104 anos de Paulo Freire

104 anos de Paulo Freire

104 anos de Paulo Freire: o que neto de um dos primeiros alunos do educador leva como legado

Neste 19 de setembro, comemoramos o nascimento do patrono da educação brasileira

 

Nascido no Recife (PE), Freire publicou mais de 40 livros e dezenas de artigos e ensaios sobre a educação, que influenciam a pedagogia até os dias de hoje. 

Para conhecer melhor a trajetória e contribuições do educador, o Brasil de Fato conversou com a cineasta Catherine Murphy, premiada recentemente no Festival de Gramado com o documentário Lendo o Mundo — que fala sobre a experiência de Freire em Angicos —, e com o pedagogo e neto de um ex-aluno de Paulo Freire, Vítor Souza. 

“O trabalho de Paulo Freire, tanto teórico quanto prático, como vimos na experiência de Angicos, é uma referência fundamental. A luta pela democracia e por um mundo mais lindo e amoroso exige estudar Paulo Freire e a experiência da Angicos”, destaca Murphy, em entrevista ao Conversa Bem Viver

Mesmo com a importância do legado do escritor, Souza avalia que os seus ensinamentos ainda não chegaram de forma adequada em um dos principais espaços em que deveria estar: o chão da educação pública. 

“Isso é um ponto que nós precisamos discutir, porque me parece ser produto dos anos de silenciamento, da ditadura militar e do período pós-ditadura. Nós temos vivenciado, nestes últimos anos, um ataque muito enfático à pessoa de Paulo Freire e à sua proposta pedagógica. Mas nós precisamos repensar e voltar a essas leituras para nos apropriar sobre”, chama a atenção. 

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato – Como foram os primeiros contatos de vocês com Paulo Freire?

Vítor Souza – O meu avô, Paulo Alves de Souza, foi quem me apresentou Paulo Freire. Papai comentava algumas coisas ainda na minha infância, mas eu não fazia muita associação por conta da distância. Eu sou da capital e a experiência aconteceu no interior do estado. Vindo a Angicos para estudar e interagindo muito mais com o vovô, é que eu pude de fato me aproximar dos princípios de Paulo Freire.

As lembranças que meu avô conserva e que meu pai conserva  dos diálogos com o meu avô são de uma pessoa próxima, de um educador próximo das pessoas, que compreende o que elas passam, que compreende as suas realidades, que senta com eles para conversar.

O relato oral documentado por Carlos Lyra no livro As Quarenta Horas de Angicos fala justamente sobre isso, sobre como os encontros com os alunos, com os monitores e com as pessoas que participavam aconteciam na rua.

Ele interagia como uma pessoa próxima, como um amigo, como um vizinho. Então é esse o relato que eu trago na minha memória, a partir das lembranças do meu avô e do meu pai.

Catherine Murphy – Eu li Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido pela primeira vez quando eu estive na universidade, na Califórnia. Eu o li em inglês. Pedagogia do Oprimido é traduzido em muitas línguas e continua sendo hoje umas das referências mundiais mais importantes dentro da filosofia pedagógica do mundo.

Então, eu fui muito influenciada por ele no desenvolvimento do meu pensamento, desde o meu primeiro semestre na universidade. Sempre tive o sonho de me aproximar mais das experiências freireanas.

Após vários outros curtos documentários relacionados com a educação popular, eu pude finalmente, por meio de parcerias que criamos, vir visitar Angicos, começar a caminhar nas ruas da cidade e conhecer os ex-alunos. Alguns dizem “ex-aluno não, aluno eterno de Paulo Freire”, que são também, como disse a professora Marisa Sampaio, co-criadores do método freireano.

O caminho do documentário foi como um peregrinar em um processo de conhecer. Foi algo bem freireano em si, de caminhar. Cinco anos atrás, eu e Silvana Pacheco, nossa produtora de campo, fomos juntas caminhando pelas ruas, conhecendo os ex-alunos e as novas gerações das suas famílias nas quais se vê o legado vivo. É impactante, emocionante e inspirador. 

Como é desenvolvido o método de alfabetização freireano?

Vítor Souza – Antes de começar a experiência aqui em Angicos, Paulo Freire já tinha tido algumas experiências no Recife com pequenos grupos. Ele chega aqui por meio de uma proposta de um acordo do governo estadual, através da Aliança para o Progresso. 

Inicialmente, ele manda um representante para colher o universo vocabular. Dentro do universo vocabular ele encontra palavras geradoras que têm um sentido muito forte ligado ao trabalho: enxada, chibanca, belota, telha, tijolo, etc. São palavras utilizadas no cotidiano. 

Em função disso, Paulo Freire estabelece um planejamento também de algumas aulas que depois ficaram chamadas de “aulas de politização”, nas quais eram feitas discussões sobre cultura, trabalho, aspectos do trabalho e da vida cotidiana. 

