O surgimento ou fortalecimento de movimentos e organizações de extrema direita no último período tem proporcionado uma série de estudos que procuram explicações para o este fenômeno, e suas consequências sociais e políticas, em especial ao que parece significar o enfraquecimento dos regimes democráticos.

Contudo, as análises mais em voga, de caráter institucionalista e/ou formalista, se limitam a construir uma fenomenologia desses movimentos de extrema direita, através do emprego de conceitos como populismo (Sponholz; Özvatan, 2024), ou através dos meios e das “narrativas” empregadas por estas organizações e movimentos, como o uso das mídias sociais e as chamadas pautas de costume conservadores (Maia, 2023), para apresentá-los como um desvio da “normalidade democrática”. Deste modo, deixam de questionar sobre as causas estruturais e sobre os processos sociais e políticos relacionados ao surgimento destes movimentos.

Na minha opinião, a extrema direita na atualidade só pode ser compreendida partir das necessidades do modo de produção capitalista, em especial a continuidade e aceleração do neoliberalismo e da consequente luta de classes e frações de classes que se desenvolvem em torno das políticas de austeridade, que se afiguram como condicionantes das formas de Estado e dos próprios limites dos regimes democráticos (Mattei; Singh, 2024). Relação esta que se tornou ainda mais evidente e contraditória a partir da crise econômica de 2008 e a consequente desestabilização política mundial e dos Estados nacionais, com a emergência de uma espécie de neoliberalismo autoritário (Granato, 2024).

O presente texto é uma primeira aproximação do tema. Foi elaborado como exercício para sistematizar algumas questões e hipóteses, a partir do diálogo com outros autores, que talvez possam contribuir para o estudo extrema direita na atualidade, suas causas estruturais, sua dinâmica, e as suas relações a crise de hegemonia, do Estado e dos regimes democráticos que têm sido a expressão da crise política nos últimos anos. O foco na América Latina, procura evitar tanto a universalidade das leis gerais, quanto a singularidade de cada país, mas tendo em conta as peculiaridades sociais e históricas da região e sua relação com o capitalismo mundial, no que o intelectual equatoriano Agustín Cueva chamou de “nível intermediário” ou “do particular” (Cueva, 2013).

Como ponto de partida, adoto a análise feita em por Tzeiman (2024), que avalia que os abalos estruturais provocados pela crise econômica mundial de 2008 conduziu a uma crise dos Estados latino-americanos, expressa na forma de crise dos regimes democrático liberais, resultante da contradição entre as necessidades do neoliberalismo (mais exploratório) e os limites dos regimes democráticos constituídos na região.

Ponto relevante é a conclusão do autor de que esta crise tem proporcionado uma dinâmica de recrudescimento e redução da permeabilidade do Estado para viabilizar a implementação das medidas neoliberais – mobiliza o conceito de estatismo autoritário, de Poulantzas – e, com isso, tem provocado uma disputa entre as frações da classe dominante no bloco no poder pela direção da política estatal. Trata-se de um processo em curso, um período de transição, cuja dinâmica tende a ser a formação de regimes políticos híbridos, mais instáveis e caracterizados pela combinação de democracia e autoritarismo, até que seja possível a consolidação de uma nova forma de Estado que melhor corresponda às pressões do capital financeiro pela implementação do receituário da austeridade (Tzeiman, 2024).

Subsidiariamente, me baseio algumas em algumas reflexões presentes na análise de Martuscelli (2024) do que o autor chamou de neogolpismo contra governos progressistas na região no último período. Partindo de interpretação semelhante à Tzeiman (2024) no que se refere à crise do Estado e das democracias latino-americanas em decorrência das necessidades do neoliberalismo, o autor critica as abordagens institucionalistas e formalistas, e explica os processos golpistas como parte das disputas no bloco no poder pelo controle da política estatal – crise de hegemonia – que não têm resultado em mudança de regime.

Importante notar que, ao lado da formação de regimes híbridos e do neogolpismo, Tzeiman e Martuscelli (2024) relacionam o surgimento e o crescimento de organizações e movimentos de extrema direita (como também a radicalização autoritária) como o terceiro desdobramento da contradição entre neoliberalismo e democracia liberal na atual conjuntura na região. É neste ponto que concentro minha análise, procurando dialogar com as outras dimensões abordadas pelos autores nos artigos citados acima.

