A educação pública e a situação nacional

A educação pública e a situação nacional

A educação pública e a situação nacional

Imagem: Bayram Er

Por JOANA APARECIDA COUTINHO & JOHN KENNEDY FERREIRA*

A crise constante e crescente da educação pública brasileira

“Que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa fábrica de salsichas, é algo que não altera em nada a relação. Assim, o conceito de trabalhador produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, surgida historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de meio direto de valorização do capital” (Karl, Marx, O Capital, cap. XIV).

O Golpe de 2016 colocou em marcha uma movimentação à direita que tem como objetivo: (a) destruição da Constituição de 1988 e das políticas sociais ali assinaladas; (b) destruição da estrutura soberana do Estado Nacional, com concessões e privatizações de portos, estradas, refinarias, estaleiros etc.; (c) política de abertura econômica irresponsável que leva à desindustrialização e, ao mesmo tempo, à expansão do agronegócio, que determina a integração subordinada à lógica sistêmica e coloca o país ao sabor da sazonalidade da demanda dos mercados primários; (d) destruição dos direitos sociais e trabalhistas, visando transformar o parque produtivo nacional e a classe trabalhadora num grande Porto Rico ou Colômbia, com salários reduzidos e um parque industrial de maquiladoras.

Todo esse movimento teve, e tem, como aporte a ação imperialista do Capital Monopolista Financeiro e dos setores – internos – integrados à esfera de circulação e reprodução da lógica sistêmica.

A Universidade e o Brasil

Os governos petistas criaram um ambiente político nacional desenvolvimentista e em certa medida, anti-imperialista; um dos elementos centrais para a realização de tal política foi a expansão de aporte à ciência, à tecnologia e à educação.

Na ciência e tecnologia tivemos o desenvolvimento do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI), com intuito de promover (e redirecionar) a reindustrialização, a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento das atividades econômicas. É parte fundamental desse movimento a expansão e interiorização do ensino técnico-científico, visando promover novas cadeias produtivas, como denota a ampliação da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que saltou de 149 escolas em 119 municípios para 422 escolas e Institutos Federais em 396 municípios, que além de cursos técnicos, passaram a ofertar educação superior. No mesmo caminho, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (PRONATEC) ampliou a formação e a qualificação profissional.

Na Rede de Ensino Superior houve a criação de 18 novas universidades federais e a expansão de 178 novos campi nos interiores, além de garantir 1,9 milhão de bolsas integrais do PROUNI, ampliação do FIES, a reformulação do ENEM, a implementação do SISU e a aprovação da Lei de Cotas, o que exigiu que o orçamento sextuplicasse entre 2002 e 2012, essas medidas ampliaram o acesso ao Ensino Superior.

Para garantir essa ampliação, o orçamento destinado ao CNPq, CAPES e FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) saltou de R$ 4,5 bilhões em 2002 para R$ 13.97 bilhões em 2015, o que garantiu que o número de matrículas dobrasse e chegasse a 1,3 milhão de estudantes. Programas como “Ciência sem Fronteiras” contribuíram para internacionalização do ensino e os programas de pós-graduação expandiram 107% nos mestrados e 97,7% nos doutorados, o que favoreceu a formação e produção de conhecimento, da ciência e tecnologia no país.

O papel jogado pelas políticas desenvolvimentistas promoveu alterações dentro do Ensino e da Educação, voltados à soberania nacional. O Enem, deixou de ser um avaliador do ensino médio, para selecionar candidatos ao Programa Universidade Para Todos (PROUNI); construiu-se o REUNI que dobrou o número de acesso às Universidades Federais, criando 126 campi interiorizados; desenvolveu-se o Sistema de Seleção Unificada (SISU), que democratizou o acesso ao ensino, saltando de uma clientela de 3 milhões para mais de 8 milhões, sendo que a maioria dos ingressos (61%) são oriundos das escolas públicas, o que levou a uma alteração do perfil do público nas universidades federais.

