A intervenção humanitária

A intervenção humanitária

A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA: Direitos humanos como justificativa para perturbar democracias?

Leonardo Stoppa

1 – Método 

Este trabalho avalia os argumentos acerca da possibilidade de intervenção humanitária na Venezuela. Será realizada uma revisão bibliográfica fazendo uso de dois dos artigos dados, contrastando com fatos históricos que são os casos de Ruanda e Kosovo; bem conhecidos pela comunidade internacional como exemplos de não intervenção e intervenção humanitária duvidosa. Para apoiar a visão de que a decisão acerca de uma intervenção poderia se basear em uma realidade distorcida, o presente trabalho explorará o caso da Venezuela, contrastando a opinião de especialistas em Relações Internacionais com a história contada pela imprensa tradicional, que tem gerado a percepção pública da existência de um regime de ditadura que demandaria intervenção militar humanitária, a fim de proteger o povo venezuelano do seu próprio governo. 

2 – Introdução 

Os antecedentes históricos e teóricos nos levam a concluir que alguns países desenvolvidos e industrializados estão sempre perturbando o crescimento econômico dos países em desenvolvimento. Para evitar a competição internacional ou conceder recursos minerais e agrícolas, o Norte global impõe ao Sul global não apenas interferência econômica e cultural, mas até mesmo estigmas que levam as pessoas ao redor do mundo a acreditarem que alguns países merecem intervenção para se encaixarem em um mercado internacional de padrão aceitável.

Casos como Iraque, Líbia e Síria convidam-nos a pensar se seriam realmente humanitários os motivos para a invasão militar sofrida por eles, especialmente quando comparamos com o caso de Ruanda, onde a comunidade internacional assistiu a um genocídio sem tomar qualquer atitude que poderia ter evitado cerca de um milhão de vítimas mortais. A mesma comunidade internacional que ignorou Ruanda está agora observando a Venezuela e destaca-se a coincidência deste episódio com os ocorridos no Iraque, Líbia e Síria: O país tem um vasto estoque de hidrocarbonetos sob seu solo.

A questão que este trabalho levanta é que, mesmo estando em crise, a Venezuela não seria um caso de intervenção humanitária e os rumores de ditadura seriam apenas um suporte da mídia tradicional para outro desrespeito à soberania em nome do controle do petróleo. 

3 – Análise e descobertas. 

3 .1 – Intervenção humanitária. 

Holzgrefe (2003) define intervenção humanitária como: 

“A ameaça ou uso da força através das fronteiras estaduais por um estado (ou grupo de estados), que visa prevenir ou acabar com as violações generalizadas e graves dos direitos humanos fundamentais de outros do que seus próprios cidadãos [do Estado interveniente] indivíduos, sem a permissão do o estado em cujo território o território é aplicado.” (citado em BELL, 2014 p. 297)

A partir dessa definição, podemos inferir que a única intervenção que poderia ser justificada por motivos humanitários seria aquela que buscasse impedir as violações dos direitos humanos fundamentais, em especial, circunstâncias de genocídio, definido como “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso ”(BELL, 2014 p. 300).

A controversa começa quando olhamos para o caso de Ruanda, onde um genocídio resultou na morte de cerca de um milhão de pessoas e o caso não levou à intervenção. Alguns especialistas afirmam que os países desenvolvidos não viam seus interesses em risco e a comunidade internacional foi levada a considerar o caso como uma guerra civil em vez de um genocídio, o que permitiu um assassinato em massa. (BELL, 2014)

Outro caso citado pelo mesmo autor e que merece atenção é a intervenção humanitária no Kosovo. Embora apoiada por motivos humanitários, a intervenção usou ataques aéreos em vez de tropas terrestres, o que resultou em muitas mortes de civis, desafiando o argumento de uma intervenção por razões humanitárias. Bell (2014) aponta que os cientistas tomam como controversos não apenas o grande número de mortes de civis, mas também a destruição da infraestrutura dos países durante a intervenção humanitária. 

Para apoiar a intervenção, alguns políticos e cientistas argumentam que “os fins justificam os meios”, o que é conhecido como uma abordagem consequencialista. Os consequencialistas afirmam que o fim dessas “ditaduras” será um bom resultado a longo prazo. Outra abordagem usada para justificar a intervenção é o acompanhamento de procedimentos legais do direito internacional, a abordagem procedimentalista, segundo a qual, desde que os procedimentos legais sejam seguidos, a intervenção seria justificável.

