Aborto legal: um direito negado
Aborto legal: um direito negado às meninas vítimas de violência no Brasil
Dados mais recentes reforçam a urgência da proteção legal

(Foto: Marcello Jr/Arquivo da Agência Brasil)
Em um momento crucial para os direitos de crianças e adolescentes no Brasil, a Câmara dos Deputados analisa o PDL 5/2025, de autoria dos deputados Chris Tonietto (PL/RJ), Pr. Marco Feliciano (PL/SP) e outros, que busca sustar os efeitos da Resolução nº 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Essa proposição representa um grave retrocesso na proteção de meninas vítimas de violência sexual, ao tentar inviabilizar o acesso a um direito já consolidado há mais de oito décadas em nossa legislação.
O Código Penal brasileiro, desde 1940, assegura o aborto em casos de estupro, não por uma questão ideológica, mas como reconhecimento de que a gestação forçada perpetua o trauma da violência. Obrigar uma criança a carregar o fruto de um crime hediondo constitui uma segunda violação de sua dignidade, autonomia e futuro. No entanto, a Resolução do Conanda, agora sob ameaça, busca justamente superar os obstáculos que transformam esse direito teórico em uma via-crúcis na vida real.
Longe de "criar novos tipos penais" como alegam os autores do PDL, a resolução busca garantir que vítimas de estupro, frequentemente meninas abusadas dentro de suas próprias casas, não sejam revitimizadas por barreiras burocráticas, objeções de consciência institucionalizadas ou julgamentos morais. A norma assegura que o procedimento possa ser realizado sem a exigência de boletim de ocorrência ou autorização judicial precisamente porque reconhece que muitas vítimas temem represálias ou não conseguem enfrentar novos trâmites legais após o trauma sofrido.
Os dados mais recentes reforçam a urgência dessa proteção. O Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou que cerca de 20 mil meninas entre 10 e 14 anos vivem em uniões conjugais no Brasil, além de aproximadamente 477 mil adolescentes entre 15 e 17 anos nessa condição. Essas uniões, muitas vezes legalizadas ou socialmente aceitas, são frequentemente a formalização de relações desiguais e abusivas, uma manifestação concreta da violência sexual naturalizada. Além disso, mais de 60% dos casos de violência sexual registrados no país têm como vítimas crianças e adolescentes, e em 7 a cada 10 casos o agressor é alguém conhecido da vítima, frequentemente dentro de sua própria casa.¹ ²
A gravidez resultante de violência sexual não é uma escolha, é a consequência de um crime. Forçar a maternidade nessas circunstâncias significa condenar meninas a um ciclo de pobreza, dependência e sofrimento, interrompendo seus projetos de vida e agravando suas vulnerabilidades. A Resolução 258 representa um avanço civilizatório ao priorizar a proteção integral dessas jovens, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
É urgente que o Estado brasileiro garanta, de forma efetiva e uniforme, o acesso ao aborto legal para todas as vítimas de estupro. A sociedade não pode ser conivente com tentativas de transformar lei em letra morta para quem mais precisa de proteção. Defender o direito ao aborto nestas circunstâncias específicas é defender a vida, a saúde e o futuro de milhares de meninas brasileiras.
*Talitha Fonseca é jornalista e advogada especialista em Direito Público, com mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela UFSCar, onde pesquisou regulação de redes sociais. Atua na defesa de direitos humanos, elaboração de políticas públicas e já colaborou com tribunais e legislativos em diferentes níveis. É conselheira voluntária na ALESP e integra movimentos sociais nacionais voltados à proteção e promoção de direitos
¹ IBGE. Censo Demográfico 2022 – Nupcialidade e família. Tabelas sobre união conjugal na adolescência. Divulgado em 2023-2024.
² Ministério da Saúde / Sinan. Notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes. Último consolidado nacional divulgado em 2023.
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