Me recordo da fala do Marcos Guerra, que foi o coordenador da experiência. Ele disse em alguns momentos, aqui em Angicos, conversando conosco, que a experiência se resumia basicamente em tentar. Se tentava e não dava certo, repensava a teoria. Se desse certo, se mantinha.

relação de dialogismo sempre foi muito presente em Paulo Freire e na experiência de Angicos. Não à toa, diariamente, haviam reuniões de planejamento. Em todos os dias se discutia a aula do dia anterior. Na verdade, não se chamava aula, se chamava debate, discussão.

Depois de avaliar o dia anterior, se planejava a discussão do dia atual, sempre considerando os indivíduos, os sujeitos, as particularidades, o trabalho e o cansaço também. Como produto desse esforço coletivo, Marcos também diz que não havia evasão escolar. Pelo contrário, “invadiam” os espaços onde aconteciam esses círculos de cultura. A comunidade chegava para ver, para participar e para aprender, ainda que não estivesse matriculada oficialmente. 

Isso é, na verdade, um dos poucos indícios que nós temos ao longo da história da educação brasileira de progresso quase que extraordinário. Embora tudo isso seja feito dentro de uma perspectiva racional, de planejamento, etc.

Desde 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff, existe uma onde ataques contra Paulo Freire. Esse processo se intensifica com a eleição de Bolsonaro (PL) em 2018. Isso também acontece no exterior? Qual é a imagem de Freire fora do Brasil?

Catherine Murphy – Para todos nós que desejamos um mundo mais democrático, justo, equitativo, que celebra e inclui todas as diversidades e crê que a educação é para todos, Paulo Freire é uma inspiração.  

O trabalho dele, tanto teórico quanto prático, como vimos na experiência de Angicos, é uma referência fundamental. A luta pela democracia e por um mundo mais lindo e amoroso exige estudar Paulo Freire e a experiência da Angicos. Não entendo as críticas e acho que elas não têm base. Acho que é uma forma de tentar invisibilizar ou negar a importância dessa luta histórica e atual.

Como está a continuidade do método de Paulo Freire no Brasil?

Vítor Souza – Eu acho que, como um grande pensador que foi, Freire estaria inquieto com a ideia de replicabilidade. O que aconteceu em 1960 não pode mais ser replicado em 2025, tal qual aconteceu lá. Em 60, havia um tempo histórico, uma realidade específica, uma realidade política, uma realidade econômica, social, etc.

A ideia é avaliar como nós temos condições de repensar a pedagogia de Paulo Freire. Nós temos isso com muita certeza, principalmente por meio dos seus princípios, amorosidade, afetividade, dialogicidade, respeito.

Eu tenho dialogado com alguns estudiosos na Universidade Federal Rural do Semiárido, aqui em Angicos,  por meio do Núcleo de Estudos Freireanos e do Memorial Paulo Freire, e chegamos a uma conclusão quase coletiva de que, infelizmente, os passos que Paulo Freire deixou não chegam de forma eficaz no chão da escola.

Isso é um ponto que nós precisamos discutir, porque me parece ser produto dos anos de silenciamento, da ditadura militar e do período pós-ditadura. Nós temos vivenciado, nestes últimos anos, um ataque muito enfático à pessoa de Paulo Freire e à sua proposta pedagógica. Isso tem culminado em livros, cursos, vídeos, áudios, etc.

Mas nós precisamos repensar e voltar a essas leituras para nos apropriar sobre. Só conseguimos trazer para prática quando temos certeza daquilo que defendemos.

Se eu entendo que o meu educando é uma pessoa que tem cultura, que tem especificidades, que vem de um ambiente político específico, de um ambiente social específico, econômico específico, é evidente que eu vou abraçá-lo e recebê-lo.

Quais são os próximos passos do documentário, após a premiação do Gramado? Quando vamos poder acessá-lo?

Catherine Murphy – A co-diretora Iris de Oliveira e eu estamos muito comprometidas para que o filme chegue a maior quantidade de públicos possíveis no Brasil, priorizando o Nordeste, e que chegue a todas as telas possíveis. Estamos começando a organizar tudo isso. Vamos estar nos próximos meses em um circuito de festivais de cinema.

Também esperamos projeções televisivas e estamos muito comprometidos. Nossos parceiros, o Instituto Paulo Freire, em São Paulo, e a Casa de Cultura, em Angicos, além de várias outras entidades e universidades, estão organizando um evento.

Nossa prioridade é colocar o filme nas mãos dos educadores de hoje, pedagogos de hoje e os movimentos sociais de hoje, para que contribuam com todos esses diálogos abertos e continuados

 

FONTE:

https://www.brasildefato.com.br/podcast/bem-viver/2025/09/19/104-anos-de-paulo-freire-o-que-neto-de-um-dos-primeiros-alunos-do-educador-leva-como-legado/ 




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