A desinformação viralizou

A desinformação viralizou

A desinformação que viralizou no primeiro turno

Parceria entre Pública, Aos Fatos e Núcleo monitorou redes sociais e cerca de 2 mil grupos de Telegram e WhatsApp

4 de outubro de 2022

Bruno Fonseca, Laura Scofield, Bianca Bortolon, Ethel Rudnitzki, Milena Mangabeira, João Barbosa, Julianna Granjeia, Natalia Viana, Amanda Ribeiro, Ana Rita Cunha, Luiz Fernando Menezes, Sergio Spagnuolo, Laís Martins, Tai Nalon

Ataques às urnas e ao judiciário, fake news recicladas, notícias ligando PCC ao PT e alegações de fraude foram alguns dos temas que marcaram o primeiro turno das eleições nas redes sociais. A análise é resultado de uma parceria entre Aos Fatos, Núcleo Jornalismo e Agência Pública que monitorou redes sociais e cerca de 2 mil grupos de Telegram e WhatsApp ao longo do último fim de semana.

Um dia antes da eleição, os 50 tuítes com mais interações publicados por personalidades que apoiam a reeleição do presidente Jair Bolsonaro focaram não em fazer campanha, mas em ataques ao Judiciário. Apenas quatro demonstravam apoio a Bolsonaro. Enquanto isso, cinco tuítes pediam votos para senadores para poder fazer “impeachment” dos membros do STF e 39 faziam críticas ou ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) ou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“Só qdo tivermos representantes comprometidos em respeitar a Constituição e em votar o impeachment de min do STF q ñ respeitam, é q vamos resgatar nossa Democracia. Abaixo a ditadura da toga (sic)”, escreveu Cristina Graeml, comentarista da Jovem Pan, em tuíte que somou 2.752 interações.

Alejandro Zambrana/Secom/TSE
Desinformação sobre urnas e judiciário tomaram conta das redes bolsonaristas


Boatos reciclados 

Uma situação frequente foi a reciclagem de boatos de eleições anteriores. Aos moldes de 2020, áudios e vídeos que alegam que as urnas estão sendo abastecidas previamente com votos para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva viralizaram no Telegram, WhatsApp, Facebook e TikTok. 

O primeiro boato partiu de um vídeo com 500 mil visualizações no TikTok que alegava que as urnas estariam sendo manipuladas por militantes em um sindicato em Itapeva (SP). Ele se espalhou com nuances em diferentes cidades, como Cordeiro (RJ), Serafina Corrêa (RS) e em Brasília. Os boatos, que variam nos detalhes e acumularam milhares de visualizações e compartilhamentos, foram desmentidos pelo Aos Fatos nos dias que antecederam ao primeiro turno. 

Outros boatos foram criados em cima de informações verdadeiras, como a substituição de urnas no Japão. Mentiras espalhadas pelo WhatsApp diziam que elas foram trocadas porque mostravam o número 22 pelo 13, mas na verdade o motivo foram falhas técnicas.  

Antonio Augusto/Secom/TSE


A urna eletrônica possui mecanismos de proteção como a zerésima, um comprovante que mostra todos os candidatos que estão registrados na seção e que não há nenhum voto computado antes do início da votação
Candidatos usam redes para convocar “fiscais” através de Fake News 

Uma reportagem da Pública detectou ainda que candidatos bolsonaristas em todo o Brasil usaram as redes à procura de eleitores de Bolsonaro dispostos a atuar como “fiscais” da eleição. A campanha contou com sites como o Fiscais do Mito, que divulgou um texto dizendo que os “fiscais” seriam importantes para “evitar mesários [de] votar no lugar dos faltosos no final do expediente e pedir uma cópia do boletim de urna para entregar ao PL”, como mostrou um levantamento do Aos Fatos. 

A reportagem conseguiu obter credenciais de fiscais do PL, enviados pela campanha da candidata a deputada federal Cleonice de Oliveira (PL-SP), que coordenava os fiscais através de um grupo do WhatsApp. Como os crachás vieram sem assinatura, um número identificado como assistente da candidata instruiu os voluntários a rubricarem por conta própria os crachás, como se tivessem sido assinados pela própria política – o que é crime. 

