A Filosofia, sob ataque, resiste!
De volta à caverna? A Filosofia, sob ataque, resiste! (Parte 1, de 3)
A luta pela presença da Filosofia como disciplina específica na Educação Básica tem longa história

Um dos alvos, novamente, é a Filosofia, que pretendem seja ofertada em apenas
um período semanal de 45 minutos
Não voltaremos para o fundo de cavernas, armários, senzalas,
porões ou prisões, como querem os senhores da casa-grande!
Tinha tudo para ser um sábado lindo em Porto Alegre. Céu azul, clima agradável e um ar primaveril, véspera do Dia das Crianças. Nas escolas municipais, professoras(es) se reúnem para uma reunião compulsória de “alinhamento pedagógico” determinado pela Secretaria Municipal de Educação (SMED), sob a condução do secretário da hora, Leonardo Pascoal, um advogado militante de direita filiado ao PL (Partido Liberal), apoiador da reeleição de Bolsonaro em 2022, que ocupa a cota do partido nesta segunda gestão de Sebastião Melo (MDB) na Prefeitura de Porto Alegre, eivada de escândalos de corrupção na educação.
Na pauta da reunião, um amargo presente antecipado do “dia de professoras /es”: direções das escolas anunciam determinação da SMED, através de uma simples tabela (“grade curricular”) no retroprojetor. Nela, uma monocrática, drástica e absurda alteração na organização curricular para 2026 das escolas de Ensino Fundamental da capital gaúcha. Um dos alvos, novamente, é a Filosofia, que pretendem seja ofertada em apenas um período semanal de 45 minutos. A redução à metade de sua carga horária atual, junto com todas as humanidades e as artes (e as cargas horárias de equipes pedagógicas) vem dentro de um pacote maior: o fim progressivo da oferta dos Anos Finais (6º ao 9º ano) nas escolas da rede pública municipal de Porto Alegre.
Importante mencionar que desde 2021, na primeira gestão do governo do MDB, que sucedia o desmanche do serviço público operado pelo PSDB na gestão anterior na capital, especialmente na educação, o componente curricular de Filosofia junto aos Anos Finais do Ensino Fundamental já virava uma mera palavra atrás de uma barra, precedida por “Ensino Religioso”. Uma reforma curricular proposta no mesmo modo operador, em poucas lâminas de power point, cuja fundamentação teórica era a citação “nada do que foi será”, resultou na retirada da Filosofia e implantação da Religião, atendendo aos interesses de grupos fundamentalistas religiosos neopentecostais e conservadores de distintos matizes.
Resistências
O Movimento Fica Filosofia, criado em 2021 pelas/os professoras/es da disciplina da Rede Municipal, enfrentou a reforma mobilizando colegas, estudantes, professoras/es e pesquisadoras/es universitária/os; produziu uma série de materiais entre textos e estudos, mobilizações de rua, manifestos públicos e um livro publicado, inclusive. Impediu que ela fosse extinta, mas o resultado, sob uma correlação de forças desfavorável, foi a permanência apenas da palavra, depois da Religião: Ensino Religioso / Filosofia na grade curricular. Se poderia considerar que a Filosofia permaneceria presente nas escolas uma vez que só há professoras/es de filosofia na rede de ensino (e não há de Ensino Religioso). Contudo, o sistema de registro de planejamento de aulas, diários de classe, avaliações de estudantes da Prefeitura oferece exclusivamente conteúdos de Ensino Religioso para serem marcados, sob a justificativa de serem os determinados pela BNCC – Base Nacional Curricular Comum, confundindo base com diretriz.
A luta pela presença da Filosofia como disciplina específica na Educação Básica tem longa história. Em 2008, no segundo governo Lula, logramos uma vitória com a Lei nº 11.684, que garantia a obrigatoriedade do ensino de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio, alterando a LDB, onde ela aparecia como conteúdo transversal. A conquista era ponto de chegada de um longo caminho desde os anos 90, mas, já em 2017, na presidência de Michel Temer (MDB), pós-golpe em Dilma Rousseff (PT), a Filosofia voltou a desaparecer no enredo sinuoso da BNCC.
Na contramão das universidades
As modificações propostas pela Prefeitura de Porto Alegre se colocam em confronto direto com os esforços empreendidos pelas diversas universidades da região metropolitana na formação inicial e continuada dos docentes de Filosofia. A Filosofia da Ufrgs, em especial, trabalha com docentes da Rede Municipal em diversos níveis: Programa de Iniciação à Docência (o PIBID), Mestrado Profissional (PROF-FILO), disciplinas da graduação que envolvem extensão (oficinas nas escolas) e constantemente convidam os/as docentes da RME para atividades de formação dos/das estudantes de graduação. Muitos dos egressos do curso de Licenciatura da Ufrgs são hoje docentes da Rede Municipal. Consolida-se um círculo virtuoso de formação que a Prefeitura prefere desperdiçar ao reduzir a Filosofia nas grades e ao retirar o nível Fundamental II, onde a Filosofia é lecionada, das escolas da Rede.
