A tela não ensina
O que a tela não ensina (Desligando o celular – 1ªparte)
No cotidiano conectado das famílias, a tecnologia atravessa a infância e as relações passam a ser mediadas pelo celular
Por Giovanna Xavier dos Reis / Publicado em 4 de agosto de 2025

Lívia chega a registrar quase 12 horas de uso por dia no celular.
Foto: Giovanna Reis/Jornalismo Uniritter
Ao final de uma tarde ensolarada de domingo, dezenas de crianças brincam ao ar livre na Orla do Guaíba. Como alternativa para o uso dos celulares em casa, famílias estimulam os pequenos a se divertirem com os brinquedos do parquinho, a terra e a areia em que pisam e uns com os outros. Ali, distantes da tecnologia e dispostos a viverem a única conexão que realmente importa, eles deixam o papel de “nativos digitais” e voltam a ser apenas crianças.
Entre as corridas, brincadeiras e gargalhadas, Helena Thevenet, de 6 anos, rodopiava no brinquedo amarelo, de um lado para o outro, sem pensar em parar. De repente, é surpreendida por outra menina, pequena assim como ela, que pergunta sem rodeios: “Você quer ser minha amiga?”. Em menos de um minuto, as duas já estão brincando juntas, e assim passam o resto do entardecer.
Nos últimos 10 anos, o percentual de crianças que utilizam a internet entre 6 a 8 anos de idade dobrou de 41% para 82%, de acordo com dados do TIC Kids Online Brasil (2024–2025). Em uma sociedade cada vez mais conectada, o dispositivo que permite esse acesso deixa de ser visto como ferramenta, e passa a ocupar o espaço de meio fundamental para a distração e entretenimento. Se o uso desregulado das telas já tem causado impactos graves na saúde dos adultos, torna-se indiscutível a urgência de medidas que regulem o acesso de crianças a esses dispositivos.
Visando proteger a saúde mental, física e psíquica, foi sancionada em fevereiro deste ano pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 15.110/25. A nova medida proíbe alunos de usarem o aparelho celular e também outros dispositivos eletrônicos em escolas públicas e particulares, dentro e fora de sala de aula, mas será que é o suficiente? No caso de Letícia e Lucas, que são pais de Helena, o smartphone da menina nunca nem foi até a escola, mas, ainda assim, tem presença cativa em sua vida.
Com a rotina agitada, os pais deixam marcado na agenda os dias reservados para a prática de atividades físicas e outros momentos de lazer. De segunda a segunda, preenchem os pequenos espaços vagos e buscam usar o tempo “livre” para algo “útil”. O casal é jovem, tem 35 e 39 anos respectivamente, e já estavam acostumados com esse estilo de vida. Com a chegada da pequena Helena, acabaram se dedicando mais aos esportes e convivência com os amigos, mas agora, o time também conta com uma seleção “sub-10”, com os filhos do grupo.
Em casa, eles dizem que o uso das telas surge principalmente nos momentos de tédio da menina. O tempo que antes era usado exclusivamente para explorar as infâncias e todas as possibilidades que sua casa pode ter — até mesmo em dias de temporal — , hoje é substituído por vídeos curtos rolando infinitamente na televisão do quarto ou da sala.
Mas não se engane, ela adora brincar e conversar com quase todo mundo que se dispõe a ouvir o que ela tem a dizer.
Nativos digitais

Mesmo lado a lado no sofá, Luma e a filha Lívia passam a maior parte do tempo que têm
juntas, cada uma em seu próprio celular. Foto: Giovanna Reis/Jornalismo Uniritter
Helena é criada com muito carinho e cuidado. A mãe a considera super obediente. “Tem as tarefas dela, coisas que faz em casa, guarda os calçados… Quando esvazia as garrafas, é a função dela encher e botar na geladeira.” Mas logo ri e conta depois de um suspiro: “reina, né”, como quem sabe que, apesar das regrinhas, é a pequena quem dita o ritmo da casa em muitas situações.
Muito apegada aos pais, a criança prefere estar por perto mesmo quando cada um parece estar em seu próprio mundo. Depois da função de banho e janta ao voltar da escola, ela se acomoda no sofá com o celular na mão, enquanto os mais velhos assistem a mais um episódio da série que acompanham. Tem TV no quarto, mas ela prefere estar junto. Às vezes, o desejo de ficar próxima vai além e dorme até na cama com a mãe, enquanto o pai acaba indo para o sofá.