Para a advogada eleitoral Ana Carolina Clève, o movimento de busca de fiscais nas eleições deste ano foi atípico. “Eu acho que faz parte desse novo contexto que nós estamos vendo, e me parece um apelo que já presume que há alguma irregularidade”. Geralmente os fiscais são filiados aos partidos políticos e agem para garantir a normalidade do pleito.  

Uma das principais fake news do primeiro turno partiu do site Antagonista, que divulgou um suposto áudio do traficante Marcola alegando que o líder do PCC dizia preferir Lula a Bolsonaro. O site foi além e deu a manchete: “Exclusivo: em interceptação telefônica da PF, Marcola declara voto em Lula”. 

Em reação, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou que a reportagem fosse retirada do ar. Foi duro: “Tal contexto evidencia, com clareza, a divulgação de fato sabidamente inverídico e descontextualizado, que não pode ser tolerada por esta CORTE, notadamente por se tratar de notícia falsa divulgada na véspera da eleição”.  

A decisão determinou “a imediata remoção do conteúdo” dos canais da Jovem Pan e também dos sites Terra Brasil Notícias, Jornal da Cidade Online, dos perfis do presidente Jair Bolsonaro (PL) e dos parlamentares Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF), Carla Zambelli (PL-SP) e Paulo Eduardo Martins (PL-PR) nas redes sociais, assim como blogueiros e youtubers, como Bárbara Destefani, Gustavo Gayer, Kim Paim e Leandro Ruschel. Foi estipulada multa diária de R$ 100 mil.

O YouTube agiu rapidamente. Mas apenas os vídeos postados no canal de YouTube da Jovem Pan tinham 1,7 milhão de visualizações antes de sair do ar. Antes de serem tirados do ar, os vídeos circularam em 38 grupos de WhatsApp e Telegram monitorados pelo Aos Fatos e figuravam como “não listados” no YouTube. 

A narrativa de associar o candidato petista ao crime não nasceu organicamente, mas fez parte da estratégia final da campanha de Bolsonaro. Entre o dia do debate e a véspera do primeiro turno, no sábado (1º), Bolsonaro atribuiu a Lula a pecha de criminoso em ao menos 34 ocasiões, como apurou Aos Fatos com base na ferramenta Banco de Discursos. As falas de Bolsonaro no debate serviram como senha para disseminar conteúdos desinformativos que associam o ex-presidente a delitos.

Mensagens virais em grupos bolsonaristas e de direita em redes sociais e aplicativos de mensagem abarcavam uma série de teorias da conspiração que associavam Lula ao tráfico internacional de drogas, ao PCC, Marcola e às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Essas palavras-chave e suas recombinações foram usadas na disseminação de conteúdos falsos ao longo da campanha. A estratégia atingiu o ápice no sábado (1º), com o vídeo atribuído ao chefe do PCC declarando voto no petista. 

Não é possível afirmar que esse tipo de teoria conspiratória foi decisiva para o desfecho das eleições. Desinformação engaja mais quem já está disposto a acreditar naquilo que reforça seus valores, por meio do viés de confirmação. O que é fato, porém, é que desde o início da campanha, em 16 de agosto, Bolsonaro fez 14 publicações no Twitter — rede em que soma 9,1 milhões de seguidores — nas quais acusa Lula ou o PT de roubo ou associação com crimes. 

Com a diferença entre Bolsonaro e Lula, teorias de “fraude” voltaram a viralizar 

O tema da fraude nas urnas, que já faz parte do léxico bolsonarista, voltou a crescer com tudo no final do dia 2, com o avanço do candidato do PT e a vitória sobre Bolsonaro no primeiro turno.

Quatro das cinco principais correntes de baixa qualidade monitoradas pelo Radar Aos Fatos que circularam em grupos públicos de política no WhatsApp no final de semana do primeiro turno mencionam suposta fraude nas urnas — nunca registradas. 

Além disso, de acordo com monitoramento do Núcleo Jornalismo, feito em mais de 220 canais no Telegram, circulam em diversos grupos mais de 2.000 mensagens que mencionam “fraude” nas eleições, inclusive com chamado à violência.

