A destruição da EJA
Na surdina, a destruição da Educação de jovens e adultos
Entre 2012 a 2020, a EJA sofreu um brutal corte de 99,5% de verbas federais no Brasil. Diante de 11 milhões de analfabetos, a maioria negros e negras, as matrículas despencaram, salas foram fechadas e programa se tornou uma “fábrica de certificados”
Por Caio Vinicius de Castro Gerbelli, na Le Monde Diplomatique
Há um processo em curso de destruição da Educação no Brasil, que atinge em cheio a de Jovens e Adultos. Essa frase pode parecer um tanto quanto catastrofista e alarmante, todavia ela é, e assim deve estar. O que estamos vendo e vivendo na atual conjuntura política e socioeconômica em nosso país é a reafirmação da negação do direito à educação para uma multidão de brasileiras e brasileiros que não puderam completar o ciclo da escolaridade. É a concretização de um projeto de exclusão e de expulsão de trabalhadoras e trabalhadores. O que temos é o total desprezo com a população brasileira.
Estamos vivenciando, desde o golpe de 2016, um avanço destrutivo das políticas neoliberais. Com as Reformas Trabalhista, da previdência e do ensino médio, com o Teto de Gastos e a Lei das Terceirizações, avançam o subfinanciamento de políticas públicas educacionais, o corte de investimentos, desarticulação e descumprimento dos planos decenais de educação, com queda acentuadas das matrículas, com o fechamento de salas, com o Parecer CNE/CEB 6/2020 e com a Resolução CNE/CEB nº 1 de 2021. A lista é longa e escabrosa, mas esses são alguns dos elementos chaves para compreendermos a real condição da EJA do precariado[1], que busca na modalidade um novo caminho por uma vida mais justa.
Com a consolidação do capitalismo flexível, da financeirização, da uberização e do consequente decurso da precarização total da vida dos sujeitos da EJA, o retrato que se constrói a cada dia é desalentador. Quanto mais a classe trabalhadora é precarizada, mais a EJA é precarizada. Isto é uma relação diretamente proporcional que impacta justamente na vida de uma multidão que está, ou poderia estar, em uma sala de aula. Tomamos como exemplo a perspectiva do tempo, pois com o avanço substancial da precarização do trabalho e com o dispêndio de 12, 14, 18 ou até 20 horas de vida para o trabalho, os sujeitos da EJA ficam, consequentemente, sem tempo para estudar. Há menos tempo para todos e quaisquer outros afazeres da vida, como o trabalho doméstico, reprodutivo e de cuidados, que, ressalta-se, recai mais fortemente sobre as mulheres.
Mundo do trabalho e educação
Para aprofundarmos um pouco mais sobre a realidade do precariado, é fundamental compreender a relação intrínseca entre as características atuais dos mundos do trabalho e da educação, sempre destacando a divisão sociossexual, étnico e racial. Desde que a EJA é EJA, a partir de sua própria história, são os trabalhadores e trabalhadoras jovens, adultos e idosos, que foram excluídos ou tiveram seus direitos negados ao acesso à educação, seu principal público.
O cenário sobre a realidade do trabalho no Brasil é tenebroso. Os últimos dados publicizados nos mostram que temos aproximadamente 11 milhões de pessoas desempregadas, 4,6 milhões de desalentadas e uma taxa absurda de 40% de informais ou, mais precisamente, 39 milhões de trabalhadoras e trabalhadores sem direitos. O número de subutilizados e subocupados por insuficiência de horas trabalhadas somam, aproximadamente, 33 milhões. Ao passo que há uma acentuada queda nos rendimentos salariais, que são gravados com o aumento estrondoso do custo de vida. Concomitante a tudo isso, temos um crescimento acentuado de sujeitos que estão sofrendo fortemente os impactos que a pandemia da Covid-19 desnudou. 33 milhões de pessoas passam fome neste rico país.
Na profunda desigualdade que alicerça ao Brasil, a população negra é a maioria entre os/as desempregados/as e os/as informais. São eles e elas que possuem rendimentos menores se compararmos com a população branca. São elas e eles que ocupam os empregos mais precarizados e que sofreram fortemente as consequências da pandemia em todas as esferas da vida cotidiana.
O retrato societal dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos nos mostram uma condição preocupante. Em 2019 tínhamos aproximadamente 11 milhões de pessoas não-alfabetizadas, dos quais 8 milhões eram negras, somados aos mais de 70 milhões de sujeitos que poderiam estar em uma escola de educação de jovens e adultos, cuja população negra é a ampla maioria, pois foram eles e elas que, historicamente, foram excluídas, expulsas ou tiveram seus direitos negados ao acesso à educação.
O cenário atual do financiamento da modalidade nos mostra que o desafio é imenso. Se em 2012 tivemos quase 1,8 bilhões de reais investidos pelo governo federal, após o golpe de 2016, esse número foi reduzido para 8 milhões em 2020. Uma queda (de 99,56%), que impacta diretamente na manutenção da EJA no território nacional e que empurra a responsabilidade para os entes estaduais e municipais que, por sua vez, reduzem, cada vez mais rápido, a oferta de vagas.
Pegando os últimos dados divulgados de matrícula do ano de 2021 estavam em sala de aula 2.962.322 milhões de pessoas, das quais 49,42% eram não-brancas, 16,75 brancas e 34,25% que não declararam cor/raça na matrícula. Ao analisarmos as informações provenientes do Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) de 2019, notamos pontos semelhantes às questões acima referidas. Das 2.973.386 inscrições, aproximadamente 62% eram de pessoas não-brancas, 35% de brancas e 3% não declararam. Mesmo no ano de 2020, durante a pandemia, houve 1.608.135 milhões de inscrições mantendo os dados praticamente idênticos ao do Encceja do ano anterior.
O que temos é que, com a queda das matrículas, fechamento de salas, redução substancial do financiamento da modalidade e a acentuação da precarização do trabalho, está sendo ofertado uma alternativa rápida, precária, mais barata e de curto prazo. O que podemos chamar de fábrica de certificados, ou, Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos, que é o seu nome oficial, é a única política pública ofertada pela atual administração do governo federal.
O que observamos é um processo de “desescolarização”, que, através da política de certificação e das reformas educacionais, que abriram as portas para educação a distância, empurram progressivamente os trabalhadores e trabalhadoras negras e indígenas para fora da escola. Ou seja, nega-se mais uma vez o acesso ao direito à educação e tudo que a escola pode oferecer.
O desmonte das políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos é um projeto que se encontra em vias de consolidação e esse plano é racista, pois expulsa e, por consequência, reitera a negação histórica do direito das populações negras e indígenas de buscarem uma vida mais justa através da educação.
Por fim, é imperativo que se coloque a EJA como política pública crucial para toda e qualquer perspectiva de mudança substantiva na nossa sociedade. Sem uma EJA forte, antirracista, anticapitalista, igualitária, inclusiva, laica e de qualidade, a roda que produz da desigualdade jamais será destruída.
Caio Vinicius de Castro Gerbelli é professor de História na Educação de Jovens e Adultos de Santo André – São Paulo. Mestre em história e especialista em Proeja. Militante do Fórum EJA de São Paulo e do ABCDMRR.
[1] GERBELLI, Caio Vinicius de Castro. A Educação de Jovens e Adultos do precariado e o paradigma da dignidade provisória. Revista Trabalho Necessário, 19(40), 124-147. https://doi.org/10.22409/tn.v19i40.50844
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