A farsa do patriotismo
Os golpistas não desistem da farsa do patriotismo
Por que réus civis e fardados continuam afrontando o Judiciário e a democracia
Por Moisés Mendes / Publicado em 29 de julho de 2025
Dois oficiais se fardaram para interrogatórios no Supremo, na condição de réus golpistas do time de militares de Bolsonaro. Hélio Ferreira Lima e Rafael Martins de Oliveira dariam depoimentos online, mas apareceram com suas vestimentas de coronel.
O ministro Alexandre de Moraes, que não estava nas audiências, determinou que eles trocassem de roupa. O argumento do ministro foi esse: os dois eram réus acusados de golpe. Não estavam representando nada que tivesse relação com suas funções no Exército. E as Forças Armadas não estão em julgamento.
Se quisesse, Moraes poderia ter dado um exemplo, nesse país onde tudo funciona por analogia. Seria como se dois médicos de um hospital público, que usam aventais brancos com o nome do hospital bordado no peito durante todo o dia, e que agora são réus, aparecessem devidamente fardados como médicos em audiência no STF.
A pergunta seria inevitável: a organização às quais prestam serviços tem alguma relação com os crimes dos quais são acusados? Por que dois médicos réus usariam o fardamento do hospital?
Estariam sendo protegidos pelo hospital? Por todo o hospital como entidade pública? Por alguns diretores do hospital? Por uma ala do hospital?
Os coronéis que apareceram fardados tentaram sugerir que estavam ali como homens do Exército. Mas todo o Exército que os acolhe foi golpista ao lado de Bolsonaro?
O que os dois simularam foi mais um golpe, dessa vez de esperteza, com o uso da imagem das Forças Armadas: estamos aqui, enfrentando o STF, como expressões da mais poderosa das três armas.
E assim eles estariam sugerindo que defendem a pátria. E que suas atitudes no plano contra Lula, Alexandre de Moraes e o STF foram parte do cumprimento de uma missão patriótica.
Esse seria o nobre objetivo da afronta no STF. Dois golpistas apresentam-se à Justiça como envolvidos numa missão que exigiu suas fardas, por ser uma missão militar. E, agora réus, ali estavam eles fardados.
Moraes determinou que trocassem de roupa e voltassem como quisessem, mas sem fardas e insígnias. Alguns juristas, sempre eles, ouvidos pelos jornalões, argumentam que a farda é indissociável das funções de um militar.
Seria o mesmo caso do avental em relação ao médico? Ou do macacão em relação ao eletricista? Ou só o militar pode estar sempre fardado, por imposição dos simbolismos do poder, da guerra e dos golpes e por estar acima de todos os outros profissionais? Militares seriam seres superiores?
O ministro poderia então, partindo desse argumento, mandar perguntar, por meio do juiz auxiliar Rafael Henrique Tamai Rocha, que fazia os interrogatórios, se os dois também estavam fardados quando visitaram o general Braga Netto em 22 de novembro de 2022.
Foi nessa reunião na casa do general, segundo a Polícia Federal e a denúncia da Procuradoria-Geral da República, que os dois kids pretos trataram da missão de eliminar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
Moraes também poderia perguntar aos interrogados, nessa linha da farda indissociável da figura do militar, se no dia 15 de dezembro de 2022 os kids pretos também estavam fardados. Os kids pretos estavam na turma que, naquele dia, deveria capturar (e depois matar?) Moraes.
Eles estavam naquele dia 15 com trajes civis ou com fardas usadas em missões especiais? A missão contra Moraes, que acabou abortada, era uma empreitada militar e patriótica? Uma tarefa de soldados de alta performance carregada de civismo?
O caso dos dois coronéis kids pretos é exemplar da situação exposta pelo golpismo também agora, quando dos ataques de Trump ao Brasil. O fascismo bolsonarista vinculou quase tudo o que fez ou tentou fazer, depois da declaração de guerra de Trump, a ações patrióticas. Mas defendendo Trump.
Deus, pátria e família foi o bordão que sustentou o bolsonarismo no poder e agora fora dele, quando o Brasil é atacado. Uma farsa em três palavras, que sobrevive a todos os fracassos do extremismo. A família Bolsonaro está com Trump contra o Brasil.
Mas os kids pretos seriam expressões do patriotismo de uma elite treinada para defender o país. O mesmo o grupo que fracassou na missão de assassinar Lula, Alckmin e Moraes porque desistiu de levar a operação adiante.
Assim como no 8 de janeiro todos os que planejaram o golpe e estão agora sob julgamento recuaram e abandonaram os manés que invadiram Brasília. Fracassaram como golpistas por falta de coragem para seguir em frente.
E se exibem agora como expressões da pátria fardada, como se todo o Exército que os acolhe fosse parte da estrutura do golpe planejado por Bolsonaro.
Sabe-se que o comando, naquele momento, não foi. Que os chefes da arma se negaram a acompanhar Braga Netto, Bolsonaro, Augusto Heleno e integrantes do núcleo crucial do golpismo.
Mas os dois kids pretos tentaram depor como militares do Exército. Queriam usar as fardas como escudo. Para dizer que as Forças Armadas estavam de novo afrontando o Judiciário.
Os kids pretos são da mesma turma que propagou a ideia de que bolsonarismo e patriotismo se conectam e se manifestam até mesmo quando Trump agride o Brasil. Para que a família fracassada como golpista deixe claro que está, não ao lado do Brasil, mas alinhada a Trump.
Não vamos perder a chance de publicar de novo a frase que atribuem ao inglês Samuel Johnson, e que na versão nacionalista é atribuída a Nelson Rodrigues: “O patriotismo é o último refúgio do canalha”.
E tem a versão de Millôr Fernandes, também muito compartilhada, de que não é o último, mas o primeiro refúgio. No Brasil, o patriotismo terrivelmente falso é com certeza a trincheira dos golpistas e dos entreguistas, com e sem farda.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.
FONTE:
https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2025/07/os-golpistas-nao-desistem-da-farsa-do-patriotismo/