Junto a isso, foi criado o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), visando a qualificação das universidades e o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do país. Além de tudo isso, desde a Assembleia Nacional Constituinte de 1988, o período de 2002 a 2016 foi o único marcado por aumentos reais de salários do funcionalismo público e dos docentes e pesquisadores.

A reação neoliberal e imperialista

A crise que vivemos hoje no Brasil é aguçada pela disputa comercial entre China e EUA, entre o modelo de desenvolvimento e dependência econômica e social. Tudo isso é aprofundado com o colapso da Globalização enquanto política, ideologia e cultura e compreendemos que, mesmo como força internacional, o Capital precisa de Estados Nacionais fortes para realizar sua reprodução metabólica. É nesse cenário que crescem as políticas nacionalistas (soberanistas) de extrema direita.

Este cenário ganha novos espaços de acumulação em que a educação pública brasileira é um imenso filão aos olhos dos grupos monopolistas financeiros. Por isso, recebe o principal ataque capitaneado por grupos econômicos privados, que ganharam colossal força com a movimentação privatista na eleição de Jair Bolsonaro.

A ação desses grupos e do governo visa a desmoralização da Escola Pública, com a desqualificação de seus saberes e sua organização, agindo através do corte sistemático de verbas, intervenção na gestão e docência, precarização do trabalho, negação dos saberes culturais e científicos e da democracia escolar.

Apontam, como resposta a terceirização dos serviços e a militarização do ensino, como “qualidade e disciplina” a uma juventude sem destino. Isso ganha forma com a desqualificação de professores, rotulando-os, em especial os das áreas de ciências humanas, como “professores ideológicos”, sendo responsabilizados pela inquietude e falta de perspectiva da juventude. Tal ataque materializa-se com a outorga da Base Nacional do Currículo Comum (BNCC), 2017, que praticamente destruiu o ensino laico na educação básica e representa o núcleo ideológico da “Escola sem Partido” abrindo a possibilidade para a aprovação da educação domiciliar (homeschooling).

Toda essa desqualificação terá efeito imediato na qualidade do ensino superior, na produção e na ciência. O objetivo central do governo é atender ao poderoso lobby das empresas privadas que visam substituir a oferta pública pela privada e já conta com cerca de 40% das matrículas no ensino de base e 66% nos cursos universitários; igualmente, o  EAD (Ensino a Distância) alcança mais de 43% das matrículas, fortalecidos pela pandemia,  salientando no caso das universidades públicas, que as plataformas digitais  foram  em sua  maioria privatizadas, ou seja, qualquer relatório acadêmico ou pesquisa estará à disposição de banco de dados de empresas estrangeiras. Pensemos o inverso, imaginem a França, Alemanha ou EUA, disponibilizando banco de dados de seus alunos, de suas pesquisas a outro país???

Esse cenário foi dinamizado com a PEC 95/16, que limitou os gastos públicos e impossibilitou investimento em educação, arruinando as políticas públicas. Igualmente a ação privatista ampliou-se com projeto da PEC 32/21, que, se for aprovado, praticamente destrói as universidades e os serviços públicos.

No mesmo passo de ganso, as ações contra a universidade pública visam seu estrangulamento; o orçamento de 2021 teve o mesmo montante de 2009, quando o alunado não chegava à metade do que se tem hoje, inviabilizando o funcionamento e os gastos de custeios com bolsas de pesquisa, auxílio estudantil, contas de água, luz, limpeza, compra de materiais, manutenção de laboratórios etc. E o orçamento de 2022 será de R$3.7 bilhões, apenas 67% dos R$12 bilhões de 2012.

Seguindo a mesma toada, foram realizados cortes de R$200 milhões na Assistência Estudantil, o que provocará evasão de alunos carentes. Bolsas de extensão e de pesquisas devem ser reduzidas a algo próximo a zero, o que colocará a produção científica em colapso.