Com o objetivo de organizar e hierarquizar a problematização em torno da temática proposta, vou dividir o presente texto em três partes: na primeira, abordo as causas estruturais da extrema direita e os sujeitos sociais representados por esta corrente; na segunda, discuto a caracterização e os aspectos ideológicos da extrema direita; por fim, na terceira, esboço algumas ideias para elaboração de prognósticos sobre a dinâmica extrema direita no processo de crise dos Estados e dos regimes democráticos em curso.

Das causas estruturais da emergência da extrema direita na América Latina

Seguindo a elaboração de Tzeiman (2024) sobre a crise dos regimes (sob forma de crise de hegemonia), minha hipótese é que a emergência dos movimentos de extrema direita são consequência da reconfiguração do bloco no poder, e se apresentam como alternativa de disputa pela direção da política estatal. Dito de outro modo, a emergência da extrema direita na região (assim como em outras partes do mundo) deve ser interpretada como subproduto do neoliberalismo mais extremado surgido da crise econômica mundial de 2008 e da consequente desestabilização do sistema internacional que se expressa nas disputas comerciais, geopolíticas e conflitos bélicos que são as características da atual etapa do capitalismo.

Esta hipótese nos remete a algumas questões que devem ser mais bem analisadas: quais relações pode haver entre a crise econômica e a implementação do neoliberalismo autoritário e o surgimento ou emergência de movimentos e organizações de extrema direita? Estes movimentos são causas ou consequências deste neoliberalismo extremado? Quais setores ou frações de classes tem seus interesses representados por estes movimentos de extrema direita?

Analisando o caso brasileiro, também partindo da constatação de crise de hegemonia no bloco no poder, Boito Jr. (2021) procura responder a essas questões afirmando que a extrema direita no Brasil é resultado da reação das classes médias contra as medidas progressistas implementadas durante os governos de Lula e Dilma. O que nos permite entender que, para o referido autor, a extrema direita no Brasil é representação política das classes intermediárias, que tem como objetivo central reverter as conquistas dos governos progressistas para garantir a implementação do neoliberalismo mais extremado no país.

Esse entendimento é compartilhado por outros autores que analisam a situação política na região. Katz (2023), por exemplo, afirmou que a “extrema-direita latino-americana tem determinantes muito específicos. Acima de tudo, expressa a reação de grupos dominantes contra as melhorias obtidas durante o ciclo progressista da década anterior”. A diferença aqui é que a extrema direita seria um movimento, não das classes médias, mas diretamente patrocinado pelas classes dominantes como forma de impor um neoliberalismo mais extremado na região.

O primeiro problema que me parece haver nestas interpretações está na conceituação do sujeito social representado pela extrema direita. O conceito de “classes dominantes”, utilizado por Katz (2023), é bastante genérico e não nos permite avaliar as disputas e os conflitos entre as várias frações da burguesia, inclusive em relação à intensidade, velocidade e contradições para implementação do neoliberalismo, o que é necessário para análise política. Já o conceito de “classe média” mobilizado por Boito Jr. (2021) é demasiadamente elástico, e não nos permite uma definição precisa de quais setores sociais têm seus interesses representados pela extrema direita.

O segundo problema está em deduzir que a extrema direita surge diretamente como reação contra os avanços dos governos progressistas e meio para implementação de um neoliberalismo mais agressivo na região, já que esta hipótese exigiria um grau de racionalidade e de organicidade das “classes dominantes” ou das “classes médias” que me parece não existir. No meu entender, a chave para compreender o surgimento ou emergência da extrema direita está nas disputas e nos conflitos entre as classes e frações de classes, que se intensificaram após o agravamento da crise mundial, e nos reflexos que estes embates têm produzido no sistema político.

Uma análise mais detida, podemos ver que os golpes e tentativas de golpe contra governos progressistas se deram pela necessidade de acelerar ou intensificar a aplicação de políticas de austeridade. Porém, estes movimentos não foram dirigidos por forças de extrema direita, mas pelas próprias frações hegemônicas da burguesia, que atuaram como força motriz destes golpes (Martuscelli, 2021). Inclusive no caso brasileiro, conforme examinado por Boito Jr. (2020), me parece bastante claro que o golpe contra o governo Dilma foi patrocinado e apoiado por forças políticas tradicionais, enquanto a extrema direita só apareceu em cena depois, durante o governo Temer, quando já havia uma aceleração das medidas de austeridade, o que pode inclusive sinalizar que é uma consequência deste processo, não uma de suas causas.

