A vingança da educação
A vingança da educação
1 de junho de 2025
José Roberto de Castro Neves
No ano de 529, o Imperador Justiniano, possivelmente o homem mais poderoso do mundo naquela época, proibiu, de seu suntuoso palácio em Constantinopla, o ensino de filosofia em Atenas.
Por meio de um édito, fechou a escola de filosofia criada por Platão séculos antes, em 387 antes da era cristã. O resultado foi a fuga dos cultos professores para o oriente, carregando consigo séculos de ensinamentos.
Para muitos historiadores, este término do estudo da filosofia marca definitivamente o início da Idade Média, que, conquanto tenha sua beleza, se destaca mais pelas guerras incessantes, pelo fanatismo e pelos preconceitos que impediam o desenvolvimento artístico, intelectual e científico, além da perda do legado da antiguidade clássica. A civilização andou para trás.
Muitos séculos depois, em 1496, o rei português Dom Manuel I, assina um Decreto expulsando os judeus de seu reino – mais especificamente, concedia um prazo para que se convertessem ao cristianismo, caso não optassem pelo desterro.
Havia uma comunidade atuante de israelitas vivendo principalmente em Lisboa. Muitos deles eram professores e intelectuais. Até o sucesso da navegação daquele país se deu em grande parte pelos conhecimentos de cartografia e astronomia de judeus como Abraão Zacuto, que desenvolveram ferramentas fundamentais às explorações ultramarinas (ainda há o caso de outro israelita, Gaspar da Gama, que seguiu com Vasco da Gama para a expedição comercial nas Índias, servindo como principal intérprete para os portugueses).
Em função da ordem, milhares de judeus deixaram Portugal. Alguns vieram para o Brasil, estabelecendo-se no Recife, onde fundaram a primeira sinagoga das Américas.
Foram também para Nova York, na época ainda chamada de Nova Amsterdã. Outros, como a família de Baruch Spinoza, se deslocaram para a Holanda. Espinosa, considerado por muitos o filósofo inaugural da modernidade, tinha português como sua primeira língua (era chamado de Bento em casa pelo pai, natural do Alentejo, e pela madrasta nascida em Lisboa). Espinoza apenas não nasceu em Portugal por conta da intolerância. Banidos, os judeus levaram com eles seus conhecimentos e sua rica cultura.
Adiante, em 1934, com os nazistas no poder na Alemanha, Hitler nomeou um fanático, Bernard Rust, como Ministro da Ciência, Cultura e Educação do Reich. Esse mesmo Bernard Rust fora antes dispensado do cargo de diretor de uma pequena escola interiorana por conta de seus problemas mentais.
Em 1937, sobreveio uma lei que determinava a todos os professores o dever de defender ideias nazistas, além de os obrigar a jurar a mais estrita fidelidade ao líder do partido. Ademais, os postos públicos ficaram limitados às pessoas de origem ariana. Até então, judeus ocupavam pelo menos um quarto dos cargos em universidades públicas.
O resultado foi a fuga da inteligência, que deixou a Alemanha principalmente para os Estados Unidos. Os mais talentosos cientistas, entre eles Albert Einstein, além de grandes pensadores, como Hannah Arendt, deixaram seu país natal por da perseguição. Alguns desses exilados foram os responsáveis pelo desenvolvimento da bomba atômica, como os cientistas Leo Szilard e Enrico Fermi (este, embora não fosse judeu, era casado com uma judia, e por conta disso não teve escolha senão escapar da Europa).
Até 1932, a Alemanha havia ganho 33 dos 100 prêmios Nobel de ciência. Nas três décadas seguintes após o domínio nazista, o número de prémios caiu para oito. Eis o saldo da intolerância.
A história está repleta de exemplos que deixam claro: a educação se vinga de quem a despreza. Infelizmente, essa lição segue desconsiderada por muitos líderes políticos.
Os Estados Unidos garantiram sua hegemonia, acima de tudo, pelo estímulo às instituições de ensino. Ao contrário do ocorrido no Brasil, que, quando de sua independência, não tinha uma só universidade, os norte-americanos, ao se separarem da Inglaterra, contavam com diversas universidades que instruíam a população local.
Harvard, Yale, Columbia, Princeton, entre outras, educaram gerações, e inclusive forjaram aquela que lutou pela liberdade contra o colonizador. Pode-se dizer que essa diferença quantitativa e qualitativa de centros de estudo dos Estados dos Estados Unidos explica a força dessa nação.
Para que a educação prospere, ela precisa de independência. Trata-se da liberdade de cátedra: oxigênio do desenvolvimento. No ambiente universitário, as ideias precisam fluir. É fundamental garantir espaço para o debate, a troca de opiniões. Ao ouvir outros pontos de vista, abre-se a porta para dois resultados: ou mudamos nossa perspectiva ou reforçamos nossas crenças. Em ambas as soluções, saímos ganhando. Afinal, a fé, para que se fortaleça, precisa ser testada (como explicou Miguel de Unamuno: “Fé sem dúvida é fé morta”).
De outro lado, impedir a divulgação de ideias simplesmente porque não concordamos com elas serve apenas para atrofiar uma sociedade e condená-la ao obscurantismo.
A queda de braço da Casa Branca com os grandes centros de ensino daquele país, buscando censurar a liberdade no ambiente universitário, traz a lembrança dos eventos históricos mencionados aqui – nenhum deles com um desfecho positivo no tempo.
É possível antever, a partir das restrições impostas às universidades, a migração de mentes brilhantes dos Estados Unidos para outros países onde possam atuar livremente.
De pronto, temos que convir: o Brasil não será o destino da maior parte desses exilados. Afinal, temos centros de estudo capazes de atrair os grandes talentos?
Qual o cuidado da nossa sociedade com a educação? Como é o acesso das crianças ao estudo Brasil afora? Como andam os colégios públicos? Qual a qualidade das universidades públicas?
Vivemos num país de enorme injustiça social, mas a verdadeira solução não está no assistencialismo ou nas medidas paliativas cujos efeitos se sentem apenas até as próximas eleições. O caminho para escapar da miséria se dá pela educação, que cria oportunidades e empodera as pessoas. Quem despreza essa verdade encontra na história a resposta de escuridão e retrocesso.
José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados e membro da Academia Brasileira de Letras.
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