A luta esquecida dos negros

A luta esquecida dos negros

A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão no Brasil

Amanda Rossi e Juliana Gragnani BBC Brasil

Edição de 14 de maio de 1888A Gazeta de Notícias / Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Edição de 14 de maio de 1888 / O Cachoeirano

 

Há 130 anos, o domingo de 13 de maio de 1888 amanheceu ensolarado no Rio de Janeiro, a capital do Império do Brasil. Era um dia de festa. A escravidão chegava ao fim por meio de uma lei votada no Senado e assinada pela princesa Isabel.

O Brasil era o último país da América a acabar com a escravidão. Ao longo de mais de três séculos, foi o maior destino de tráfico de africanos no mundo, quase cinco milhões de pessoas. Grande parte dos descendentes daqueles que chegaram também fora escravizada.

“Todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”, recordou cinco anos depois o escritor Machado de Assis, que participou das comemorações do fim da escravidão, no Rio.

Outro escritor afro-descendente, Lima Barreto, completava 7 anos naquele 13 de maio e celebrou o aniversário no meio da multidão. Décadas depois, se lembraria: “Jamais na minha vida vi tanta alegria. Era geral, era total. E os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente (de) festa e harmonia”.

"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio" 
Machado de Assis

Abaixo, foto da missa realizada em 17 de maio de 1888, no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, para celebrar o fim da escravidão no Brasil.

Na imagem é possível ver a princesa Isabel. À sua esquerda, um pouco abaixo, estaria Machado de Assis.

 

Crédito: Antonio Luiz Ferreira/Acervo Instituto Moreira Salles

Na festa, Isabel foi exaltada pelo povo. Mas a abolição não foi uma ação benevolente da princesa e do Senado. Tampouco derivava apenas da exaustão do modelo econômico baseado no trabalho escravo, que precisava ser substituído pelo trabalho livre.

O fim da escravidão no Brasil foi impulsionado por diversos fatores, entre eles, uma importante participação popular. Cada vez mais escravos, negros livres e brancos se juntaram aos ideais abolicionistas. Sobretudo, na década de 1880.

As principais táticas eram a reunião em diferentes associações abolicionistas, a realização de eventos artísticos para angariar apoio, o ingresso de processos na Justiça e até o apoio a revoltas e fugas de escravos.

Em 1831, o Brasil proibiu o tráfico negreiro. Já prevendo que isso ocorreria, os traficantes de escravos transportaram um número recorde de pessoas em 1829. Logo depois da lei, o tráfico caiu, mas voltou a subir e só foi proibido definitivamente em 1850.

Fotografia da Princesa Isabel, ano desconhecido
Joaquim Insley Pacheco / Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Fotografia da Princesa Isabel, ano desconhecido 
Joaquim Insley Pacheco / Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Na segunda metade da década de 1880, o abolicionismo pôs o Brasil em polvorosa. Ceará, Amazonas e algumas cidades isoladas já tinham se declarado livres da escravidão. Fugas e revoltas de escravos eram cada vez mais frequentes. Depois de fugir, eles tentavam chegar até quilombos e territórios já libertos. A polícia era convocada para reprimir, mas também passou a se rebelar. O chefe do Exército chegou a escrever para a princesa exaltando a liberdade e dizendo que não iria mais caçar escravos fugidos.

No Parlamento, os debates pela abolição pegavam fogo. Na Justiça, havia um número cada vez maior de ações para reivindicar a liberdade. Nas cidades, espetáculos artísticos eram seguidos de libertações massivas de escravos - no final, flores costumavam ser atiradas ao palco e o público saía aos gritos de “Viva a liberdade, viva a abolição”.

"Depois da abolição, aconteceram várias celebrações em torno da princesa Isabel. Parte dos abolicionistas, inclusive, associou a abolição à Coroa. Mas (a princesa) teve uma importância bem lateral", fala a socióloga Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo e autora do livro "Flores, Votos e Balas", sobre o movimento abolicionista. "Há vários líderes negros que foram muito importantes".

Ricardo Tadeu Caires Silva, professor da Universidade Estadual do Paraná, explica que durante muito tempo o estudo da história tratou a abolição como uma dádiva da princesa Isabel, “ignorando a agência dos principais interessados na abolição: os escravos". Somente mais tarde, os escravos passaram a ser considerados protagonistas do processo.

"Aqueles que vencem a batalha é que fazem a narrativa. Nós historiadores temos que reconstituir o processo da batalha, para recuperar as vozes daqueles que não foram ouvidas", complementa Maria Helena Machado, também da USP, especialista em escravidão.