No celular, os jogos são seu passatempo preferido, embora também goste de vídeos curtos e desenhos. O aparelho entra em cena como parte da rotina, discreto e quase natural. E se mantém ali, entre o estar junto e o estar só, transformando a promessa de conexão em ausência.
Na casa da Lívia Fraga, de 14 anos, não tem televisão. O entretenimento vem exclusivamente dos celulares, o dela e o da mãe, a Luma, de 35 anos. O dia-a-dia delas também é bem corrido, cheio de atividades que muitas vezes poupam o uso excessivo das telas. Ainda assim, a menina me mostra as quase 12 horas de tempo de uso que teve em um dia da semana anterior a nossa entrevista. Espantada, a mãe comenta “meu Deus, minha filha…”
Não que Luma já não soubesse do uso frequente do aparelho pela filha. Mas, com o cotidiano dividido entre estágio, faculdade, vida social, e um restaurante na Zona Sul de Porto Alegre que ajuda a pagar as contas no fim do mês, ela admite ter perdido a real dimensão das práticas da menina, e o quanto é difícil manter esse controle à distância. As duas passam o dia fora e se falam quase sempre por mensagem. Por isso, dizem que o celular também aproxima.
Lívia diz que não passa tanto tempo no celular. Entre os aplicativos mais usados por ela estão o TikTok, YouTube, Google, WhatsApp, ChatGPT — e, claro, o Instagram, que lidera entre os adolescentes da sua faixa etária, segundo o TIC Kids Online Brasil 2024. Quando pergunto o que a plataforma de inteligência artificial faz ali, ela responde com naturalidade que usa na aula também. “As professoras liberam.”
Segundo o relatório Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2022, cerca de 45% dos estudantes brasileiros afirmaram que ficaram distraídos nas aulas por estar usando celular e outros dispositivos, como tablets e laptops, enquanto outros 40% se distraem com os colegas que os utilizam. A resolução informa que, em países que adotam políticas mais rígidas de restrição, como a proibição total do uso de celulares no ambiente escolar, os níveis de distração diminuem consideravelmente.
A adolescente estuda em uma escola pública no bairro Espírito Santo. Vai para as aulas com os fones no ouvido e, se possível, passa o dia com a trilha sonora ligada. O hábito não é incomum: de acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 86% dos usuários de internet entre 9 e 17 anos relataram ouvir música online e 84% assistem a vídeos com frequência. Lívia diz sorrindo que precisa da música porque senão, “fica muito chato fazer as coisas. A música me dá uma motivação.”

Para 98% dos jovens de 9 a 17 anos, o celular é o principal meio de acesso à internet;
nas classes D e E, é o único meio de acesso para 77% deles.
Fonte: TIC Kids Online Brasil 2024 / CGI.br
Em 2022, 77% dos alunos do Ensino Fundamental e Médio que usam internet afirmaram acessá-la na escola, seja por dispositivos próprios ou oferecidos pela instituição, conforme essa edição do relatório TIC Educação. O número crescia com a idade, pois entre os estudantes de 13 e 14 anos, faixa de Lívia, 82% acessavam a rede dentro da escola. Hoje, mesmo com a recente medida sancionada para restringir o uso de celulares nas escolas, a jovem afirma que o cotidiano revela outra realidade.
A respeito da vivência no ambiente escolar, Lívia confirma a volta dos aparelhos nas aulas e recreios. O que era para ser exceção se tornou prática, hábito aceito entre os colegas e, às vezes, até pelos professores. “No começo foi bem rígido, tipo, não pode, não pode mesmo. Aí depois começou a ser mais leve, porque eu via [os colegas usando], mas fingia que não via… No recreio eu mexo. Mas eu não mexo muito também, porque eu interajo com as pessoas. Eu tenho que interagir, né?”, explica, entre risinhos e pausas que evidenciam nervosismo para falar sobre o assunto.
Os usos para o aparelho celular em sala são variados, como colar em provas, pesquisar, conversar, distrair. A onipresença do celular no ambiente escolar se normalizou e, como aponta o Relatório Global da UNESCO (2023), pode ter efeitos significativos. O uso excessivo e inadequado de tecnologia nas escolas tende a afetar a concentração, dificultar a gestão de sala de aula e reduzir as oportunidades de interação social — elemento essencial no desenvolvimento emocional e social de crianças e adolescentes. Além disso, o documento reforça que o tempo prolongado em frente às telas tem sido associado a impactos na saúde física e mental, como observado também em contextos familiares.
