A luta indígena pela educação
A luta indígena pela educação
Sete em cada dez estudantes da educação básica pública sem acesso à internet são negros e indígenas
Por 14/04/21
Por Izabela Ferreira Alves, Queila Ariadne, Rafael Rocha e Tatiana Lagôa
Pedro Henrique sofre com a distância dos colegas de escola, mas pode ser considerado um privilegiado na aldeia por ter acesso à internet e um computador - Foto: arquivo pessoal
“Antes de me ligar, manda uma mensagem porque aqui na aldeia eu tenho que ir para o alto do cerrado para o sinal da operadora funcionar”. Aquele primeiro contato para a entrevista, via mensagem, com o estudante do quarto período de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Otávio Júnior da Costa, 26, já mostrou uma parte das inúmeras dificuldades por ele enfrentadas para seguir os estudos. Com a internet fraca em casa e o acesso a ligações só em alguns pontos da aldeia onde vive, muitas vezes o indígena precisa seguir até o Santuário Caxixó, a cerca de um quilômetro de sua casa, para conseguir se comunicar com colegas de sala e professores.
E foi lá do alto, de pés descalços, após dez minutos de caminhada, ao lado de uma cruz e da imagem de Nossa Senhora Aparecida, que o jovem desabafou: “Mais uma vez estamos à margem, à beira. Acho que é isso que resume a experiência do ensino remoto para as comunidades indígenas”.
"A GENTE CAMINHA PARA UMA MARGINALIZAÇÃO DOS ESTUDANTES DE PERIFERIA, INDÍGENAS E QUILOMBOLAS."
Otávio Junior da Costa, estudante de Medicina
O que ele diz, com base no que vive, vários estudos já confirmam. Levantamento feito pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em parceria com a Rede de Pesquisa Solidária mostrou que 4,3 milhões de alunos negros, pardos e indígenas da rede pública brasileira ficaram sem atividade escolar em casa no ano passado em função da pandemia. Entre os estudantes brancos, foram 1,5 milhão. Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que 70% dos estudantes da educação básica pública sem acesso à internet são negros e indígenas.
Otávio não culpa ninguém. “A universidade batalhou muito para que nenhum estudante ficasse para trás e ofertou bolsas para custear a internet. Mas estou em uma comunidade rural onde o acesso à internet não é da qualidade necessária para acompanhar as aulas”, diz.
A situação relatada por Otávio é uma realidade mundial. Estudo apresentado em outubro do ano passado mostrou que pelo menos 77 milhões de pessoas que vivem em territórios rurais da América Latina e do Caribe não têm conectividade com padrões mínimos de qualidade. Nos 24 países analisados, 71% da população urbana tem opções de conectividade, enquanto só 37% dos moradores de áreas rurais têm acesso à internet. O levantamento é do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Microsoft.
Um abismo que não para por aí. Na aldeia de Otávio, que fica em Martinho Campos, a 206 km de Belo Horizonte, a energia elétrica também tem sido um problema. Os apagões constantes fazem com que as aulas ao vivo tenham que ser assistidas depois, às vezes de madrugada.
Mas o estudante se ajeita. E segue firme no sonho de ser o primeiro médico formado da aldeia dele. Uma responsabilidade que pesa, mas também motiva. “Sair da aldeia e se inserir em uma universidade é como romper uma bolha. Só que nossos problemas sociais e econômicos vão com a gente. Então, temos que driblar isso e, ao mesmo tempo, ser referência para os jovens da aldeia”, diz.
Ter exemplos ajuda, mas as crianças da aldeia têm enfrentado muitos outros desafios. “A gente sempre viveu em comunidade. Sempre fomos muito próximos dos alunos, e temos disciplinas específicas para vivenciarem e conhecerem o território e nossa cultura. Fazer isso de forma remota é praticamente impossível”, conta a professora Lorena Franciele da Silva.
De fato, nada tem sido igual. Como para o estudante Pedro Henrique Ferreira Faria, 12. “Como ele é grupo de risco, tem deficiência de cálcio e vitamina D, não podemos sair para nada. E ele tem ficado muito desanimado. Passou para o sétimo ano agora, mas não tinha aprendido as matérias do sexto. Tem dias que ele até chora por não estar entendendo as disciplinas”, conta a mãe dele, Janaína Aparecida Ferreira, 37.
Pedro Henrique sofre com a ausência, a solidão e a distância. Mas tem computador, o que permite contato com os professores. Situação diferente da enfrentada por alguns coleguinhas dele, como explica a diretora da Escola Estadual Caxixó Taoca Sérgia, Letícia Helena de Oliveira Ferreira. “A maioria dos alunos só tem um celular antigo e com pouca memória. Alguns moram em outras aldeias e não têm nem sinal de telefone”, diz.
Na aldeia onde fica a escola, tem sinal de internet e telefone, mas só em alguns pontos. “Muitas pessoas precisam ir para locais mais altos para usar os telefones, o que complica a comunicação com os professores. Mandamos mensagem quando estamos em um ponto de acesso à internet, e os pais nos respondem quando estão em um ponto possível para isso”, explica.
