libertação permanente” colide frontalmente como um ponto de vista utópico, humanitário e evolutivo, desvinculado da luta de classes “como motor da história”, onde se gera a consciência de classe. Ou seja, colide com uma concepção materialista histórica da própria humanidade.

A respeito dessa questão, recuperamos uma reflexão que Leon Trótski publicou no panfleto de 1923, “As tarefas da educação comunista”, onde afirmava que “o ponto de vista utópico e psicologicamente humanitário é que o novo homem deve primeiro ser formado e que, então, ele criará as novas condições. Não podemos acreditar nisso. Sabemos que o homem é produto das condições sociais. Mas também sabemos que existe uma relação mútua, complicada e ativa entre os seres humanos e as condições. O próprio homem é produto desse desenvolvimento histórico e não o inverso. E nessa complicada interação histórica de condições experimentadas por seres humanos ativos, não criamos o cidadão abstratamente harmonioso e perfeito da comuna; nós formamos os seres humanos concretos de nosso tempo, que ainda devem lutar pelas condições capazes de fazer nascer o cidadão harmonioso da comuna” [4].

Por isso acreditamos que uma pedagogia crítica não é suficiente, mas é necessária. Sabemos que o Estado burguês (nas mãos dos opressores e exploradores) não se “extinguirá” ao tomar consciência do seu papel na garantia da exploração e da opressão. Como Marx, Lenin, Trótski e todo o marxismo revolucionário já debateram, a chegada da classe trabalhadora ao poder deve implicar a destruição do Estado burguês no que diz respeito aos seus pilares fundamentais: sua máquina burocrática e militar e sua substituição por outra de um caráter muito diferente. Nem o seu aperfeiçoamento, nem a sua reforma, nem a mudança de atores. Tanto para os autores do Manifesto Comunista quanto para o autor de Estado e revolução e construtor do Estado operário na Rússia, o que se “extinguiria” é o Estado que emergiu da revolução em um estágio avançado de socialismo , mas não o Estado burguês [5]. Este deve ser derrubado, destruído e, assim, construir um para a maioria. E dito isso, abrimos um diálogo.

Sociedade civil vs. Estado? Onde está a escola?

Para pensar o debate e desdobrá-lo, acreditamos que a melhor forma de estruturar o lugar que a escola ocupa é a noção de “Estado Integral” formulada por Antonio Gramsci (também lido mil vezes e com tantos “usos” em alguns mesmos setores políticos que “recitam” Freire). Recordemos que, numa passagem escrita em 1931, afirmava que: “a noção geral de Estado inclui elementos que remetem à noção de sociedade civil (nesse sentido, poder-se-ia dizer que o Estado é sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia blindada de coerção)”. Também em um trecho escrito em outubro do mesmo ano, ele define o Estado integral da seguinte forma: o “Estado, em seu sentido integral é ditadura + hegemonia” [6].

Temos uma visão em que os elementos que constituem o Estado integral não se opõem organicamente. A categoria implica a distinção metodológica entre a sociedade civil (partidos, sindicatos, clubes, jornais, associações culturais, e um longo etc.) e a sociedade política ou o Estado, em um processo histórico onde os dois pólos se cruzam, sendo característico do Estado integral que o próprio aparato do Estado estabelece certas funções “consensuais” (reconhecimento de certos direitos sociais garantidos pelo Estado), enquanto a sociedade civil também pode cumprir funções repressivas. É um “consenso” como produto da relação de forças.

Entendemos que Gramsci não situa esquematicamente a escola em nenhum dos dois pólos da definição do Estado integral, e justamente por isso essa definição nos ajuda a tornar mais complexa seu papel em seus dois aspectos, tanto disciplinares (normas, organização escolar, verticalidade, o que Freire chamou de “educação bancária”), como de hegemonia (igualitarismo, acesso, consenso). A localização histórica da escola, em termos teóricos e políticos, gerou muitos debates entre aqueles que a consideravam apenas como parte da “sociedade civil” (consenso) ou apenas como parte do Estado (coerção), onde neste último e em termos gerais, podemos localizar concepções como as do próprio Louis Althusser (que situava a escola como parte dos “aparatos ideológicos do Estado”), tão amplamente lidas e utilizadas no campo pedagógico. E os “usos” da própria concepção de Freire também escorregaram, situando-se em um ou outro pólo do que Gramsci sintetiza no Estado Integral. O que nos parece claro é que dadas as necessidades do próprio capital, há um impulso para que o Estado desenvolva grandes sistemas educacionais massivos, e a luta e a conquista da educação pública tem seu aspecto de integração direta como instituição direta do Estado.