Ao invés de se valer da Universidade que se encontra à sua disposição, despreza-se o investimento financeiro e humano, a experiência acumulada, a seriedade e o empenho que esta representa e, nisso, coloca em risco a formação das e dos jovens porto-alegrenses. Com efeito, de que adianta aumentar a carga horária em Português e Matemática, estressando os estudantes com a demanda pelo resultado, sem lhes dar condições de compreensão de fins, meios, instrumentos, do contexto histórico, filosófico, geográfico, artístico de suas vidas? Enquanto isso, todo o potencial docente que se encontra à sua disposição é desperdiçado em aulas precarizadas, encontros fugazes e desrespeito pelo conhecimento que trazem os docentes.
Na segunda parte, que dá continuidade a este texto, abordamos a vitalidade das articulações e as reivindicações da Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil) em relação à políticas públicas e o papel da Filosofia no diálogo com o campo educacional. Na terceira, e última parte, retomamos o debate para o nível local e examinamos criticamente o caráter da reforma organizacional, pedagógica e curricular imposta pela gestão da SMED de Porto Alegre, destacando ainda alguns dos desafios para um processo de resistência ativa e coletiva para a manutenção e fortalecimento da presença da Filosofia como componente curricular. Aguarde!
Esta é a primeira de uma série de três textos de opinião que veiculamos aqui, com a acolhida sempre combativa e generosa da Equipe do Brasil de Fato RS.
*André Pares é professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME/POA) e diretor de comunicação da ABEFil, A.L.F..
**Marco Mello é professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME/POA).
***Inara Zanuzzi é do Departamento de Filosofia, PROF-FILO/Ufrgs).
****Priscilla Spinelli é do Departamento. de Filosofia, PROF-FILO/Ufrgs).
*****Magali Menezes é professora da Faced/Ufrgs.
******Patrícia Velasco é presidente da Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil) e da UFABC.
********Christian Lindberg é diretor de Políticas Educacionais-ABEFil, OBSEFIS, UFS.
FONTE:
De volta à caverna? A Filosofia, sob ataque, resiste! (Parte 2, de 3)
Filosofia e Educação: um diálogo imprescindível para refletir a ação pedagógica e os processos de ensino-aprendizagem

A Educação como tempo-espaço de formação humana necessita da Filosofia
como uma dimensão fundamental - André Pares
Este é o segundo de uma série de três textos de opinião sobre a reforma curricular que reduz a carga horária de Filosofia pela metade nas escolas públicas de Porto Alegre (Leia a parte 1).
Na formação de professores/as pela Faculdade de Educação, a Filosofia ocupa espaço fundamental. Na Faced/Ufrgs, o componente curricular Filosofia da Educação, do Departamento de Estudos Básicos, compreende que a Filosofia em seu diálogo com a Educação fornece uma fundamentação importante para o entendimento crítico do que significa educar e qual o papel do professor/a neste processo educativo.
A Filosofia da Educação é um campo do conhecimento que abarca a reflexão sobre questões epistemológicas, éticas, lógicas, que envolvem a linguagem e suas diferentes manifestações, a estética e a pedagogia, entre tantas outras questões que fazem parte da história da Filosofia. Portanto, ao trazer a Filosofia para refletir a ação pedagógica e os processos de ensino-aprendizagem busca aprofundar a própria compreensão de humanidade que necessita da/ outra/o, do acolhimento, do afeto e de saberes partilhados para poder sobreviver e se constituir como humano.
Como um grande campo do conhecimento, a Filosofia, em diálogo com outro grande campo que é a Educação, possibilita avançarmos na reflexão sobre em que sociedade queremos con – viver. A Educação como tempo-espaço de formação humana necessita da Filosofia como uma dimensão fundamental para que possamos viver esta formação de maneira mais plena e profunda.
Experiências vitais sob Filosofias plurais
Vivemos em um tempo de pobreza de experiências, como nos fala Walter Benjamin. Experiência, aqui, assume um sentido intenso, pois nos remete a densidade da vida, daquilo que não passa por nós simplesmente. A experiência, desse modo, nos atravessa e nos transforma, nos colocando como sujeitos de nosso tempo. Contudo, a experiência do pensamento é cada vez mais rara. A facilidade com que são reproduzidas fake news, o cansaço e a escassez de tempo, nos leva para dentro de uma engrenagem que impede de fazermos a experiência do pensamento.
A escola, portanto, ao reproduzir esta engrenagem, reduzindo os tempos da Filosofia, continua a inibir a experiência. Todos os povos em sua pluralidade produziram Filosofias. Conhecer a história da humanidade desde as filosofias nos permite também experimentar formas outras de produzir pensamentos. Filosofias indígenas, africanas, asiáticas, latino-americanas traduzem a riqueza epistemológica de modos de vida que cada povo constitui. Ao negarmos estes saberes em um processo formativo, há também a negação ontológica de todos aqueles e aquelas que produziram estes saberes.
