A desigualdade mata
A epidemia de desigualdade no Brasil
16/01/2022
Sobre o autor:
Jefferson Nascimento - Coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil
Quando a pandemia de covid-19 atingiu o Brasil, resultou em uma crise social, econômica e sanitária, pois o país estava vulnerável em diferentes dimensões, cenário que vem se agravando desde 2015 e interrompeu a tendência de redução da desigualdade de renda, verificada desde o início dos anos 2000. Em 2018, a renda das mulheres diminuiu em relação à dos homens, um fato inédito no século XXI, ao lado de quase uma década de estagnação da proporção da renda média da população negra brasileira em relação aos brancos. Com o posterior declínio nos indicadores socioeconômicos e a adoção de medidas de austeridade que restringiram os investimentos em políticas públicas sociais, esse cenário se agravou ainda mais, com aumento do desemprego e interrupção de políticas públicas como a política de aumento do valor real do salário mínimo.
A epidemia de desigualdade no Brasil antecedeu a pandemia de Covid-19. Segundo o IBGE[1], em 2018 o Brasil era o oitavo país mais desigual do planeta e a desigualdade de renda havia atingido o maior patamar desde 2012, pois a renda dos 10% mais ricos era 13 vezes superior à média dos 40% mais pobres. Negros e mulheres, base da pirâmide social brasileira, continuam sendo os mais afetados nesse contexto.
Desemprego e perda de renda
A pandemia de Covid-19 acelerou o agravamento da crise social e econômica no Brasil. De abril de 2020 a abril de 2021, estima-se que 377 brasileiros perderam o emprego por hora; no pior momento da crise, quase 1.400 brasileiros foram demitidos por hora e o Brasil registrou recorde de 14,4 milhões de desempregados em abril de 2021. Quase 600 mil empresas faliram, prejudicando sobremaneira os indicadores de emprego no país. Os programas destinados a garantir o emprego foram mal implementados e promoveram condições de trabalho precárias para jovens e grupos vulneráveis.
No terceiro trimestre de 2021, o desemprego caiu para 13,5 milhões de brasileiros, devido ao aumento da informalidade e empregos precários, porém a taxa de desemprego entre os negros ainda é maior do que entre os brancos, contribuindo para maior desigualdade de renda. No Brasil, as mulheres ocupam mais empregos informais do que os homens, portanto, a perda de renda entre as mulheres foi maior durante a pandemia, causando efeitos colaterais de aumento do isolamento e maior exposição à violência doméstica. Estudo mostra que uma em cada quatro mulheres brasileiras foi vítima de violência durante a pandemia.
Epicentro da fome
A fome disparou durante a pandemia. Em dezembro de 2020, 55% da população brasileira estava em situação de insegurança alimentar (116,8 milhões, equivalente à população conjunta da Alemanha e Canadá) e 9% passavam fome (19,1 milhões, superior à população da Holanda). Isso representa um retrocesso aos patamares verificados em 2004. O vírus da fome afeta mais as mulheres e os negros no Brasil – 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres e 10,7% dos domicílios liderados por negros passavam fome no final de 2020, em comparação com 7,7% dos domicílios chefiados por homens e 7,5% das famílias encabeçadas por brancos.
O papel dos programas de transferência de renda
Medidas emergenciais foram adotadas para mitigar os impactos da pandemia no Brasil. Destaque para o Auxílio Emergencial, programa de transferência de renda estabelecido a partir da mobilização da sociedade civil e do Congresso Nacional brasileiro, cuja cobertura atingiu 67 milhões de brasileiros (31% da população do Brasil) com investimento público de R$ 322 bilhões (US$ 58,4). bilhões), o que corresponde a 4% do PIB brasileiro. O Auxílio Emergencial contribuiu para a redução do índice de pobreza do Brasil de 11% no final de 2019 para 4,5% em agosto de 2020, mas, entre abril e dezembro de 2021, o benefício foi reduzido e está sendo assegurado para pouco mais de 50% dos beneficiários de 2020, dificultando sua atuação como barreira contra a fome e a pobreza. Pelo menos outros 20 milhões serão excluídos dos programas de transferência de renda em 2022.
Criado em 2003, o Bolsa Família, programa de transferência de renda reconhecido internacionalmente, foi extinto em novembro de 2021. Seu substituto – o Auxílio Brasil – desmonta quase duas décadas de uma política bem-sucedida de combate à pobreza em um momento em que ela é mais necessária. Milhares de famílias vulneráveis estão mal atendidas durante o período de transição entre os programas.