Por que trazer essa definição de Gramsci para pensar em Freire? Embora o primeiro não tenha sido um escritor sobre educação em termos estritos, ainda que tenha muitos trechos a respeito, trazê-los e fazê-los de alguma forma dialogar nos ajuda a pensar no sentido de que um projeto educativo da natureza proposta por Freire entra em contradição pelo Estado capitalista, como foi sua própria experiência como servidor público em São Paulo. Um projeto de “conscientização” como dissemos acima – que, nos termos de Freire, define-se como práxis revolucionária – encontra necessariamente qualquer estrutura econômica capitalista, tanto em regimes “democráticos” como em ditaduras, que pouco mais ou pouco menos mantiveram inalterada a estrutura da educação e os elementos centrais da crítica à relação pedagógica feita pelo pedagogo brasileiro. E falamos tanto nas leis e na prática pedagógica, nas lógicas ou significados do currículo, quanto como uma escola que se “adapta” às necessidades do mercado.

Há muito que se tenta limitar a ação pedagógica proposta por Paulo Freire a uma luta de ideias ou “batalha cultural” e, em casos mais “bárbaros”, a um mero método de alfabetização. De diferentes áreas, essas concepções têm sido tributárias da ideia da possibilidade de uma maior democracia, da resolução dos conflitos sociais por meio da racionalidade de um diálogo entre iguais em que se vença a batalha por “toma a palavra”.

Mas quanto mais pesquisamos e lemos, mais se descobre que é uma forma de lapidar sua própria palavra, suas aspirações e suas ações: “A ação cultural para a liberdade, ao contrário, faz criticidade, mobiliza a luta organizada e coordenada dos oprimidos para recuperar e fortalecer sua identidade cultural, transformando e abolindo tudo o que os impede de SER. Seu objetivo é a transformação revolucionária da sociedade” [7].

Nós lemos isso, mas tentamos entender as contradições. Recuperamos e tornamos nossas as incógnitas do próprio Freire: pode-se recuperar a palavra e o poder dos oprimidos se o funcionamento social for governado por aqueles que estão mais interessados ​​em condená-los ao silêncio eterno? Sua obra expressa uma imensa aspiração que se choca com as diferentes etapas das concepções que o próprio Freire suscitou e suas colaborações com as experiências de Estado.

Um marxismo particular

Freire teve um momento de interpretação do “marxismo” e de utilização de conceitos como alienação e exploração. Ele falou em seu próprio modo de luta de classes, como quando expressa que “os semi-discursos da chamada pós-modernidade falam da morte das ideologias, mas acontece que só há uma maneira de matar a ideologia e é ideologicamente. Esses semi-discursos argumentam, por exemplo, que não existem mais classes sociais. Eu digo, está bem, suponhamos, para continuar com o exemplo, que as classes sociais acabaram. Bem. Agora eu pergunto: acabou a exploração? Se disserem que sim, que a exploração acabou, peço que me mostrem um lugar no mundo onde isso aconteceu. Não podem. Infelizmente a exploração continua, e se a exploração continua, então as classes sociais continuam: uma explorando e outra explorada” [8].

Há um reconhecimento dos setores de poder empresarial, latifundiários, mídia, etc. Mas seus postulados incluem também a ideia de que o opressor está em nós mesmos e que é necessária uma transformação radical das consciências. Essa abordagem também o configurou a partir de uma perspectiva crítica da burocratização da URSS, a qual considerou inevitável. Ele tem uma visão “humanista” da mudança social e foi diante da queda do Muro de Berlim que definiu sua aspiração: “socialismo com liberdade”. Infelizmente, a análise se limitou a questionar a burocracia e não as relações sociais que estavam em jogo e o que significava o triunfo temporário das ilusões na restauração capitalista e na democracia burguesa. Assim surge uma equiparação da burocracia para toda política organizada dos trabalhadores como algo inevitável, o que leva a supor que não há outra opção senão optar por “males menores”, “progressismos”, dentro do sistema político existente.

Encontramos uma tensão permanente entre o materialismo e o idealismo: “A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na ‘invasão da práxis’, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens” [9].

Entendemos que essa tarefa, é claro, pertence a homens e mulheres, mas não em geral, mas a uma classe que se torna consciente não só em si, se não para si, como diz Marx, isto é, revolucionária. Marx vai resgatar no mesmo texto a ação do “partido revolucionário” (no sentido marxiano) em sua tarefa de não só tornar visível e reflexiva a ação das massas, mas também generalizá-la. Se a história da humanidade é a história da luta de classes, esse processo vital pertence à sociedade como um todo, com suas classes. A praxis é a ação revolucionária que surge do choque inevitável e permanente (latente ou não) dessas forças. A praxis, como tal, é se for em um sentido revolucionário. Se não, é idealista.