Gestão privatista e autoritária sob orientação neofascista
A retirada parcial da carga horária de disciplinas de Filosofia (de História, Geografia, Artes) da escola pública faz parte de uma agenda do Governo do Prefeito Sebastião Melo (MDB) e do Secretário de Educação Leonardo Pascoal (PL) que indubitavelmente segue uma cartilha conhecida: a do gerencialismo educacional sob a lógica mercantilizadora e privatista que teve como ponto de virada o governo do tucano Nelson Marchezan Jr. (2017-2020). Nesse período, vimos progressivamente, através de um golpe à revelia das comunidades escolares, o fim da organização curricular por Ciclos de Formação e a volta da seriação, o fim da paridade de carga horária dos componentes curriculares, além da extinção das reuniões pedagógicas e formações gerais. Sob o influxo de uma agenda mais ampla, o aperto no garrote para controlar o trabalho docente, através de plataformas virtuais, da BNCC e Referencial Curricular Gaúcho e o alinhamento ao cumprimento de metas de elevação do IDEB.
Mais recentemente, ainda sob a sombra do bolsonarismo e da sanha persecutória da extrema-direita, no parlamento e no executivo local, vimos a aprovação de leis para tentar coibir a liberdade de cátedra (Lei da Mordaça) e a instalação de câmeras de vigilâncias nas salas de aula, além de decretar o fim da eleição para direção das escolas, destituindo direções eleitas, e a indicação sumária aos cargos pelo governo central.
Ataque ao direito à educação em aliança conservadora
O ataque à educação pública anunciado por Pascoal na primeira quinzena de outubro tem, no entanto, um novo e perturbador componente: a aliança entre o Governo do Estado, sob Eduardo Leite (PSD) e a Prefeitura, sob o comando de Melo, que planejam um acelerado programa de municipalização de dezenas de escolas no próximo período e o surreal retorno à escolas incompletas e oferta dual de Anos Finais e Anos Finais em diferentes escolas. Tais medidas arbitrárias afrontam o Estatuto da Criança e dos Adolescentes (ECA), o direito à escola pública de qualidade, o princípio da gestão democrática, restringem a liberdade de escolha e o próprio acesso das comunidades escolares periféricas às unidades escolares, o direito à terminalidade dos estudos, além de mitigar a oferta curricular na área de humanidades, como as referidas perdas em Artes, História, Geografia e Filosofia (nunca é demais repetir!). Tais medidas afetam ainda gravemente a vida funcional e os direitos das/dos trabalhadoras/es em educação e, inclusive, a própria existência destes campos de conhecimento na escola.
É sob esse cenário de ataque à democracia que as forças fundamentalistas e fascistas elegeram como símbolo de seu projeto de poder, a partir de 2021, especificamente a extinção do componente curricular da Filosofia, como se fora um desejo impossível de retorno anti-humanista, obscurantista e retrógrado ao fundo da caverna, em uma antítese à célebre alegoria do filósofo grego Platão para referir-se ao processo de construção da consciência liberta do mundo das aparências, impedindo um pleno estar, na seminalidade da construção do conhecimento, se valendo de categorias fundamentais do filósofo de Abya Yala Rodolfo Kusch (1978).
Na terceira e última parte desta série examinamos criticamente o caráter da reforma organizacional, pedagógica e curricular imposta pela gestão da SMED de Porto Alegre, destacando ainda alguns dos desafios para um processo de resistência ativa e coletiva para a manutenção e fortalecimento da presença da Filosofia como componente curricular. Aguarde!
*André Pares é professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME/POA) e diretor de comunicação da ABEFil, A.L.F..
**Marco Mello é professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME/POA).
***Inara Zanuzzi é do Departamento de Filosofia, PROF-FILO/Ufrgs).
****Priscilla Spinelli é do Departamento. de Filosofia, PROF-FILO/Ufrgs.
*****Magali Menezes é professora da Faced/Ufrgs.
******Patrícia Velasco é presidente da Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil) e da UFABC.
********Christian Lindberg é diretor de Políticas Educacionais-ABEFil, OBSEFIS, UFS.
********Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.
Referências:
ABEFil – Associação Brasileira de Ensino de Filosofia. Instagram: @abefilosofia. 9 ago. 2024.
CAMPANHA FICA FILOSOFIA! Instagram: @ficafilosofia. Porto Alegre (RS), set. 2021.
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana. Buenos Aires: Ediciones Castañeda, 1978.
MELLO, Marco; PARES, André (Orgs.) Fica Filosofia! Pela permanência da disciplina nas escolas públicas de Porto Alegre. Porto Alegre: ATEMPA, Coletivo de professoras e professores da RME de Porto Alegre, Seção Sindical do ANDES/UFRGS, 2021. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1Iz4XuPFAhR9yWZLXVJApFCMjCkQsw5jL/view
MELLO, Marco et. al. Quando começa o fim da picada? Governo Melo e os atentados à educação pública em Porto Alegre. Jornal Brasil de Fato RS. 12 fev. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/02/12/quando-comeca-o-fim-da-picada-governo-melo-e-os-atentados-a-educacao-publica-em-porto-alegre/
PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (SMED). DIRETORIA PEDAGÓGICA (DIP/SMED). Projeto Político-Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação. Ago. 2025. Disponivel em: https://prefeitura.poa.br/sites/default/files/usu_doc/noticias/2025/09/29/PPP%20-%20PUBLICADO_pagenumber.pdf