Por outro lado, nos países em que houve uma continuidade dos governos vinculados ao neoliberalismo, como, por exemplo, o Chile, as próprias forças ligadas à burguesia hegemônica aceleraram a implementação do neoliberalismo mais autoritário, combinando a intensificação das medidas de austeridade com um aumento da repressão dos movimentos de oposição (Tzeiman, 2024). Ainda assim, vemos surgir um movimento de extrema direita crítico a esses governos e que se apresenta como alternativa de poder. Nestes casos também a extrema direita parece emergir em decorrência da implantação do neoliberalismo mais extremado, nas fissuras das disputas entre frações da burguesia e forçando a crise dos regimes.

Examinando a conjuntura atual, Perry Anderson propõe que, tanto o “populismo de direita”, como o “populismo de esquerda”, surgem como reação contra as contradições provocadas pelo neoliberalismo. Além disso, ele ressalta que estes movimentos, mesmo quando chegam ao governo, acabam por dar seguimento às políticas neoliberais, visto que nenhuma das duas correntes, segundo o referido autor, “produziu até agora um remédio poderoso para os males que denuncia” (Anderson, 2025). Embora o historiador britânico não entre na discussão dos sujeitos sociais representados por cada um destes “populismos”, me parece que essa interpretação pode explicar melhor as contradições geradas pelas medidas de austeridade e os seus desdobramentos (desiguais e combinados) na estrutura política.

Estas considerações me levam à seguinte hipótese: a extrema direita é expressão política das frações marginais da burguesia e da pequena burguesia, que emerge como reação contra os efeitos da crise econômica mundial e parte das medidas de austeridade propostas pelo neoliberalismo. Digo em parte, porque é evidente que há um consenso na burguesia no que tange à restrição de direitos sociais e trabalhistas e na manutenção do funcionamento das relações capitalistas de produção. Porém me parece também evidente que há atritos entre as frações da burguesia em relação ao restante do receituário neoliberal, como no que se refere à corte de subsídios estatais, modernização e regulação, que, se implementados, podem significar inclusive a ruína de setores menos desenvolvidos da burguesia.

Consequentemente, estes atritos e disputas entre as frações da burguesia parecem desestabilizar o bloco no poder e, com isso, ser o catalisador da crise dos Estados e dos regimes democráticos na região, no qual o surgimento ou emergência da extrema direita pode se apresentar como um dos elementos. Ou seja, ainda que as organizações de extrema direita deem continuidade às políticas de austeridade (seja pela incapacidade da burguesia marginal e da pequena burguesia oferecer qualquer alternativa para o conjunto da sociedade, seja pelo peso que os setores hegemônicos da burguesia atuam para manter o controle do Estado e coibir aventuras) o que está em disputa é o ritmo, a intensidade e a forma das medidas de austeridade. Assim, esta disputa pela política estatal entre as frações da burguesia reafirma que o Estado se mostra não só instrumento político de dominação, mas também de intervenção na realidade concreta, que pode adiantar ou retardar o ritmo do desenvolvimento capitalista (Fernandes, 2020), que no atual período assume a forma de neoliberalismo.

Antes de seguir, quero levantar algumas questões correlatas que me parece importante serem levadas em consideração no estudo sobre as causas estruturais da extrema direita, pois guardam relação com as hipóteses centrais.

A primeira diz respeito à forma como a crise econômica de 2008 atingiu a região. Neste aspecto, é preciso lembrar que a crise se desenvolveu em dois estágios: o primeiro, com epicentro nos EUA e Europa, que resultou na migração do capital financeiro para a periferia e lastreou medidas anticíclicas; e o segundo com o refluxo do capital financeiro aos países centrais e a eclosão dos efeitos da crise na periferia. Precisar este movimento, ainda que de forma superficial, pode auxiliar na periodização da crise na América Latina como na identificação de condicionantes para o surgimento da extrema direita no continente.

Uma segunda questão correlata diz respeito à relação das organizações e movimentos de extrema direita com as representações políticas dos setores que podemos chamar de oligárquico, que representam contradições ainda não resolvidas no processo de formação da sociedade e do Estado na América Latina. Esta questão pode nos dar pistas sobre o processo de formação da extrema direita, se houve ruptura do todo ou em parte deste setor que sempre existiu no bloco no poder bem como sua associação com outros elementos exógenos e que buscam ganhar espaço no aparelho de Estado.

