Rosângela Wolff Moro, advogada e esposa do ex-ministro bolsonarista Sergio Moro, vende "um olhar privilegiado sobre a história de um dos personagens mais importantes do Brasil" em "Os dias mais intensos", um livrinho de meras 142 páginas que chegou antes ao Kindle que às livrarias.
Só que não.
Como realização literária, é um previsível fiasco. Rosângela escreve como uma adolescente, seja na forma ou na visão maniqueísta de mundo que suas memórias mais confirmam que revelam. Mas a impressão que a leitura deixa é que isso não se deve apenas à falta de traquejo da autora.
Ao contrário, "Os dias mais intensos" cumpre com louvor o que parece seu propósito: mitificar Sergio Moro como homem incorruptível e bem intencionado, que abraçou o bolsonarismo por uma sensação de dever patriótico e sem saber direito quem era seu chefe, o pior sujeito que a política brasileira já produziu e, já na época, bastante conhecido por qualquer pessoa que não vivesse em Marte.
Não é de hoje que, na versão tupiniquim dos Underwood (o casal de políticos inescrupulosos do seriado “House of cards”), Rosângela cuida das tarefas da comunicação. Sergio, ainda juiz, sabia da importância de conquistar a opinião pública para o sucesso do seu empreendimento – tanto que escreveu artigos saudando a habilidade que a operação Mãos Limpas teve na Itália para dominar a narrativa política. Desde que a Lava Jato mal começara, Rosângela estava ajudando no projeto: criou uma página no Facebook em que trocadilhava o verbo morar com o sobrenome do casal: Eu Moro com ele. O livro deve ser lido como a sequência dessa esparrela.
"Ele [Moro] já havia tido algumas decepções que o impediram de alcançar melhores resultados para a sociedade, mas seguira em frente, tendo em vista que a sua missão era servir ao país", escreve Rosângela logo no início do texto. "Deixar o governo cabia exclusivamente ao meu marido, mas confesso: vê-lo abrir mão do cargo para não ceder a suas convicções só fez aumentar ainda mais a minha admiração por ele".
Há superlativos em profusão (e algumas dubiedades acidentais) quando Rosângela se refere ao marido e político: "a transparência [é] marca registrada de Sergio", "Essa é a razão de eu ter afirmado, em minhas redes sociais, que não poderia esperar outra atitude ética dele [quando da demissão do governo]", "Moro não brinca em serviço e não poupa ninguém no que diz respeito ao alcance da lei", "a Lava Jato foi a maior operação já vista na história do Brasil e tirou a sujeira toda de debaixo do tapete".
Acredita só quem quer, claro. As reportagens da #VazaJato estão aí para lembrar que Moro não quis melindrar FHC, atitude algo imprópria a alguém que pretenda “não poupar ninguém”. Também sabemos que o então ministro deixou o miliciano Adriano da Nóbrega de fora da lista dos criminosos mais procurados do país – dias depois, ele seria morto pela polícia na Bahia, levando consigo segredos da relação da família Bolsonaro com a milícia.
Em dado momento, a ânsia de Rosângela em limpar a barra do marido é tamanha que a faz cometer um saboroso ato falho – que passou despercebido pelos revisores do livro. É justamente quando ela comenta as mensagens de Telegram publicadas pelo Intercept e veículos parceiros.
"Por algum motivo, atribuíram a Moro e a Deltan mensagens trocadas por aplicativo que nunca tiveram seu conteúdo periciado e atestado como verdadeiro. Afirmam que, em algum procedimento, Moro foi suspeito de ser imparcial", embanana-se Rosângela. Doutora, ele foi suspeito de ser “parcial”, mas obrigado por duvidar da imparcialidade de Sergio, ainda que por um lapso.
(Detalhe: ela mente ao dizer que as mensagens não foram periciadas. Não faz muito tempo que o procurador Diogo Castor de Mattos, ex-Lava Jato, pediu e obteve acesso às mensagens guardadas sob custódia da Justiça Federal para usá-las em um processo judicial. A perícia da Polícia Federal confirmou a Castor que as mensagens foram retiradas do telefone dele.)
Censurada pelo marido
A certa altura da narrativa, Rosângela confessa ter sido pressionada por Moro a apagar uma postagem em rede social em que defendia o ministro Luiz Henrique Mandetta – que, àquela altura, já nadava no óleo fervente da frigideira do Palácio do Planalto.
"A minha publicação em rede social foi feita como cidadã, como brasileira, como contribuinte e como eleitora. No entanto, sendo casada com o então ministro da Justiça e Segurança Pública, a minha mensagem não passou despercebida. Esse é o ônus de ser casada com uma figura pública. Você não pode se manifestar, pois perde esse direito", diz, revelando plena consciência de que suas palavras são indivisíveis das do marido.