Essas mensagens já somavam cerca de 240 mil visualizações e 3 mil compartilhamentos monitoráveis (ou seja, que permitem a coleta dessas métricas). 

Uma transmissão ao vivo no YouTube com alegações de fraude no processo eleitoral, chegou a ter 7 mil visualizações ao mesmo tempo, e ficou no ar por pelo menos 15 horas. A transmissão é um compilado de vídeos de outros usuários alegando fraude no primeiro turno das eleições, que ocorreu no domingo (2). Após a publicação da reportagem, o vídeo foi tirado do ar, mas outros com conteúdo parecido permaneceram. 

Um dos usuários que aparece no vídeo diz que “Bolsonaro não pode deixar haver um segundo turno nessas urnas” e que sem urnas auditáveis não pode haver segundo turno. O título do vídeo é escrito de maneira cifrada. Em vez de “fraude na eleição”, está escrito “FRAUDE NA ELE1ÇÃ0”, o que indica uma estratégia para driblar a moderação da plataforma.

O canal que está transmitindo o vídeo possui 566 mil inscritos. 

O vídeo alcançou 94 mil curtidas. A transmissão também está sendo monetizada, já que durante o vídeo há várias inserções de anúncios. Uma das propagandas exibidas é do programa War Room, de Steve Bannon.

Narrativa de fraude cruza fronteiras e é espalhada também nos Estados Unidos 

Apoiadores do ex-presidente Donald Trump se aproveitaram de postagens de influenciadores bolsonaristas para afirmar que houve fraude nas eleições brasileiras – assim como, dizem eles, houve nas eleições americanas de 2020. A teoria da conspiração levou à invasão do Capitólio e está sendo investigada pelo Congresso americano.   

Matthew Tyrmand, do Projeto Veritas – que chegou a ser questionado pela PF em Brasília em 7 de setembro de 2021 – se valeu do Twitter para espalhar a versão de fraude no Brasil para um público internacional. Ao longo do fim de semana, retuitou alguns dos principais influenciadores bolsonaristas, como Guilherme Fiuza, Paulo Figueiredo Filho e Allan dos Santos. Ele chegou a retuitar por exemplo um post de Fiuza afirmando que Marcola “defende o voto em Lula”, desinformação que foi retirada do ar a mando do STF.

“Fraude descarada ocorrendo”, escreveu ele, em inglês, postando imagens dos primeiros resultados. “Estatisticamente, não é possível que todos os resultados vão para um lado só”, escreveu, falseando a regra matemática. Ele escreveu ainda que Lula não “pode fazer campanha [nas ruas] por medo de ser chamado de criminoso”.

Steve Bannon também usou a plataforma Gettr para espalhar mentiras contra a candidatura do PT. “Dia importante no Brasil, enquanto Bolsonaro tenta salvar a nação do Lula, que é propriedade do CCP [Partido Comunista Chinês, na sigla em inglês]”, disse Bannon na rede social.

Embora tenham menor alcance, levantamento do Aos Fatos demonstrou que as plataformas Gettr e Rumble mantiveram acesas a desinformação sobre fraude nas urnas e exortação a golpe de estado dos militares. Seus conteúdos, mesmo os mais radicais, são usados para serem compartilhados em grupos de Telegram e WhatsApp, centrais para a disseminação de ideias que não só colocam sob desconfiança as eleições deste ano, como também incentivam golpe de Estado para que o “comunismo” não retorne ao país.

Principal porta-voz dessa ofensiva, o influenciador Allan dos Santos é figura recorrente nos grupos públicos e canais de Telegram monitorados pelo Radar Aos Fatos. Banido do YouTube, Twitter e Twitch, além de serviços como PayPal e Wix, ele é foragido da justiça brasileira nos Estados Unidos e mantém um perfil na Gettr com 195 mil seguidores. Cinco das 10 publicações dessa plataforma que mais circularam no Telegram são do canal dele, com ao menos 84 compartilhamentos no aplicativo e mais de 16.600 visualizações na plataforma.

 

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