Agenda ultraliberal sufoca o Estado
A agenda ultraliberal sufoca o Estado e faz mal à saúde e à educação
A apropriação do orçamento público e a mercantilização de direitos em setores vitais impõem ao país uma agenda econômica conservadora que desfigurou o sistema brasileiro
Por Elstor Hanzen / Publicado em 6 de junho de 2024
Desde 2015, a pauta neoliberal avançou no Congresso Nacional, com a aprovação de um conjunto de decretos, leis ordinárias e complementares e emendas à Constituição que suprimem direitos, cortam investimentos, atacam políticas públicas e precarizam o trabalho e a formação. Banalizam a cidadania. É como se toda a lógica de uma sociedade pudesse ser ditada unicamente pelas regras do mercado financeiro
Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta a atual fase como “um novo ciclo histórico desafiador”, nunca experimentado desde 1988.
O que os pesquisadores chamam de “convergência de limitações” deverá se aprofundar ainda mais nos próximos anos, gerando uma severa fragmentação no pacto federativo, com consequências negativas relacionadas com a busca de consensos sobre crescimento econômico, continuidade de políticas sociais e estratégias de redução de desigualdades.
No Rio Grande do Sul, estado governado por Eduardo Leite (PSDB), o total de recursos destinados à educação sequer atingiu a média de reposição da inflação de 2016 a 2020. O IPCA do período foi de 23,76%, e a média dos investimentos com a educação, nesses cinco anos, não chega a 10%.
No Brasil, os agentes econômicos vêm atacando a Constituição Federal (CF) e normas reguladoras para fazer valer seus interesses financeiros, em detrimento de direitos sociais.
E o caminho tem sido o Legislativo. Entre 2015 e 2022, nada menos que 2.670 decretos, 1.250 leis ordinárias, 45 leis complementares (LCs) e 35 emendas constitucionais (ECs) foram aprovados no Congresso e implementados pelo Executivo.
A maioria dessas normas gerou algum tipo de impacto, maior ou menor, na configuração e no funcionamento do país, destaca o estudo do Ipea.
Entre as emendas à Constituição, a medida que mais feriu direitos foi a do Teto de Gastos (nº 95/2016), a qual reduziu a capacidade de custeios e investimentos do governo federal, refletindo na precarização dos serviços de saúde e de educação.
Já as normas fixadas pela EC 109/2021, por exemplo, fortalecem as restrições orçamentárias impostas institucionalmente à União.
Na saúde, segundo o professor do Departamento de Medicina Social da Ufrgs e especialista em saúde pública, Roger dos Santos Rosa, há estimativas que apontam para perdas na ordem de R$ 37 bilhões no financiamento federal das ações e serviços públicos de saúde no período 2018 a 2022, em relação à regra anterior (EC nº 86/2015).
Com menos recursos e demandas crescentes por saúde, a judicialização das questões de saúde pode dobrar em quatro anos.
Conforme o promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) e coordenador do Centro de Apoio Operacional de Proteção do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, Cível, Família e Sucessões, Tiago Conceição, com base em dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2020 foram distribuídas 355 mil ações individuais relacionadas à saúde. Até final de 2024, estima-se que o ingresso seja de 685 mil ações. “Percebe-se, por amostragem, que o problema mais comum é a precarização do serviço de saúde”, constata o promotor.
Para o doutor em Ciência Política, pesquisador e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Ufrgs, Hemerson Luiz Pase, essas iniciativas também são calcadas na ideologia da vitória individual, na interpretação literal da Bíblia e na ideologia da prosperidade, que insiste em uma narrativa na qual o Estado aparece como um limitador da liberdade, representada pelo mérito.
“Ou seja, o ideal do deus mercado acima de tudo é bom só para quem tem muito dinheiro”, aponta Pase.
Inflexão ultraliberal e crise
Entre as origens do problema, estão as mudanças nas normas legais, promovidas por interesses econômicos a partir da crise de 2015, o que os pesquisadores do Ipea Aristides Monteiro Neto e Danilo Vieira analisaram no relatório “Inflexão ultraliberal e crise federativa no Brasil: (re)configurações da dinâmica federativa no período 2015-2022”, publicado em 2023.
Monteiro, que é doutor em Economia pela Unicamp e também diretor de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Ipea, explica que, no período imediato pós-constituinte, o princípio federativo da CF/88 visava ao fortalecimento dos governos municipais.
“Era a estratégia correta a ser conduzida para a implementação de políticas públicas, pois viria a se afastar do nível federal de governo, ainda muito atrelado ao autoritarismo do regime militar”, avalia.
Contudo, no início da implementação do Plano Real, em 1995, entendeu-se que o governo federal precisaria reunir as condições políticas e fiscais para levar adiante a agenda de universalização da educação e da saúde. Seria necessário, portanto, concentrar parte dos recursos de arrecadação no governo federal para garantir o financiamento das políticas.