Pelo direito de se conectar
Aos poucos, a própria Lívia começou a notar os resultados da hiperconexão. Conta que se sente menos atenta e mais dispersa quando passa muito tempo no celular. Reconhece, com certa melancolia, que precisa encontrar outros caminhos para ocupar seu tempo.
“Eu quero ser uma pessoa mais responsável. Acho que, se eu não mexer muito no celular, eu vou prestar atenção em outras coisas”, manifesta a menina.
Nos últimos meses, tem pensado em retomar o violão, presente de Natal que havia deixado de lado. Agora, cogita até participar de uma orquestra comunitária ao lado da amiga Júlia. Essa busca por resgatar outras formas de lazer não acontece isoladamente: é incentivada pelo exemplo da mãe que, mesmo com uma rotina puxada, reserva tempo para praticar esportes e trocar ideias com a filha.
É nesse ponto que a presença ativa dos adultos pode fazer diferença. Embora os celulares estejam sempre por perto, o envolvimento dos responsáveis oferece possibilidades mais ricas de convívio e construção de vínculos fora das telas.
Na convivência com os pais, Helena também aprende, sem perceber, o valor das atividades físicas. Cresceu vendo Letícia e Lucas em quadra com os amigos, jogando vôlei, futebol, e outros esportes. Gosta ainda mais quando pode fazer parte do jogo.
Para Viviane Buriol, doutora em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs, muitas vezes, o que mais importa nessas trocas não é o jogo em si, mas a sensação de ser vista. A criança joga, olha para o lado, busca o olhar que valida, que acompanha, que responde. A especialista explica que muitos meninos e meninas só querem isso: ser notados. “Eles fazem um gol, olham para o pai ou a mãe, e ninguém está olhando. Estão todos no celular”, relata usando exemplos que chegam ao seu consultório ou de alunos que ela orienta. A falta de resposta, mesmo silenciosa, comunica desinteresse. E, com o tempo, pode fazer com que a criança acredite que aquilo que ela é ou sente não é relevante o suficiente para ser percebido.
Solidão compartilhada
Quando atravessada pelas telas, a construção da autoestima do sujeito também é impactada. “Nosso ego é inicialmente corporal. A gente constrói a nossa subjetividade a partir dessa sensação de ir integrando o nosso corpo”, explica Viviane, ao reforçar a importância do brincar, do toque, da interação com objetos reais e da escuta ativa desde a primeira infância, ou até mesmo a gestação. Essas trocas são ponto de partida para que a criança construa um senso de si. A especialista explica que quando os adultos estão sempre distraídos, a experiência infantil de pertencer e ser acolhida também se fragiliza.
A criança precisa de presença, da troca de energia, do reconhecimento do outro. Quando esses elementos estão ausentes, a tendência é que os dispositivos assumam o papel de companhia. Em muitos lares, isso começa ainda na introdução alimentar, com o uso de telas como estratégia para manter o bebê entretido. Buriol salienta que, com o tempo, esse recurso passa a ser acionado também para lidar com o tédio, o choro ou a birra. Mas o que está faltando, afinal? Será mesmo só entretenimento? É uma distração de que exatamente?
A resposta, no entanto, pode estar na forma como a relação afetiva tem sido estabelecida. A ausência de disponibilidade atinge diretamente a qualidade do vínculo entre adultos e crianças. Segundo o Guia sobre o uso de dispositivos digitais, do Governo Federal, essas interações são fundamentais para um uso equilibrado da tecnologia. O documento ainda destaca que os hábitos digitais de pais e cuidadores moldam diretamente os padrões infantis: “O uso equilibrado do celular, por crianças e adolescentes, depende, antes de tudo, do uso moderado por parte dos adultos com quem convivem”.
Há, inclusive, consenso na literatura científica de que bebês de até dois anos podem sofrer sérios prejuízos cognitivos, emocionais e de linguagem quando expostos às telas, devendo-se priorizar o brincar, a interação face a face e o contato com livros e músicas. Mesmo após essa idade, atividades que estimulam o movimento e a socialização são mais recomendadas do que a exposição prolongada a telas.