A crítica contra as intervenções levanta o fato que, apenas estados frágeis estariam sob escrutínio da comunidade internacional, como Bell (2014) exemplifica, ninguém esperaria que algum país interviesse na Rússia, na China ou nos Estados Unidos, o que descarta a afirmação que uma comunidade internacional estaria pronta para agir em favor dos direitos humanos.

No mesmo caminho de Bell, com um enfoque no continente africano, Kabunda (2017) destaca o fato de que tribunais internacionais não cumprem seu papel na promoção de justiça internacional, mas operam seletivamente e com a finalidade da mudança de governos de acordo com a conveniência de líderes influentes. 

“O TPI, pelo contrário, atua mediante a detenção de alguns ex-chefes de Estado e senhores da guerra (Charles Taylor, Laurent Gbagbo, Jean-Pierre Bemba, Thomas Lubanga, Germain Katanga, Bosco Ntaganda, etc.) (…) Neste contexto, é impressionante a declaração do Presidente ugandês, Yoweri Museveni, para quem os governos ocidentais estão a utilizar o TPI para «instalar líderes do seu agrado em África e eliminar os que não o são»17. No mesmo sentido, o juiz do TPI para a antiga Jugoslávia, o dinamarquês Frederik Harhoff, afirmou a 12 de junho de 2013 que os tribunais internacionais não são neutros e obedecem aos interesses das grandes potências. A opinião mais partilhada é que o TPI persegue apenas os responsáveis africanos ou pratica «a justiça dos vencedores», partindo das leis elaboradas pelos cinco membros do Conselho de Segurança, em especial os três permanentes ocidentais (e seus aliados), que as impõem ao resto do mundo, sem sequer, eles mesmos, as respeitarem” (KABUNDA, 2017, p.51) 

Importante neste ponto destacar que, caso a vontade do povo venezuelano seja ignorada internamente em favor de uma vontade publicada fora da Venezuela, seria esperado que uma legitimidade oportunizasse uma intervenção justificada para fins humanitários, porém, pergunta-se se o resultado seria uma Venezuela melhor ou pior que a que existe hoje, já que os resultados a longo prazo seriam dificilmente previsíveis, conforme Savelsberg comenta genericamente sobre o tema: 

“A “caixa-preta” que encadeia o processo causal entre as respostas institucionais às ofensas humanitárias aos direitos humanos, de um lado, e as resultantes futuras, de outro, ainda não foi aberta o suficiente para que se possa ver e entender claramente seu conteúdo.” (2007, p.14) 

Salvelsbert (2007) nos proporciona um argumento racional para torcermos para que a situação da Venezuela não culmine em uma guerra, que é a memória coletiva. Da mesma forma que não podemos prever a dimensão do dano causado por uma intervenção institucional na soberania de um país, precisamos admitir que é impossível conceber relações a perfeita continuidade diplomáticas e sociais após um evento no qual o Brasil decida iniciar uma guerra que, indiferente dos motivos, acabaria por colocar dois países, antes amigos, em uma situação de conflito. 

3.2 – A Era pós-colonial 

Embora o fim da era colonial tenha terminado o colonialismo em termos formais, na verdade o colonialismo é uma realidade se considerarmos que o sul global continua a produzir matérias primas a serem industrializadas no norte global. O passado colonial ainda está presente nos dias contemporâneos e as antigas potências imperiais ainda lutam para manter sua influência sobre antigas colônias.

As commodities como o petróleo tendem a ter seus preços reduzidos pela situação econômica dos produtores, que nunca conseguem controlar a produção para aumentar o preço. Qualquer tentativa de usar sua soberania para decidir o destino de suas commodities é sempre respondida com interferência internacional, que pode vir de uma crise diplomática à intervenção militar.

Essa é a afirmação de Igor Fuser, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC – São Paulo. Fuser esteve na Venezuela por muitas vezes e critica a grande mídia que em todo o mundo que tenta criar uma percepção de ditadura dentro da Venezuela, o que poderia resultar em uma legitimação para tal intervenção. 

3.3 – Intervenção na Venezuela 

Em 11 de agosto de 2017, o mundo assistiu o presidente dos Estados Unidos – Donald Trump – sugerir que a crise democrática na Venezuela estaria exigindo uma intervenção militar. De acordo com Trump “Temos muitas opções para a Venezuela e, a propósito, não vou descartar uma opção militar” (JACOBS, 2017).

A mídia em todo o mundo pinta o governo de Nicolas Maduro como uma ditadura sem legitimação. Alguns protestos populares foram usados para criar um apelo internacional de que a Venezuela estaria “pedindo” uma mudança no governo. No Brasil, o presidente eleito trabalhou desde o início de sua pré-campanha o discurso anti-Maduro, chegando ao ponto de seu filho e deputado reeleito prometer tal intervenção em um comício realizado na Av. Paulista, recebendo do povo presente forte apoio.