Foi criado o mecanismo da Desvinculação de Recursos da União para reter recursos que seriam transferidos por força constitucional para estados e municípios, a fim de financiar as políticas. Monteiro ressalta que entre 2003 e 2014, nos governos petistas, houve uma tentativa de reverter ou minimizar a pressão que as medidas macroeconômicas impunham ao país.
Mudança na política econômica em geral e tentativas de aumentar o investimento público para ativar o crescimento econômico foram realizadas com o PAC e a utilização de empresas estatais – principalmente Petrobras – para reativar a economia.
Com a crise política que levou à recessão e à alteração nos rumos da política econômica, a partir de 2015, muita coisa mudou no país. O investimento federal, por exemplo, caiu da média de R$ 70 bilhões entre 2009 e 2011 para R$ 45 bilhões entre 2019 e 2021, de acordo com o estudo do Ipea.
“Esse cenário é de total impossibilidade de solução dos problemas da pobreza e das desigualdades no país. A capacidade federal para realizar política de crescimento está muito mais limitada do que 15 anos atrás. A arrecadação também tende a se expandir muito lentamente”, contextualiza o diretor do Ipea.
Para o economista, “não é por acaso que, mesmo em situação de crise econômica prolongada entre 2015 e 2021, o sistema financeiro é o setor de atividade que, de maneira consistente, apresenta lucros exorbitantes. Por outro lado, os demais setores produtivos amargam prejuízo”.
Além disso, o enfraquecimento do Estado tem levado a ataques às formas políticas de democracia. “Estamos vendo o perigoso florescer de fundamentalismos religiosos, fascismos políticos e ideias ultraliberais que atentam contra a coesão social, o federalismo e a vida em comum”, alerta Monteiro.
Saúde em xeque
Os efeitos negativos da EC 95 são a redução de gastos na saúde e na educação em todo o país. “O principal efeito é o desfinanciamento e a transformação desses direitos em mercadorias”, pontua Pase. Segundo o cientista político, “o capitalismo é agressivo e quer transformar tudo em sua imagem e semelhança”.
O professor de Medicina da Ufrgs Roger Rosa lembra que o SUS já enfrentava desafios financeiros e o “teto” agravou a situação. “Com menos recursos, o acesso à saúde se torna mais desigual, afetando principalmente os mais vulneráveis”, destaca. Ainda conforme o especialista em saúde pública, existem dificuldades de investimentos em infraestrutura, equipamentos, pessoal e programas de prevenção de doenças e promoção de saúde.
Devido à desigualdade na arrecadação, já há municípios gastando 40% ou mais do orçamento nesta área. “Isso pode levar à redução de Unidades Básicas de Saúde e de leitos hospitalares com impacto no acesso à saúde e no agravamento de desigualdades sociais. Os cortes nos investimentos em saúde pública, incluindo infraestrutura, pessoal e programas de prevenção, podem conduzir a uma deterioração geral”, alerta Roger.
Conforme a Secretaria da Fazenda do RS, o estado destinou R$ 4,4 milhões em 2016 à área. Em 2020, primeiro ano da pandemia, o valor chegou a R$ 6 milhões, o aumento equivale a quase 37%, ante uma correção da inflação, que no período foi de 23,76%.
Educação para a Bolsa de Valores
O artigo 205 da CF/88 garante que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao seu preparo para o exercício da cidadania e à sua qualificação para o trabalho. Na prática, no entanto, a lógica privatista captura esses sentidos. Para a especialista em Educação e doutoranda na Ufrgs Ângela Chagas, a reforma do ensino médio representa o ideário neoliberal de restringir o gasto público e de disciplinar os estudantes para um mercado de trabalho precarizado.
“Os conhecimentos científicos e humanísticos das disciplinas escolares, não por acaso, cederam espaço para uma concepção de projeto de vida e de empreendedorismo, em que os sujeitos são responsabilizados individualmente pelos seus fracassos, tendo aulas de brigadeiro gourmet”, compara. A reforma do ensino médio foi apresentada por Michel Temer após 22 dias no poder.
Dados preocupantes sobre ensino privado e o ensino a distância (EaD) são evidenciados pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU Ciência), vinculado à Unifesp, Carlos Eduardo Bielschowsky.
O pesquisador aponta que, atualmente, 74% dos estudantes de cursos superiores estão em um dos dez grandes grupos privados de ensino no Brasil –, os quais incluem a Kroton-Anhanguera, Unopar, Pitágoras, Estácio, Unip, Laureate, Cruzeiro do Sul Educacional e Ser Educacional –, a maioria ainda na modalidade EaD. Para efeito de comparação, nos EUA e em Portugal, esse percentual é de 26% e 18%, respectivamente.
No último Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), 58% dos alunos em EaD ficaram com conceito insuficiente, contra 36% das demais (presenciais) e 14% das públicas.
Para Bielschowsky, a estratégia desses grupos é ofertar ensino de baixa qualidade e obter o máximo de lucros. “Há uma precarização da formação, segundo a lógica da Bolsa de Valores. Nossa trajetória como sociedade e formação humana não pode ser traçada pela lógica do mercado financeiro”, avisa.
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