A falta de dinheiro para aquisição de materiais (adaptação de espaços, álcool gel e EPIs), devido aos cortes produzidos pela gestão Ribeiro, Guedes e Bolsonaro, suspendeu o retorno às aulas presenciais em todas as universidades.

A pressão vinda do Colégio de Reitores, da sociedade civil, movimentos estudantis, docentes, deputados e governadores, forçou o governo a propor crédito suplementar de quase R$2,6 bilhões (que rompe a Lei de Responsabilidade Fiscal), o que alivia parte do que foi cortado, mas não garante a plenitude do custeio.

O fato central é que de 2015 para 2021 tivemos uma redução de 61,2% das verbas das universidades, e essa política de austeridade anti-educação pública não está em refluxo.

Paradoxalmente, a ação privatista está gerando uma base de apoio ao ensino remoto dentro das universidades públicas. É comum ver professores e alunos, especialmente nas áreas de humanas, favoráveis à manutenção do ensino remoto, pois as condições de trabalho e ensino tornam-se cada dia mais precárias.

A expansão do ensino universitário durante as gestões petistas exigiu a contratação de técnicos e docentes, os gastos mantiveram-se estáveis até 2019. A partir daí, com as aposentadorias, falecimentos, mudança de emprego etc., os gastos caíram 23% empurrados pela reforma da previdência; e a alta da inflação, o que levou a uma perda salarial de mais de 10%, que tende a crescer com a política estagflacionária de Guedes e Bolsonaro.

Uma resposta necessária

A expansão do ensino privado em todas as áreas, em especial no EAD, levou a um corte de mais de 36 mil professores na rede privada, só no ano de 2021. Aulas remotas com professores demitidos, ou mesmo mortos, continuam a circular em salas de aulas das empresas particulares. Houve cortes de salários e custos de manutenção com laboratórios, bibliotecas, com a estrutura geral. Todos os gastos caíram abruptamente enquanto os lucros ampliaram como demonstra o crescimento das ações das empresas de educação privadas na BOVESPA, como a YDUQ3 (antiga Estácio de Sá), que está entre as 10 ações mais valorizadas em 2021, o mesmo acontecendo com lobbies de empresas de educação em Wall Street.

A educação pública brasileira enfrenta sua maior ameaça. Por seu turno, os movimentos em defesa da educação encontram-se em refluxo e após as manifestações de descontentamento com 15 Maio em 2019 (15M), pouca mobilização efetiva foi realizada em defesa do ensino. O diálogo com a sociedade, especialmente com os mais necessitados, encontra-se distante e obstaculizado.

A prática sindical corporativa e reativa, que precisa ser provocada para saber o que se deve fazer, predomina nos Campi, longe de formular alternativas para gestão educacional e para práticas políticas, resume-se a protestar contra as constantes derrotas infligidas pelo inimigo real.

Os movimentos estudantis também têm pouco alcance e vê sua prática muito resumida com a pandemia. A possibilidade real de uma resposta tem que ser repensada, a Educação pública carece de uma mobilização aos moldes da Campanha de Defesa da Escola Pública de 1958-1959, capitaneada por Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, contando com apoio de movimentos estudantis e suas entidades e de sindicatos de professores e demais trabalhadores, como também setores preocupados com a educação pública no parlamento, nas federações empresariais etc. Que evitaram que a educação fosse entregue aos setores privados.

É preciso mobilizar a sociedade como um todo, é preciso discutir os benefícios que a educação pública pode trazer na superação das mazelas de uma sociedade tão desigual e na construção de um futuro soberano.

*Joana A. Coutinho é professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA.

*John Kennedy Ferreira é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA.

 

Referências


Agência Brasil – MEC. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br.

MARX, K. O Capital. São Paulo, Boitempo, 2014.

IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/educacao.html.

SAVIANI, Demerval. “Florestan Fernandes e a educação”. Revista Estudos Avançados, no. 10, abril de 1996.

Plano de Emergência em Defesa Universidade Brasileira, Diálogos Petistas. Outubro de 2021.

 

 

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