É nesse trecho do livro, justamente, que Rosângela parece escrever com um pouco mais de sinceridade e profundidade. No restante da obra, os temas vêm e vão em frases telegráficas e parágrafos que pouco revelam e nunca surpreendem.
"Desde a época da Lava Jato, eu já tinha perdido esse direito porque atribuem a minha fala a Moro, o que é totalmente descabido, porque meu marido fala por si mesmo. No entanto, sou apenas uma 'cônje', como tratado na entrevista de Pedro Bial", lamenta-se.
Apesar disso, Rosângela parece à vontade no papel de coadjuvante do marido, como revelam frases que volta e meia aparecem no texto. "Decidi largar meu início de carreira por amor". "Eu buscava a independência, mas a vida me apresentou o Moro e tive que fazer uma escolha". "Outra ocasião em que estive com Michelle [Bolsonaro] foi quando fui com meu marido visitar o presidente, que se restabelecia de uma cirurgia em um hospital em São Paulo. Enquanto os meninos tratavam dos assuntos da pátria, nós conversávamos sobre dia a dia, filhos e rotina".
O abraço em Bolsonaro
Em 2 de outubro passado, Sergio Moro foi ao Twitter para espinafrar a indicação de Kassio Nunes Marques ao Supremo Tribunal Federal. "Simples assim, se o PR @jairbolsonaro não indicar alguém ao STF comprometido com o combate à corrupção ou com a execução da condenação criminal em segunda instância, todos já saberão a sua verdadeira natureza (muitos já sabem)", escreveu, em seu português único.
Moro apagou o post, mas não sem antes ser questionado por um tuiteiro se não sabia quem era Jair Bolsonaro antes de aceitar o cargo de ministro. "Não", ele respondeu, seco. Se ele não sabia, Rosângela sabia e deixa isso claro no livro ao tratar da viagem de Sergio a Davos, em 2019, quando Bolsonaro fez o célebre discurso de meros seis minutos que embasbacou o mundo.
"É certo que suas declarações pretéritas [as de Bolsonaro], ainda como deputado ou candidato, não haviam repercutido bem no exterior", ela escreve. Rosângela alivia para o presidente – as atrocidades dele causaram espanto inclusive no Brasil. É difícil acreditar que ela e Sergio não conversaram sobre as declarações e a biografia de Bolsonaro, sobretudo após o convite ao então juiz.
Mas mesmo Rosângela tenta fingir que foi enganada – ou, para ser preciso, parece tentar enganar o (e)leitor. "A promessa de um governo compartilhado com técnicos e especialistas nas áreas viscerais do governo federal, para o bem do país, era um projeto que me agradava", afirma Rosângela, tentando justificar porque se deixou seduzir pelo bolsonarismo.
Em entrevista sobre o livro, ela dobra a aposta na própria candura. "Bolsonaro montou um time de peso [no ministério], com pessoas realmente técnicas em cada uma das pastas". Vamos relembrar nomes técnicos nomes do primeiro ministério de Bolsonaro para ver se essa frase faz sentido: Ernesto Araújo, Ricardo Salles, Damares Alves, o olavista Vélez Rodrigues, Osmar Terra, Marcelo Álvaro Antônio e Onyx Lorenzoni – este, aliás, já conhecido pela força-tarefa da Lava Jato de Moro. No Telegram, Deltan Dallagnol confessou que sabia que Onyx estava envolvido com corrupção, mas nada fez. Pois é.
Falando de Mandetta, Rosângela registrou para a posteridade outra pérola: "Eu acompanhava quase que diariamente a coletiva do Ministério da Saúde e agradecia a Deus por termos um ministro da Saúde que, além de conhecer o nosso SUS, era médico. Sabemos que no Brasil nem sempre foi assim".
Não sei bem em qual Brasil vive a doutora, mas nos 21 anos que englobam os governos de FHC, Lula e Dilma Rousseff, 12 pessoas comandaram a Saúde. Só três delas não eram médicos. Ademais, quem conhece Mandetta sabe que ele não é um entusiasta do "nosso SUS". Há anos que ele se dedica à política e ao lobby de médicos, planos privados de saúde e ruralistas – desde 2001, para ser preciso, quando se tornou presidente da Unimed do Mato Grosso do Sul. Nos dois mandatos como deputado federal, de 2011 a 19, foi feroz adversário do Mais Médicos, que cuidou de implodir como ministro.
Nem acho que a doutora Rosângela – mulher formada numa boa faculdade, com dinheiro para se informar bem – não saiba disso tudo. Ela só acha que vai passar incólume com a propaganda política travestida de conto de fadas que mandou às livrarias.
Rosângela Moro acha que somos todos idiotas.
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