A esquerda capitulou?

A esquerda capitulou?

A esquerda brasileira capitulou? 

Ser socialista, comunista em nossos dias, não capitular ideologicamente é um compromisso com a dignidade não apenas pessoal, mas histórica

por Eliezer Pacheco

5 de abril de 2025

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Eliezer Pacheco (*)

O mundo contemporâneo, novamente, vive sob a ameaça do fascismo, embora matizado pelas marcas de um novo tempo. Este fenômeno coincide com o debacle do mundo socialista e o consequente recuo das correntes de esquerda que tem encontrado dificuldades em entender este ressurgimento da direita em geral e do fascismo em particular. Ainda são válidas as reflexões de Ortega e Gasset no final da década de 20:

O fascismo tem uma feição enigmática porque, nele aparecem conteúdos os mais opostos. Afirma o autoritarismo e organiza a rebelião. Combate a democracia contemporânea e, por outro lado, não crê na restauração de qualquer regime antigo.

As dificuldades em entender o fascismo é histórica e não se limita a esquerda brasileira. Desde seu surgimento existem teorias não marxistas que o explicam como relacionado à natureza humana, outros a partir da psicologia das massas, à questões emocionais, etc.

Para Laclau,

Encontramos, assim, em todos estes esquemas interpretativos, a tendência a explicar o fascismo em termos do indivíduo isolado e de sua natureza peculiar. O indivíduo rompeu seus vínculos de integração social e se apresenta como massa indiferenciada face à ação dos demagogos.

Certamente, as correntes marxistas seguiram em outra direção, apresentando-o como a ditadura direta do capital monopolista. A mais criativa destas análises marxistas é a de Nico Poulantzas, que não o vê como um fenômeno histórico produto apenas da realidade italiana e alemã mas como uma possibilidade histórica de desenvolvimento do capitalismo que pode ser implantada em uma conjuntura específica de crise política. Para ele, esta crise é uma crise de hegemonia, decorrente também da derrota estratégica do movimento operário e popular e a incapacidade de determinada fração das classes dominantes em dar direção política ao  bloco no poder, à crise de legitimidade e de representação dos partidos tradicionais e à emergência da pequena burguesia como força política organizada. (4)

 Não é objeto deste artigo discutir a natureza do fascismo, nos limitando apenas a ressaltar sua complexidade.

Em razão disto e de uma certa pobreza teórica, a esquerda brasileira nas últimas décadas não conseguiu sustentar o debate ideológico com a direita, com suas diversas variantes, inclusive a fascista. Parte da responsabilidade cabe à grande influência dos marxistas liberais da USP (Fernando Henrique, Gianotti, Francisco Weffort e outros) liderados pelo primeiro, desde a década de 60 até nossos dias. Estes, submetidos a uma concepção acadêmica e legalista do marxismo, o destituíram de sua feição revolucionária e, ao longo das últimas décadas avançaram em direção ao liberalismo. A intelectualidade do PCB, que possuía acúmulo e massa crítica para se contrapor a isto, foi massacrada ou dispersada pelo golpe de 64 e a ditadura imposta. O PCdoB sempre foi irrelevante teoricamente. Desta forma, a esquerda brasileira foi recuando cada vez mais até abandonar a prática, os conceitos e os princípios básicos de uma concepção de esquerda, revolucionária, aproximando-se do liberalismo. Não chega sequer a ser Social Democrata limitando-se a um “melhorismo”, a defesa da inclusão e da democracia. Não me refiro aos pequenos grupos da pequena-burguesia doutrinária pois não contam na real disputa político-ideológica e estão distante do mundo do trabalho. A esquerda clássica PT, PSOL, PCdoB, PSB e parte do PDT, na retórica de reivindicam do socialismo, mas silenciam sobre a transição para esta mudança. Certamente, também contribuiu para este recuo ideológico a institucionalização e burocratização destes partidos e do movimento sindical. O MST é uma exceção no movimento social brasileiro.

Qual o programa e a ação para chegar ao socialismo? Sem isto, torna-se uma mera profissão de fé. Será que imaginam que será através de uma PEC aprovada por 2/3 do Congresso Nacional? Nem o mais rematado utopista acreditaria nisto. Como será então a transição? Ao silenciar sobre isto, a esquerda brasileira foi perdendo o rumo e recuando cada vez mais (3).