O guia apresenta diretrizes específicas: recomenda-se que crianças com menos de dois anos não sejam expostas a telas, salvo videochamadas acompanhadas por adultos; que antes dos 12 anos não tenham smartphones próprios; e que o acesso a redes sociais respeite a classificação indicativa.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) orienta que crianças com menos de 2 anos não sejam expostas às telas. Entre 2 e 5 anos, o tempo não deve ultrapassar uma hora por dia, preferencialmente com a mediação de um adulto; entre 6 e 10 anos, recomenda-se uma hora a mais; e entre 11 e 17 anos, o limite é de até três horas diárias. Essas diretrizes constam atualmente na Caderneta da Criança, entregue às famílias brasileiras após o nascimento do bebê.
Excesso de uso do celular e seus sintomas
Para a psicóloga Viviane, a onipresença das telas em casa pode impactar diretamente o desenvolvimento emocional dos mais novos. “Mexe muito com um psiquismo que não está preparado para receber tantas informações. Começa a gerar um desconforto, uma ansiedade, uma insegurança.”
Não por acaso, 72% das crianças apresentam sintomas de ansiedade e depressão associados ao uso excessivo de telas, segundo estudo da Universidade Federal de Minas Gerais. A ausência de interações significativas, mesmo quando os adultos estão por perto, deixa lacunas difíceis de preencher. Um levantamento recente do CDC, nos Estados Unidos, mostrou que enquanto 76,9% dos pais acreditam oferecer sempre o apoio emocional de que seus filhos precisam, apenas 27,5% dos adolescentes dizem de fato receber esse suporte. Meninas são as mais atingidas: apenas 52% relataram se sentir sempre ou geralmente apoiadas emocionalmente, contra 64,8% dos meninos.
Lívia diz sentir que conta com o apoio emocional da mãe. Já Luma desabafa que esse apoio talvez nem sempre seja o suficiente. “Eu tento ser bem próxima a ela. Mas, lógico que a gente sempre almeja mais, né? A gente quer mais, quer estar mais presente”. Elas conversam, trocam confidências e se observam. A mãe diz que percebe quando a filha está mais calada, quando se isola no celular, e procura se aproximar. Mas também reconhece os limites do tempo, da energia e da própria vida. “Às vezes, eu acho que ela é meio solitária. Eu vejo que se ela não tá legal, ela fica mais quietinha… Eu tento perguntar, mas tem dias que ela não quer dizer o porquê. Aí fica na dela, vendo os desenhos, as coisas dela.”
Em muitos casos, a distância entre o que é oferecido a crianças e adolescentes e o que eles de fato percebem como atenção acaba se preenchendo no espaço digital. É ali que muitos buscam refúgio, distração ou simplesmente a sensação de pertencimento. Para Indianara Sehaparini, mestre e doutoranda em Psicologia e membro do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o ambiente online se torna uma extensão da vida real. O celular funciona como uma espécie de “anestesia emocional”.
O uso, quando repetido diariamente sem controle de horas ou de conteúdo consumido, pode resultar em dependência. As especialistas entrevistadas alertam para o vício em telas entre crianças cada vez mais novas. A exposição prolongada interfere na autorregulação emocional, no sono e no comportamento, levando a sintomas como irritabilidade, agressividade, isolamento ou apatia, e pode ir além, desencadeando também sintomas físicos associados à ansiedade, como intestino preso ou dificuldade para controlar o xixi.
O celular como fuga
Esse ciclo, no entanto, não afeta apenas os pequenos. A ausência de trocas significativas e a dificuldade em lidar com frustrações também têm atingido os adultos, que muitas vezes recorrem ao mesmo recurso para escapar das pressões do cotidiano. Nesse gesto aparentemente inofensivo, existe também uma tentativa de fuga. Fugimos do cansaço, da sobrecarga, da solidão. Assim como os filhos, os pais também buscam ali um alívio, ainda que momentâneo, para o que não conseguem nomear. Mas se esse tipo de recurso passa a mediar as relações, ele compromete o espaço da afetividade.
Segundo Buriol, o impacto emocional não está apenas na quantidade de tempo diante da tela do celular, mas na forma como ela interfere nos vínculos. “Tudo com essa intermediação de um aparelho eletrônico. A criança sente isso. Bebê sente, ou adolescente, todos sentem. É muito diferente de estar olho a olho, conexão, do que de estar atravessado por uma tela.”