Um vácuo na comunicação que pode ser de minutos ou horas e tem feito os professores trabalharem muito mais. “Estou disponível para os alunos o tempo todo agora”, conta a professora de português Katiely Patrícia Ferreira. Com o acesso à internet falho em casa, ela precisa subir na laje do vizinho ou ir ao posto de saúde, onde tem sinal, para trabalhar. “Eu costumo ir rapidinho escondido para os meninos não verem, mas quando eles percebem correm atrás de mim”, conta se referindo aos filhos de 5 e 3 anos. “Quantas vezes fiz videochamada com eles gritando atrás”, diz.
Acesso à escola já era desafio mesmo antes da pandemia
Em fevereiro de 2020, quando o ano letivo começou, a quilombola Graciene Alves Chaves, 17, não conseguiu chegar à escola. A Covid-19 ainda não tinha forçado o fim das aulas presenciais, mas ela tinha outras barreiras para enfrentar: falta de transporte escolar e más condições das estradas por causa das chuvas.
“Ela não chegou nem a conhecer os professores porque não foi à aula nenhum dia”, lamenta a mãe dela, Maria das Graças Alves Chaves, 36. Antes de ela resolver esses problemas, veio a pandemia e fechou tudo. O jeito foi estudar com os Planos de Estudos Tutorados (Pets) que a escola imprimiu e enviou para a casa dela. Ter as explicações dos professores foi o maior desafio. “Nem sempre a internet pega e é muito lenta. O vídeo do Educa a que assistimos no YouTube não abre. Eu não aprendo muita coisa, mas pelo menos estou estudando”, diz Graciene.
Ela não está sozinha nessas dificuldades. “Nas comunidades quilombolas, a educação quase não está acontecendo. A gente já vinha de uma disparidade muito grande por causa da localização das comunidades, que em sua maior parte fica em lugares de difícil acesso. Houve o fechamento de várias escolas rurais, e há uma dificuldade de transporte para os alunos chegarem até a escola. Aí veio a pandemia, e o ensino remoto inviabilizou o estudo”, conta o presidente da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas, Jesus Rosário Araújo.
Queda de luz e internet quase impede estudos
Queda de luz e dificuldade de acesso à internet são alguns dos problemas enfrentados por Dione - Foto: arquivo pessoal
Estudante do último ano de ensino médio integrado com curso técnico em agropecuária, o morador da Comunidade Quilombola Marques, no Vale do Mucuri, Dione Marques de Souza, 22, concilia a lida no campo com os estudos. Até o início da pandemia, tudo ia relativamente bem, já que ele conseguiu alojamento perto da escola, que fica a 45 km da casa dele. Agora, ele precisa contar não só com o esforço dele, mas com a sorte para ter energia elétrica e internet para estudar.
“Aula a distância não é igual à presencial. Na sala de aula, eu aprendia mais e tinha melhor desempenho do que estudando com apostilas. E o pior é que ficamos vários dias sem energia elétrica e internet, aí atrasa todo o estudo”, diz.
Prima de Dione, Maria Eunice vive problemas semelhantes para assistir aulas da faculdade - Foto: arquivo pessoal
A prima dele, Maria Eunice de Souza Franco, 23, moradora do mesmo quilombo, cursa licenciatura em educação do campo em uma universidade pública e passa pelas mesmas dificuldades. “Perco muitas disciplinas por falta de internet. No ano passado, eu perdi várias aulas e tenho medo de isso refletir no meu desempenho no curso”, diz.
Nem todos, no entanto, persistem tanto, como conta a professora de física em uma escola estadual quilombola, Meiriane Rafaela Assunção Guimarães. “Vários alunos que já estavam no ensino médio desistiram. Aí veio o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e boa parte dos meus alunos não fizeram porque não se sentiram preparados para tentar uma vaga na universidade”, diz.
Secretaria vai ofertar aulas de reforços para alunos em dificuldade
A dificuldade de acesso à internet e a falta de mediação nas aulas, sobretudo na educação infantil e em comunidades rurais, são assuntos que têm preocupado a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE-MG). Para tentar minimizar os impactos da pandemia no aprendizado das crianças, a pasta trabalha agora para identificar as dificuldades dos alunos. O objetivo é proporcionar aulas de reforço e recomposição de carga horária para aqueles que não tiverem aprendido o conteúdo.
Segundo a superintendente de Políticas Pedagógicas da secretaria, Esther Augusta Nunes Barbosa, essa análise das condições do aprendizado está sendo feito por meio das avaliações diagnósticas. O processo está em curso e mostra o tamanho do desafio de levar educação para todo um Estado extenso como Minas. Como nem todos os alunos têm internet de boa qualidade, a secretaria terá que identificar quem não conseguiu ser avaliado para enviar as provas impressas.
Muitos desses alunos estão em 20 escolas indígenas que são sedes, quatro anexos (espaços ligados a uma escola sede nas comunidades) e 76 endereços indígenas (estruturas que levam educação aos moradores de áreas remotas). São 20 mil indígenas, de nove etnias, atendidos pela rede. Desafios muito parecidos com os encontrados pelos moradores de comunidades remanescentes de quilombos. São 5.400 estudantes distribuídos em 32 escolas. “Temos uma diversidade gigantesca dentro da rede, mas é importante frisar que temos um programa robusto de fortalecimento dos estudantes”, diz Esther.
“ESTAMOS PREPARANDO AS ESCOLAS COM UM PLANO DE RETORNO ROBUSTO PARA QUE AS DEFASAGENS SEJAM CORRIGIDAS”
Esther Augusta Nunes Barbosa, SES–MG