Quando lembramos que há 61 anos atrás o governo trabalhista de João Goulart propunha as chamadas Reformas de Base (urbana, agrária, universitária, bancária etc.) percebemos o tamanho do recuo. Hoje, a esquerda se limita a defender a inclusão nesta sociedade desigual, a cidadania liberal-burguesa e a democracia liberal, bandeiras que podemos chamar de liberais-progressistas. Na tentativa de encontrar um rumo, isto é agravado pela adesão de boa parte da esquerda ao “identitarismo liberal” gestado nos laboratórios do Partido Democrata dos EUA, certamente, com alguma contribuição da CIA. Este, segmenta as lutas, ignora a questão das classes sociais, esquecendo que em todas estas “identidades” existem ricos e pobres, explorados e exploradores e, desta forma, ficam a dar voltas. É como o cachorro tentado morder o próprio rabo.

Submetido à concepção liberal-burguesa ela, assim como a direita, também classifica todos os regimes que não adotam este sistema como “ditaduras”, fazendo eco às posições do imperialismo. Assim, Cuba, Russia, Venezuela, Irã, Vietnã, etc., são ditaduras, apesar de terem instituições sólidas e rotatividade no poder. Alguns destes como a Venezuela, além de eleições periódicas, realizam plebiscitos para ouvir a opinião pública. Alguns enfrentam graves problemas decorrentes de décadas de bloqueio econômico da maior potência mundial. A Venezuela e Russia tiveram suas divisas depositadas na Europa e EUA confiscadas. Em contrapartida os EUA, onde a grande burguesia distribuída em dois partidos, monopoliza o poder numa verdadeira plutocracia, é apresentada como a “maior democracia” do mundo. Incrivelmente, alguns setores da esquerda brasileira comungam destas posições.

Na verdade, vivenciamos atualmente, uma profunda crise de legitimidade das Democracias Liberais, desmoralizadas pelo domino do poder econômico, pelo distanciamento entre representantes e representados e pela corrupção. A esquerda, acuada pelo avanço mundial das forças de direita e sem condições político-ideológicas de apresentar uma alternativa revolucionária, passa a ser a principal defensora da Democracia Liberal, com todas as suas mazelas. A direita fascista se apresenta como a contestadora deste sistema moribundo e tem propostas alternativas representadas pelo neofascismo, capitalizando a insatisfação popular com este sistema. A esquerda passa de revolucionário a conservadora, invertendo os papeis e criando uma enorme confusão ideológica nas massas.

Então qual a saída para a esquerda? Não há outra fora do resgate de sua identidade revolucionária, apresentando um Projeto Democrático-Popular com ampla participação das massas, orientado para o socialismo, com propostas concretas para esta transição e com profundas transformações de nossas instituições: Sistema Politico, Forças Armadas, Policias, Judiciário, Sistema Financeiro, estrutura agrária e urbana, etc. Certamente, nos dias atuais, com a complexidade da sociedade, esta transição é muito mais complexa do que nos primórdios do capitalismo. Raríssimos são autores que trataram disto. 

Necessitamos de uma esquerda que seja uma alternativa ao corrompido liberalismo-burguês e ao fascismo genocida. Uma esquerda que seja esquerda, revolucionária, no sentido mais amplo desta palavra. Acredito que o acirramento das contradições no Brasil e no mundo fará ressurgir esta esquerda que será revolucionária, mas sem se submeter ao “esquerdismo” pequeno-burguês doutrinário, identitarista.  Que veja esta revolução não como uma profissão de fé, mas resultado da dura luta de classes de nosso tempo, apontando os caminhos para atingir este objetivo. Ser socialista, comunista em nossos dias, não capitular ideologicamente é um compromisso com a dignidade não apenas pessoal, mas histórica.

(*) Professor de História pela Universidade Federal de Santa Maria, Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

1.Ortega Gasset, José. Sobre el Fascismo. Madri, 1927.

2. Laclau, Ernesto. Política e Ideologia na Teoria Marxista. Capitalismo, Fascismo e Populismo. Rio de Janeiro: Paz na Terra, 1979. p.91/92.

3.Poulantzas, Nico. Fascismo e Ditadura. A III Internacional face ao fascismo. Enunciado Publicações, 2021

 

FONTE:

https://sul21.com.br/opiniao/2025/04/a-esquerda-brasileira-capitulou-por-eliezer-pacheco/ 




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