A ausência dessa conexão humana pode dificultar a tolerância à espera, a resiliência diante da frustração e a construção de autonomia emocional. As telas, com seu imediatismo, oferecem recompensas rápidas e constantes. Em contrapartida, o mundo real exige paciência, convivência, negociação, capacidades que se desenvolvem nas pequenas interações do dia a dia.
A intenção aqui não é demonizar o uso do celular. Até porque, considerando o contexto atual, é difícil imaginar alguém crescendo completamente longe das telas. Mas é importante lembrar que existe a possibilidade. Por menor que pareça, ainda é possível e alguns pais escolhem tentar, como ocorre na casa de uma das psicólogas entrevistadas, por exemplo. Viviane conta que os filhos, de 5 e 8 anos, não possuem celulares. Por mais que pareça impossível hoje em dia, ela lembra que não é.
A psicóloga também chama atenção para um fenômeno que acompanha esse cenário: a ecolalia. Muitos pais acreditam que os filhos estão se desenvolvendo por repetirem termos, frases ou expressões que aprendem assistindo vídeos no celular. Mas, segundo ela, essa repetição não é sinal de entendimento — é apenas um reflexo do excesso de exposição. A criança reproduz, mas não elabora, não processa a informação.
Entre os adolescentes, o movimento muda de forma, mas o fundo é o mesmo. Eles podem até parecer mais autônomos, isolados nos próprios quartos, evitando a convivência e fechando as portas, o que é normal para a idade. Mas continuam precisando da troca. “Por mais que eles digam que não querem, por mais que pareça que estão muito envolvidos com alguma atividade, eles precisam da troca. As figuras de referência — pais, mães, cuidadores — são o porto seguro de qualquer criança, qualquer adolescente. Então, sim, eles perceberem que estão sendo vistos faz muita diferença”, explica Indianara Sehaparini.
A profissional conta que é comum, nessa fase, o adolescente buscar espaços de isolamento e manter suas redes sociais com publicações restritas aos pais. Mas isso não significa que não queiram presença.
Aprendi com você
Outras possibilidades para substituir o tempo diante da tela do celular (ou outras telas) envolvem mais do que limitar o uso de dispositivos: é preciso oferecer alternativas significativas de convivência. Ambas as especialistas entrevistadas destacam a importância de criar pontos de interesse em comum entre pais e filhos. Com os pré-adolescentes e adolescentes, esse processo pode acontecer por meio de jogos ou atividades em família, sempre respeitando o espaço e o tempo deles. “Conversar é o melhor de tudo”, afirma Indianara.
Com os menores, esse envolvimento pode começar por algo simples e poderoso: a leitura compartilhada. Além de estimular o desenvolvimento da linguagem, da atenção e da imaginação, ela abre caminho para momentos de troca e proximidade. A partir dela, surgem também experiências lúdicas que despertam a mais importante das habilidades na infância: a criatividade.
Helena gosta muito de correr, pular e jogar, mas também adora desenhar. Em casa, é comum vê-la com canetinhas nas mãos, inventando mundos ao lado dos pais. Ela me conta que gosta de brincar com um patinho de papel que, usando o mesmo material, pode ganhar roupinhas, cenários, acessórios, tudo para o seu “patolino”. A mãe diz que o pai desenha, e Helena logo complementa com animação: “e eu coloro!”. Letícia conta que é o que ela mais gosta de fazer. Até celular o patinho já ganhou. Além dos bichinhos, também já fez a Turma da Mônica usando a técnica de arte.
A brincadeira começou a partir de um vídeo no YouTube, mas ganhou novas camadas com a participação dos dois.
O envolvimento dos adultos, mesmo que em ações simples, tem efeitos concretos na vida dos pequenos. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2024, do Instituto Pró-Livro, 61% dos jovens leitores entre 5 e 10 anos foram influenciados diretamente pela mãe ou responsável do sexo feminino. Entre 11 e 13 anos, essa influência aparece em 54% dos casos; entre 14 e 17, em 39%.
Considerando todas as faixas etárias, quase 30% dos leitores mencionam a mãe como principal referência. Além disso, 55% das crianças entre 5 e 13 anos disseram que gostariam que seus pais, mães ou responsáveis lessem mais para elas.

Levantamento aponta que 53% dos brasileiros não se identificam como leitores.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil — 2024 / Instituto Pró-Livro
E na prática?