Por fim, uma terceira questão correlata diz respeito aos limites dos governos e organizações progressistas no enfrentamento ao neoliberalismo e na defesa da democracia liberal. Neste diapasão, Tzeiman (2024), apoiado em Poulantzas, também sinalizou que a capitulação da social-democracia aos interesses das frações hegemônicas da burguesia, pode contribuir para a crise do Estado. A questão aqui é examinar até que ponto as forças progressistas flexibilizaram o enfrentamento ao neoliberalismo mais duro em nome da defesa da democracia liberal – ou do arranjo político surgido na década de 1980 do qual fazem parte – e como isso pode ter potencializado o apoio dos setores populares à extrema direita, que se apresenta críticas aos efeitos do neoliberalismo.

Da caracterização e dos aspectos ideológicos da extrema direita na América Latina

Um debate que tem sido objeto de grande discussão diz respeito à caracterização da extrema direita; isto é, como o fenômeno pode ser qualificado a partir de sua composição e relação com a sociedade e com o Estado. Neste sentido, as teorias liberais institucionalistas e formalistas mobilizam conceitos como populismo, conservadorismo, fundamentalismo etc. Os limites destas análises, mobilizadas inclusive por forças progressistas, como já dito anteriormente, é explicar o surgimento da extrema direita em relação a uma dada “normalidade” do regime democrático liberal, ou a partir das “narrativas” conservadoras ou reacionárias, dando a entender que se insurgem contra uma contínua evolução de liberdades individuais e conquistas civilizatórias (Maia, 2023).

Já na vertente marxista, que reafirma a relação entre os fenômenos políticos com as contradições na estrutura social e da luta de classes, o debate gira em torno de avaliar a similaridade dos movimentos de extrema direita ao fascismo clássico, bem como às experiências de regime autoritário que surgiram no continente latino-americano, dando origem a termos como neofascismo, protofascismo, direita reacionária, etc., na qual a análise de Poulantzas em sua obra “Fascismo e Ditadura” é retomada como referência central. Pretendo seguir o mesmo caminho.

Nesta obra, como explica Martuscelli, o teórico grego qualifica o fascismo como uma forma particular de regime num Estado de exceção, característica de momentos de crise da fase imperialista do capitalismo. Assim, para Poulantzas (1972), a emergência do fascismo depende de algumas fases, tais como a derrota do movimento operário, crise de hegemonia do bloco no poder e emergência da pequena burguesia como força política, permanência da situação de crise, ascensão da pequena burguesia ao poder em aliança com a burguesia monopolista, e consolidação do poder e da burguesia monopolista como fração hegemônica no bloco no poder.

É expressivo que os movimentos de extrema direita que surgiram na América Latina apresentam muitos dos aspectos em comum com a emergência do fascismo original, tais como a desestabilização econômica, a crise de hegemonia no bloco no poder, como a emergência da pequena burguesia e das frações marginalizadas da burguesia como força política. Outros elementos, contudo, demandam mais debate, como a derrota do movimento operário e a questão da formação de milícias, uma das premissas para diferenciar a forma de regime fascista de outros num estado de exceção.

Além disso, importante sublinhar, as fases descritas por Poulantzas (1972) explicam como se deu o processo de surgimento, elevação ao poder e consolidação dos regimes fascistas originais, ou seja, como forma de superação da crise de hegemonia na Alemanha e Itália. Já os atuais movimentos de extrema direita são decorrentes de um processo ainda em curso, de uma crise que ainda não encontrou formas de solução, e que, portanto, pode evoluir para novos regimes “normais” – com acomodação dos interesses representados por essa extrema direita num novo consenso no bloco no poder – como também para formas de Estado de exceção, ou ainda para saídas progressistas, conforme muito bem aponta Tzeiman (2024).

Neste sentido, há duas ponderações que julgo pertinente observar na análise. A primeira é que as frações da burguesia ligadas ao capital internacional, em que pese a crise de hegemonia, ainda se mantém como força motriz dos processos políticos, sem que tenha resultado em formas de Estado de exceção, como observam Martuscelli (2024) na análise do neogolpismo, e Tzeiman (2024) quando analisa as diferenças e similaridades entre os países que tiveram governos progressistas e os que mantiveram uma continuidade de governos ligados ao neoliberalismo. Isso indica que está ausente uma característica fundamental para a erupção de regimes fascistas, conforme apontado por Poulantzas (1972), que é a incapacidade da fração hegemônica de conduzir o bloco no poder. Ou seja, a crise ainda não resultou em um “ponto de não-retorno” (Cavalcante; Martuscelli, 2025).