O idealismo pode assimilar o inverso: opressão-liberação. E também a abstração: “ideal de liberdade”. Mas ele não pode explicá-lo sem ir ao prático, ao material: a divisão do trabalho, as formas concretas de produção, os mecanismos de exploração e opressão que se configuram nas sociedades de classes concretas. Marx, em suas Teses sobre Feuerbach, de 1845, polemizou: “Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, da duplicação do mundo no mundo religioso, representado, e num real. [...] Ele perde de vista que depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o principal. É que o fato de esta base mundana se destacar de si própria e se fixar, um reino autônomo, nas nuvens, só se pode explicar precisamente pela auto divisão e pelo contradizer-se a si mesma desta base mundana. É esta mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida na sua contradição e depois praticamente revolucionada por meio da eliminação da contradição. Portanto, depois de, por exemplo a família terrena estar descoberta como o segredo da sagrada família, é a primeira que tem, então, de ser ela mesma teoricamente criticada e praticamente revolucionada.” [10].

E é justamente um dos aspectos que vamos encontrar em Freire: uma vocação para reunir ideias diversas e não complementares, como o marxismo e a religião. Inserido em um movimento que se desenvolveu na década de 1960, denominado Teologia da Libertação, Freire se reconheceu como pessoa de fé e portador, como tal, de uma obrigação para com os pobres e oprimidos. Sua aspiração de construir o paraíso no aqui e agora da Terra, parte do que ele chama de ideia a priori: a fé nos homens. A crença na criação torna-se compatível, para o pedagogo, com a libertação, pois “Deus” não está fora das relações sociais, mas está presente ou ausente nelas. Segundo o próprio Freire, “Quase sempre este fatalismo está referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potências irremovíveis – ou a uma distorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se encontra a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza,
encontra no sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus” [11].

Ele não usará a ideia de “Deus” como um consolo para as misérias, nem como uma meta infinita no quadro de uma vida e uma Terra finita, nem como uma legitimação final do estado de coisas. Mas essa ideia, em última instância de uma criação imperfeita, e na qual a luta pela libertação tornará possível superar a desumanização, é a base da contradição mais importante de toda a sua elaboração teórica e sua experiência prática. Porque não considerar a própria fé em determinada divindade e fé (e não em outras, neste caso) é negar sua própria origem histórica e social, como criação do próprio ser humano, e não o contrário. Nesse sentido, sua aspiração libertária esbarra em uma necessidade do homem e da mulher, que é se libertar de tudo, inclusive das ideias religiosas que são produto da alienação em um sistema baseado na exploração e opressão e na construção de um mundo efetivamente novo.

Algumas conclusões

Muitos professores se esforçam para implementar outros tipos de pedagogias, consideramos normas e técnicas participativas, inovadoras, mas no momento em que o sistema nos pede, por exemplo, que avaliemos, mergulhamos no mar de lama do mai rançoso positivismo. E não é o único exemplo das contradições pelas quais os educadores passam ao realizar a tarefa nas condições atuais. Pensar o método desvinculado de uma estratégia política confere-lhe um valor reformador, o que é uma verdadeira utopia. Vemos como um grande limite para aprofundar esse debate colocar “uma muralha da China” entre a escola e a realidade.

As diferentes experiências de Freire como funcionário do Estado são reveladoras por si mesmas. Sempre tiveram a contradição de tentar realizar de forma “alternativa” um projeto baseado no fortalecimento da “sociedade civil”, como se fosse possível em paralelo ao Estado (administrado neste caso por seu próprio partido) com políticas de democratização das instituições educacionais (eleição direta das autoridades, direção a partir das assembleias com famílias e estudantes) e descentralização financeira (que, estando ligada a um Estado burguês nacional e a educação a organismos internacionais de crédito, alcançava um propósito muito diferente).

Acreditamos que há “usos de Freire” que omitem um aspecto importante de seu pensamento: aquele que diz que o educador também está aprendendo, e que o processo pedagógico, o processo de conscientização, não pode ser apenas “de fora”, mas um pouco de fora e de dentro em um relacionamento permanente. Nesse sentido, a interpretação da educação capitalista como bancária, desumanizada (alienada) e despersonalizada, e onde não ocorre um “diálogo libertador”, é a antítese de uma pedagogia da libertação. É por isso que assumimos que esta educação bancária apenas reforça as cadeias de opressão, e a luta contra ela deve ser acompanhada por uma experiência revolucionária de rouptura com a ordem burguesa [12]. Este processo não pode surgir de vontades individuais, mas da mão do desenvolvimento de organismos de autodeterminação da classe que pode estruturar um futuro e verdadeiro estado dos de baixo.