Por outro lado, cientistas de RI na América do Sul têm outra história para contar. Após longos anos de governo liberal, um partido popular socialista ganhou as eleições na Venezuela e, mesmo assim, “O chavismo”, como é conhecido o modelo de Estado social aplicado na Venezuela, ganhou todas as eleições. Os novos episódios são os mais controversos: alguns cientistas (FUSER, 2017) sustentam que, para colocar os produtores de petróleo em problemas econômicos, a OPEC, Organização dos Países Exportadores de Petróleo, decidiu ‘superproduzir’ petróleo e a Venezuela é um dos países que vem sofrendo os efeitos da queda do preço de sua commodity mais importante.

A controvérsia sobre o apoio à intervenção humanitária reside em pensar no por que um país precisa de intervenção. A crise da Venezuela é explicada por alguns cientistas como “crises produzidas com o objetivo de perturbar o governo”. Igor Fuser, em uma entrevista para a TV Bandeirantes alegou que alguns ataques civis que são amplamente atribuídos ao atual presidente são orquestrados pelo partido da oposição com o objetivo de reivindicar a atenção internacional. Fuser comentou também sobre o controle de bens de consumo que é frequentemente mostrado na mídia como resultado de uma política comunista. Na visão de Fuser, o setor logístico, alinhado com a oposição, estaria restringindo o acesso da população a bens básicos a fim de conduzir o país a votar em candidatos liberais.

Agora, contrastando o retrato da realidade na grande mídia com a realidade vivida na Venezuela, devemos nos perguntar por que o chavismo venceu as eleições em mais de 90% dos municípios(Rodrigues, Borges e Medeiros, 2018), no mesmo tempo em que todo o mundo se refere à Venezuela como uma ditadura e EUA e Brasil insistem em intervenção humanitária? 

4 – Conclusões: 

A intervenção humanitária é um dever da comunidade internacional, mas a avaliação da necessidade de intervenção humanitária não deve estar nas mãos dos países que têm interesses diretos nos recursos daquele país em crise. Com o objetivo de manter os países como fornecedores de insumos primários, os países desenvolvidos podem prejudicar os países em desenvolvimento fazendo uso de estratégias como o apoio dos partidos de oposição no desenvolvimento e divulgação de protestos sociais, o que acaba por desencadear problemas econômicos, políticos e sociais. Aprovar ou apoiar uma intervenção humanitária protagonizada por um país que produziu o problema seria perpetuar o modus operandi de superpotências que interferem agora para intervir depois. 

5 – Referências.

Bell, D. (2014) ‘ Humanitarian Intervention’ em Brown e Czajka (eds.) Relações Internacionais: Continuidade e Mudança na Política Global. A Universidade Aberta – Milton Keynes.

Czajka , A. (2014) ‘ Reflexões teóricas: cosmopolitismo e teoria póscolonial’ em Relações Internacionais de Brown e Czajka (eds.): Continuidade e Mudança na Política Global. A Universidade Aberta – Milton Keynes.

Fusor, I. (2017) ‘ Crise n / D Venezuela ‘ , Brasil247, São Paulo – Brasil [online] Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/309060/Igor-Fusermostra-o-que-de-fato-está-por -trás-na-crise-da-Venezuela.htm [Acessado em 20 de novembro de 2018].

Jacobs, B. (2017). Trump ameaça “opção militar” na Venezuela com a escalada da crise . [ online ] o Guardião. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2017/aug/11/donald-trump-venezuela-crisismilitary-intervention [Acessado em 20 de novembro de 2018].

Kabunda, Mbuyi. (2017). O sistema normativo africano de direitos humanos. Relações Internacionais (R:I), (54), 4554. https://dx.doi.org/doi.org/10.23906/ri2017.54a04 [Acessado em 20 de novembro de 2018].

Rodrigues, J., Borges, J. e Medeiros, J. (2018). Chavismo vence em 22 das 23 capitais da Venezuela – Portal Fórum . [ online ] Portal Fórum . Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/2017/12/11/chavismo-vence-em-22-das23-capitais-da-venezuela/ [Acessado em 20 de novembro de 2018].

Savelsberg, Joachim J.. (2007). Violações de direitos humanos, lei e memória coletiva. Tempo Social, 19(2), 13-37. https://dx.doi.org/10.1590/S010320702007000200001 [Acessado em 20 de novembro de 2018]. 




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