Com o crescimento das cidades e a concentração populacional em áreas urbanas que, segundo o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE, abrigam 87,4% da população brasileira, transformações no cotidiano das infâncias passaram a ser observadas em diferentes estudos. O dado também evidencia o que o Relatório Situação Mundial da Infância 2012: Crianças em um mundo urbano, do UNICEF, já anunciava há mais de 10 anos: “A experiência da infância torna-se cada vez mais urbana.”
Em artigo publicado em 2023 na Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, apoiadas em autores como Piaget, Cruz e Sarmento, as pesquisadoras Robertha de Barros e Gicélia da Silva analisam como a vivência nos centros urbanos influencia o vínculo da criança com o espaço. Segundo as especilsitas da Universidade Federal de Sergipe, esse laço de pertencimento se forma a partir de estruturas simbólicas reconhecíveis no ambiente: “comércio, vizinhança, praça, parque e ruas, dentre outras”, descrevem. O reconhecimento cotidiano desses espaços, aliado às interações sociais construídas neles, fortalece a compreensão da criança sobre o lugar onde vive.
Mas, nem todas as crianças conseguem ocupar esse espaço de forma plena. O relatório do UNICEF mencionado anteriormente afirma que “muitas crianças desfrutam das vantagens da vida urbana, como acesso a serviços educacionais, médicos e de recreação. No entanto, é muito grande o número de crianças às quais são negados os direitos a recursos essenciais.”
No estudo sobre Espaços públicos e infâncias urbanas: a construção de uma cidadania contemporânea, publicado por Marina Simone Dias e Bruna Ramos Ferreira, da Universidade Federal do Espírito Santo, as autoras analisam como a modernidade, ao instituir a escola como principal espaço de socialização infantil, também contribuiu para afastar as crianças da vida coletiva na cidade, além de suas causas e consequências. Em citação direta aos sociólogos Manuel Sarmento, Natália Fernandes e Catarina Tomás, elas destacam que “as crianças são vistas como os cidadãos do futuro, mas, no presente, encontram-se afastadas do convívio coletivo, salvo no contexto escolar, e resguardadas pelas famílias da presença plena na vida em sociedade”.
Ainda segundo as pesquisadoras, compreender a infância de forma mais ampla exige o reconhecimento da sua multiplicidade. Em poucas palavras, elas resumem que a “infância é múltipla: produto e produtora de cultura, intérprete do seu contexto histórico e sociocultural.” O Brasil, por exemplo, abriga cerca de 40,1 milhões de crianças e adolescentes, pertencentes a mais de 300 etnias, com vivências profundamente diversas, segundo Carolina Velho, especialista em Educação Infantil do UNICEF Brasil.
De acordo com o webinar Notas Amazônicas — Infâncias nas Amazônias, baseado em dados do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, apenas na região da Amazônia há pelo menos 28 infâncias distintas quando se observa o critério étnico.
Durante a entrevista com a família de Helena, a menina aproveitava o fim do outono em uma tarde nem muito quente, nem muito fria, nos parquinhos e pistas da Orla do Guaíba — espaço público bastante frequentado por famílias, crianças e adolescentes em Porto Alegre. Em um determinado momento da conversa com Letícia, Helena chama a atenção da mãe com insistência, pedindo para ir até uma outra pracinha ali por perto. A mãe me pergunta se eu toparia “dar essa banda” até o parquinho desejado e, ao ouvir que sim, Helena solta um grito extenso de felicidade. Em seguida, dispara quase com um tom de ironia: “Faz bem caminhar” — e arranca nossas risadas pela velocidade do raciocínio.
Segundo o geógrafo Milton Santos, no livro A natureza do espaço (2004), valorizar a experiência da criança com a cidade é essencial para “enriquecer a nossa relação com o mundo”. Essa mesma relação é discutida por Chris Jenks, citado no estudo de Robertha de Barros e Gicélia da Silva, ao entender a criança como “agente e construto social e histórico, que produz sua própria cultura e experimenta cidadania através do espaço público por meio de suas subjetividades e experiências.”
Esse entendimento está no centro da análise feita pelas autoras. No artigo, elas afirmam que “a cidadania infantil pode ser entendida como uma certa emancipação social no espaço público da cidade, no qual a criança é protagonista, embora venha sendo historicamente invisibilizada nos processos de disputas e dominação da cidade.”