Desigualdade no acesso à saúde
Após mais de 600 mil mortes, o acesso desigual aos serviços de saúde deixou cicatrizes nos mais vulneráveis do Brasil.
Estudos de 2020 apontam a desigualdade como fator para o avanço do coronavírus nas periferias brasileiras, aumentando em até 50% o risco de morte pelo coronavírus. Mesmo com a vacinação no Brasil, resultado da importância do Sistema Único de Saúde – SUS, a maioria das mortes por covid-19 está concentradas nas periferias das grandes cidades, em decorrência do acesso desigual às vacinas, entre outros. Segundo a OCDE, negros têm 1,5 vezes mais chances de morrer de Covid-19 do que brancos no Brasil.
O regresso das políticas de austeridade
Após a existência de um modelo orçamentário excepcional – permitindo a aprovação do programa Auxílio Emergencial em 2020 – o discurso pró-austeridade voltou a todo vapor em 2021. Como resultado, foram aprovados diversos cortes orçamentários em áreas-chave para o enfrentamento da pandemia de covid-19, como ciência e tecnologia, saúde e educação. Até o orçamento para as vacinas contra a covid-19 foi reduzido em 8,5% na previsão orçamentária de 2022. As políticas de austeridade estão sendo aplicadas apesar do consenso internacional sobre a recuperação pós-pandemia, sob o falso discurso de que o cenário fiscal brasileiro exige austeridade.
O “remédio” contra a epidemia de desigualdade
Uma solução possível – uma reforma tributária justa – não é prioridade para os tomadores de decisão. Uma oportunidade perdida: segundo pesquisa da Oxfam Brasil, 84% dos brasileiros concordam em aumentar os impostos dos muito ricos para financiar políticas sociais; 56% estão de acordo com o aumento de impostos para todos como forma de apoiar as políticas públicas. Os brasileiros também apoiam o forte e decisivo papel do Estado como provedor de políticas públicas. 86% acreditam que o progresso do Brasil está condicionado à redução da desigualdade entre pobres e ricos, enquanto 85% concordam que é obrigação dos governos reduzir a distância entre muito ricos e muito pobres. Esses são os “remédios” que precisamos para enfrentar a epidemia de desigualdade no Brasil.
Um novo bilionário surge a cada 26 horas desde o início da pandemia. Os dez homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas, enquanto mais de 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza. Nesse meio tempo, estima-se que 17 milhões de pessoas morreram de Covid-19 no mundo.
O custo da profunda desigualdade que enfrentamos é pago em vidas humanas. É o que demonstramos no briefing A Desigualdade Mata, que lançamos às vésperas do encontro do Fórum Econômico Mundial 2022 em Davos, Suíça – e que você pode acessar no formulário abaixo.
Enquanto um pequeno grupo de pessoas lucrou como nunca durante a pandemia, aumentando suas riquezas de maneira extraordinária, a maior parte da população global está arcando com os principais prejuízos – Desemprego, perda de renda, mortes. A pandemia aprofundou as desigualdades e isso está desestruturando nossas sociedades e matando pessoas.
A atual estrutura econômica do mundo concentra riqueza, empobrece e mata milhões de pessoas, destroi o planeta e coloca em risco o futuro da existência humana no planeta. Queremos uma economia centrada na igualdade, em que ninguém precise viver na pobreza extrema e ter apenas que sobreviver. Todas e todos têm o direito de ter oportunidades para prosperar e ter uma vida mais digna.
No blog:
Clique aqui e entenda a epidemia de desigualdade no Brasil
As desigualdades afetaram a vida de todas e todos durante a pandemia. Veja alguns depoimentos:
Os 10 homens mais ricos do mundo têm hoje seis vezes mais riqueza do que os 3,1 bilhões mais pobres do mundo.
No Brasil, os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza do que 128 milhões de brasileiros (60% da população).
Um imposto único de 99% sobre os ganhos obtidos pelos 10 maiores bilionários durante a pandemia poderia pagar vacinas suficientes para a população do mundo.
O 1% mais rico do mundo emite mais do que o dobro de CO2 do que os 50% mais pobres do mundo, intensificando as mudanças climáticas e contribuindo para desastres naturais.