A segunda ponderação é que os movimentos de extrema direita que surgem na América Latina apresentam uma pluralidade de características, conforme as especificidades locais, que apresentam maior ou menor similaridade com o fascismo tradicional, como exemplificam o caso brasileiro e argentino, respectivamente. Além disso, parece ser característico dos movimentos e organizações de extrema direita certa mutabilidade de forma dada pelas possibilidades e limites oferecidos pelos regimes de cada país. Contudo, apesar das diferentes formas que se constituem e se apresentam, todos estes movimentos e organizações de extrema direita têm em comum serem resultado de um mesmo processo de desestabilização da economia mundial e da forma como essa crise reflete no continente latino-americano, o que demanda uma caracterização comum a eles.

Sendo assim, minha hipótese é que não é possível, neste momento, classificar os movimentos de extrema direita que surgem na América Latina como fascistas (ou neofascistas). Me parece mais producente adotar uma caracterização mais aberta (extrema direita mesmo, ou alguma nomenclatura melhor), capaz de abarcar as diversas formas com que esses movimentos se apresentam na região. Ademais, como processo em curso, me parece mais correto constatar que estes movimentos têm características fascistas, que se apresentam em maior ou menor grau, conforme o contexto em que surgem, o que pode servir de indicador de análise para avaliar a evolução da crise em direção a uma forma de Estado de exceção.

Uma segunda questão a respeito da caracterização dos movimentos de extrema direita, que talvez não seja possível aprofundar, mas me parece importante ser tratada ainda que de forma de problematização, está relacionada com as chamadas “pautas ideológicas” e sua relação com os interesses dos setores marginais da burguesia e da pequena burguesia. Dito de outro modo: é possível estabelecer uma relação entre as “narrativas conservadoras” e os reais interesses de classes destes setores?

Me parece ser uma abordagem nova, mas creio que seja possível fazer um debate com alguns autores que analisam questões de gênero, racial, orientação sexual, migratória e ambiental como uma face do capitalismo. Além disso, esta linha de raciocínio retoma o debate com as análises institucionalistas e formalistas (normalmente deixadas de lado), mas de outro patamar, tomando os movimentos de extrema direita como expressão política da luta de classes e seus desdobramentos na esfera ideológica.

Neste aspecto, minha hipótese é que as chamadas “pautas ideológicas”, como capitalismo radical (anarcocapitalismo), combate às chamadas “pautas identitárias” e direitos de minoria, rejeição de crises climáticas e do “globalismo”, refletem interesses concretos como redução de direitos sociais e trabalhistas de trabalhadores normalmente explorados por este setores, ou que passam a ser concorrentes (cotas), redução de regulamentação estatal sobre as atividades econômicas anacrônicas mas de grande importância na região (plantação e criação extensiva, garimpo, pequeno comércio), reação contra efeitos do neoliberalismo (importação de mercadorias de baixa complexidade concorrente da indústria local).

Este debate tem uma dupla importância: primeiro de relocalizar o debate ideológico da extrema direita num outro patamar, hierarquizando pela luta de classes e pelas próprias necessidades do capitalismo. Segundo a de compreender como os movimentos de extrema direita utilizam a ideologia não só como forma de mobilização (engajamento) social, mas também desvelar como esse instrumento vem sendo utilizado para moldar o Estado e a própria sociedade.

Das possíveis evoluções da extrema direita na América Latina

Para encerrar, quero propor algumas hipóteses sobre o possível desenvolvimento da extrema direita na América Latina. Embora este tipo de exercício seja pouco usual em Ciência Política, creio que tentar antever a dinâmica dos processos em análise, sobretudo os que ainda estão em curso, como é o caso dos temas tratados aqui, é uma necessidade para que se possa dar continuidade ao estudo. Além do mais, conforme afirmou Leandro Konder (2004) “o método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, ele questiona o presente em nome do futuro, o que está sendo em nome do que ‘ainda não é’.”