Acreditamos que com mais e melhor educação, mesmo nos níveis de consciência e subjetividade que Freire suscita para as classes populares, não basta para conquistar outra sociedade sem exploração ou opressão. Embora também lutemos ferozmente por isso.

Como Marx e Engels tão bem explicaram desde o Manifesto Comunista de 1847, existem oprimidos e opressores em todas as sociedades de classes. É por isso que a luta contra a opressão faz parte da luta contra o sistema capitalista. A partir dessa convicção, sabemos que a democracia capitalista, quando forçada pela relação de forças, é capaz de reconhecer e endossar certos direitos democráticos, como a extensão da educação pública, inclusive em algumas etapas universalizando a alfabetização ou reconhecendo identidades diversas e culturais. Mas não pode prescindir da exploração (da extração da mais-valia e da acumulação de capital). É por isso que a luta contra a opressão é a luta contra o sistema capitalista. Lutar contra todas as opressões raciais, de gênero, etc., é parte da luta para que a classe trabalhadora se torne hegemônica, dirigente, uma alternativa diante dos exploradores, suas políticas, seus governos e seu Estado. E que nessa luta precisamos de uma concepção clara do papel do Estado e uma luta para assumir esse Estado para destruí-lo, e não transformá-lo, reformá-lo, melhorá-lo por dentro. Isso é uma utopia.

Assumir o Estado para construir um novo das maiorias implicará também a tarefa de construir uma nova educação. Por isso, enquanto nós, socialistas, defendemos a educação pública como um direito de todos os trabalhadores, lutamos para transformar a sociedade como requisito para alcançar uma educação libertadora, a partir das necessidades da grande maioria. Uma educação ao serviço do desenvolvimento ilimitado das possibilidades da criação humana, num mundo não alienado. Nas palavras do pedagogo russo Lev S. Vigotsky em “O marxismo, pedra angular da psicologia vigotskiana”, de 1926: “a vida se converte em criação somente quando se liberta definitivamente das formas sociais que a deformam e mutilam. Os problemas da educação se resolverão quando os problemas da vida forem resolvidos”. Uma “ação pedagógica para a liberdade” seria tal na medida em que “converte-se, assim, na resposta conjunta, inclusiva e comunitária dos oprimidos para transformar a ordem estabelecida. União e organização [...] envolve desenvolvimento contínuo até a consolidação do movimento e da luta revolucionária” [13].

Entendemos que somente neste último e complexo sentido a pedagogia poderia deixar de ser do “oprimido” para ser libertadora em todos os sentidos, como parte de um projeto revolucionário que não almeja apenas conquistar um pouco mais de direitos, de espaços, de voz, mas tomar o poder para abrir um caminho de verdadeira libertação para o pleno exercício da liberdade, numa sociedade sem exploradores nem opressores: nem mais nem menos que uma sociedade comunista. Repensando esta aspiração, que partilhamos, e pensando-a numa perspectiva revolucionária, queremos que seja a nossa contribuição na revalorização daqueles que, com contradições, a colocam, pelo menos, em debate.

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FOOTNOTES
[1Puigross Adriana, De Simón Rodríguez a Paulo Freire, Bs. As., Editorial Colihue, 2005.

[3Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 22; disponível em: <https://cpers.com.br/wp-content/upl...> .

[4Leon Trótski, “Las tareas de la educación comunista”, em Estratégia Internacional, N. 24, trad. Rossana Cortez, Buenos Aires, 2007; disponível em: <https://www.ft-ci.org/Las-tareas-de...> .

[5Christian Castillo, La actualidad de El Estado y la revolución de Lenin: Prólogo a una nueva edición de El Estado y la revolución de V. I. Lenin, Ediciones IPS.

[6Frederico Puy e Virginia Pescarmona, “Antonio Gramsci e uma educação na perspectiva revolucionária”, Ideias de Izquierda, 24 maio 2020; disponível em: <https://www.esquerdadiario.com.br/A...> .

[8Paulo Freire, El Grito Manso, México, Siglo XXI, 2003

[9Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, cit., p. 19.

[10Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, 1845; disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/do...> .

[11Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, cit., p. 26.

[12Sobre isso, ver: “La educación en el país de los soviets” I y II.




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