Parentalidade, as crianças e o celular
O guia “Crianças, adolescentes e telas”, anteriormente mencionado, também reforça que o direito ao brincar e à desconexão é garantido por lei e essencial para o bem-estar físico, psíquico e social. Mas garantir esse direito, na prática, nem sempre é simples.
A psicóloga Viviane Buriol aponta que, diante das transformações nas estruturas familiares, a rede de apoio tradicional — formada por parentes próximos e comunidades locais — tornou-se mais restrita. Com famílias cada vez menores e rotinas mais sobrecarregadas, a demanda por suporte tem olhado também para o campo profissional. Consultas com pediatras, nutricionistas e outros especialistas da primeira infância passaram a desempenhar um papel fundamental como fonte de orientação.
“A gente precisa capacitar esses profissionais ou entender o que que eles pensam a respeito disso, porque tem sido a fonte de informação para as famílias. E é a esperança de fazer com que as pessoas se deem conta de que realmente [a parentalidade] é difícil, é trabalhoso, mas é necessário.”
Essa sobrecarga, no entanto, não é sentida da mesma forma por todos os cuidadores. Segundo Viviane, a culpa costuma pesar de forma mais intensa sobre as mães, algo que, para ela, está diretamente ligado a construções culturais e questões estruturais. “Ainda é muito forte essa ideia de que a mulher é a responsável. A questão do instinto materno, ainda muito romantizado, como uma coisa que vem com a mulher, e não como de fato é, que é uma questão construída.”
Ela explica que a própria experiência da gestação contribui para o estreitamento precoce do vínculo entre mãe e bebê, intensificando esse sentimento de responsabilidade. “A mulher passa nove meses com uma transformação do corpo, uma transformação hormonal… Coisas que vão mexendo com ela.” Mesmo quando o outro cuidador está presente, muitas vezes ele não consegue acessar completamente essa dimensão emocional vivida pela mulher. “Não tem igual, não tem noção do que está passando com ela, não consegue ter essa dimensão.”
Enquanto isso, os pais tendem a manter um contato maior com o mundo externo, o que, segundo a especialista, pode ajudar no equilíbrio da rotina familiar. “É importante para a mãe que esse pai venha com esse frescor do ambiente externo.” Mas essa diferença de vivência também impacta na forma como cada um lida com a culpa e a responsabilidade da nova vida. A especialista aponta que o homem, por estar menos imerso no cotidiano do bebê, costuma manter uma postura mais prática. “O pai é um pouco mais objetivo, mais prático, talvez. Enfim, são diferenças que a gente não tá dizendo nem que é bom, nem que é ruim, mas tem.”
Durante o acompanhamento psicológico no pré-natal, a profissional destaca a importância de preparar emocionalmente os futuros pais para a chegada do bebê, especialmente por meio do diálogo e da reflexão sobre expectativas e realidade. Ter contato prévio com os desafios da maternidade e da paternidade, ainda que de forma limitada, pode ajudar a trazer previsibilidade e evitar frustrações. No entanto, ela observa que muitos casais, sobretudo as mães, acabam imersos em conteúdos online e manuais de criação que prometem soluções rápidas para problemas não tão simples assim.
“Já veio gente aqui para o consultório dizendo que comprou manual de como fazer dormir, já comprou não sei o quê, nada deu certo, e diz que está aqui porque está desesperada”, relata. Para ela, mais do que técnicas ou métodos, o cuidado exige presença e construção constante: “Não é tarefa. É presença. E construir isso é um trabalho laboroso.”
Luma lembra que, desde pequena, Lívia só pegava no sono com carinho. Até hoje, na hora de dormir, ainda busca esse aconchego. Mas nem sempre é atendida. Às vezes, o celular permanece como centro de atenção da mãe, enquanto a filha adormece ao seu lado.
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Reportagem produzida por estudantes na Unidade Curricular Dual Laboratório de Produtos Jornalísticos do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter), com a orientação dos professores Ana Acker e Roberto Belmonte.
Esta é a primeira de uma série de quatro intitulada “DESLIGANDO O CELULAR”, sobre o cotidiano da comunidade escolar após a proibição dos aparelhos nas escolas e foram realizadas no primeiro semestre de 2025. O Extra Classe e a Uniritter firmaram Termo de Cooperação no início de 2025, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes com acompanhamento final e publicação pela equipe do EC sob responsabilidade do editor executivo César Fraga e da editora-chefe Valéria Ochôa.