O ponto de partida que adoto para estabelecer alguns prognósticos é a caracterização de Tzeiman (2024) de que os Estados na América Latina sofrem uma crise de hegemonia em decorrência da crise econômica mundial e do modo específico como atinge cada país, e que esta crise não foi encerrada, tratando-se de um período de transição cuja saída não pode ser determinada, e que deve ser marcado pela existência de regimes híbridos. Tomando este contexto como parâmetro, e considerando os movimentos de extrema direita como parte deste processo, creio ser possível antever alguns cenários possíveis.

No curto e médio prazo, é provável que os movimentos de extrema direita continuarão existindo como expressão da crise de hegemonia, e deverão ser, em maior ou menor grau, a depender das condições específicas de cada país, incorporados ao bloco no poder, seja através da emergência de forças exógenas, seja pela conversão de forças políticas tradicionais oriundas da velha oligarquia e pela cooptação de camadas populares da sociedade críticas ressentidas pelas medidas de austeridade, inclusive por governos progressistas.

O grau de incorporação da extrema direita poderá ser um indicador da velocidade de avanço do neoliberalismo mais duro. Ao mesmo tempo, deve seguir o embate ideológico, com incorporação ao Estado da parte que afirma os interesses do neoliberalismo mais duro, e rechaço da parte que o nega. Neste sentido, ainda que representem uma reação aos efeitos do neoliberalismo sobre as frações periféricas da burguesia e da pequena burguesia, os movimentos de extrema direita podem contribuir para a consolidação do neoliberalismo mais exploratório.

Numa perspectiva de longo prazo, é possível identificar pelo menos dois cenários: o primeiro que segue uma perspectiva de resolução da atual crise de hegemonia nos Estados latino-americanos, que passa, obrigatoriamente, pela resolução das tensões econômicas e geopolíticas internacionais e pelo modo como os países da região resolvem suas próprias contradições e se localizam na nova divisão internacional do trabalho. Nesta hipótese, os movimentos de extrema direita podem consolidar o seu espaço no bloco no poder, expressa a nova localização política e econômica na nova forma de Estado. O tamanho e a importância deste espaço serão determinados, evidentemente, pelo modo como for resolvida a crise estrutural e pelas lutas que se desenvolvem hoje.

O segundo cenário de longo prazo é a possibilidade da crise se estender por tempo indeterminado, somado ao agravamento das contradições econômicas, sociais e políticas, o que poderia conduzir a um Estado de exceção. Nesta hipótese, os movimentos e organizações de extrema direita poderiam completar o seu caminho em direção a um regime fascista, de acordo com a sistematização de Poulantzas (1972). Contudo, ainda que esta hipótese venha a se apresentar, não se pode rejeitar de antemão que o regime adquira outras formas, como bonapartismo ou regimes militares, ou ainda uma combinação entre essas formas. Neste aspecto, não apenas a evolução das organizações de extrema direita, como também o papel da burocracia civil e militar, além de outros aspectos, são indicadores que devem ser considerados para identificarmos a dinâmica da atual crise dos Estados latino-americanos.

À guisa de conclusão

No presente texto procurei apresentar algumas questões e hipóteses para estudo do surgimento ou emergência da extrema direita na América Latina, partindo do entendimento de se tratar um subproduto da desestabilização do sistema internacional e dos países após a crise econômica de 2008 e das contradições decorrentes da implementação do neoliberalismo mais extremado desde então, no marco da crise dos Estados e do surgimento de regimes híbridos. A partir do diálogo com outros autores, foram abordados aspectos como as possíveis relações entre a extrema direita na atualidade, a intensificação das medidas de austeridade, a crise dos Estados, e as frações das classes dominante; as similaridades e diferenças desses movimentos e organizações com o fascismo clássico; os possíveis reflexos que podem produzir na ideologia dominante; e algumas possíveis dinâmicas de evolução desta corrente no atual estágio do capitalismo.

Conforme foi salientado, trata-se de uma primeira aproximação, um exercício para problematização do tema, sem qualquer pretensão de chegar a definição de respostas mais precisas. Talvez as únicas conclusões a serem extraídas é que as análises mais em voga, de caráter institucionalista e/ou formalistas, se mostram incapazes de desvelar as causas estruturais da extrema direita na atualidade. Já os debates no campo do materialismo histórico e da dialética têm se mostrado mais promissores para explicar este fenômeno em toda a sua complexidade social e política.

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FONTE:

https://www.ufrgs.br/odela/2025/05/16/a-extrema-direita-na-america-latina-questoes-e-hipoteses-para-estudo/