A lei assinada pela princesa - e apelidada de Lei Áurea - vinha tarde. Todos os países da América já tinham abolido a escravidão. O primeiro, foi o Haiti, 95 anos antes, em 1793. A maioria demorou para seguir o pioneiro, e fez suas abolições entre os anos 1830 e 1860. Os Estados Unidos, em 1865. Cuba, a penúltima a abolir a escravidão, o fez dois anos antes do Brasil.

Em nenhum outro país, contudo, a escravidão teve a dimensão brasileira. Enquanto 389 mil africanos desembarcaram nos Estados Unidos, no Brasil foram 4,9 milhões - 45% de toda a população que deixou a África como escrava. No caminho, cerca de 670 mil morreram. O gigantismo da escravidão no Brasil dificultou o seu fim - ela estava impregnada na vida nacional.

A lei também vinha curta e seca. Artigo 1: "É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brazil. Artigo 2: Revogam-se as disposições em contrário". Nada mais. Nenhuma indenização ou compensação para os recém-libertos, estimados em 1,5 milhão de pessoas naquela época, nenhuma política de emprego ou de acesso à terra. Isso dificultou a integração dos ex-escravos.

“(A alegria trazida pela lei da abolição) havia de ser geral pelo país, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!”, ponderou Lima Barreto, ao se recordar da festa da abolição.

Lei n°3.353, a Lei Ãurea, de 13 de maio de 1888Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Lei n°3.353, a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888

"Tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!"
Lima Barreto

Em 1886, a célebre cantora lírica russa Nadina Bulicioff veio ao Brasil para fazer uma série de espetáculos, a convite do imperador Pedro II. Estava em cartaz com a peça Aida - nome da personagem principal, filha do rei da Etiópia, escravizada no Egito.

A temporada teve grande sucesso. Especialmente, a última apresentação. Em certa altura da história, Aida foge do cativeiro, ainda com algemas. Nesse momento, o abolicionista José do Patrocínio interrompeu a cena e subiu ao palco com seis mulheres escravizadas.

Anúncio de uma matinê abolicionista no jornal Gazeta da Tarde, em 1883 Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil / Publicado no livro "Flores, votos e balas"

Anúncio de uma matinê abolicionista no jornal Gazeta da Tarde, em 1883 Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil / Publicado no livro "Flores, votos e balas"

Então, a russa rompeu as algemas do figurino e, por um momento, trocou a ficção pela realidade: entregou cartas de liberdade verdadeiras para as seis escravas, que se tornaram livres naquele momento, como Aida. “Sete Aidas. Choraram elas e o público, em delírio. Houve palmas e vivas, lançaram-se flores, soltaram-se pombos”, relata Angela Alonso no livro “Flores, Votos e Balas”.

Patrocínio e Nadina entregam alforrias para escravas durante concerto Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Patrocínio e Nadina entregam alforrias para escravas 

Era um evento abolicionista, já pré-combinado. Na passagem pelo Brasil, Nadina ficou horrorizada com a escravidão. Recebeu uma joia de presente de admiradores e resolveu doá-la para comprar cartas de liberdade. O jornalista e escritor José do Patrocínio, negro e livre, ajudou a colocar a ideia em prática.

Patrocínio já estava acostumado a organizar eventos artísticos em prol da libertação dos escravos. Essa era uma das principais táticas do movimento abolicionista, do qual o jornalista fazia parte. As apresentações de música e teatro angariavam recursos para comprar cartas de liberdade, estimulavam as pessoas a libertarem seus próprios escravos e, principalmente, ajudavam a persuadir a opinião pública.

Foram realizados mais de 800 eventos artísticos abolicionistas, segundo catalogação de Angela Alonso. “A arte era uma das formas mais viáveis de política abolicionista. Nesses eventos há um apelo à humanidade e à compaixão”, diz.

Desde o final da década de 1860, o movimento abolicionista estava nas ruas. Nos anos 1880, atingiu seu auge. A base da sua organização eram as associações abolicionistas, que se multiplicavam pelo país - Alonso registrou 296, em todos os Estados. Entre elas, havia sociedades formadas apenas por mulheres. Para a socióloga, o abolicionismo foi o primeiro movimento social brasileiro.

Além das artes, outra tática usada pelos abolicionistas foi a judicial. Luís Gama, um ex-escravo que se tornou advogado dos escravos, ajudou a libertar cerca de 500 pessoas graças a processos nos tribunais, e fez seguidores.

Gama nasceu livre na Bahia. Mas, ainda criança, acabou vendido como escravo e foi levado para São Paulo. Aos 17 anos, aprendeu a ler e escrever. Em seguida, reivindicou sua liberdade ao seu proprietário - e conseguiu. Afinal, nascera livre, e livre era.

 




ONLINE
6