Agronegócio contribui pouco para o país
Os números mostram: agronegócio recebe muitos recursos e contribui pouco para o país
Análise de geógrafos desmistifica a versão de que o agro é a maior força econômica brasileira
“Essa é a história do Reino de Agrus. Conta uma lenda que há muitas décadas existia um reino chamado Agrus. Era um lugar com muitas riquezas naturais e que de tão extenso, não dava para ver onde começava e nem onde terminava. O povo do reino de Agrus vivia da agricultura e da pecuária, que eram as mais prósperas de todo o mundo.”
Assim começa o primeiro episódio do desenho animado “O Reino de Agrus”, que conta a lenda de um povo que tinha a agricultura e a pecuária como suas principais formas de sobrevivência. “É um poderoso recurso para ensinar as crianças e os jovens sobre a importância que o agronegócio tem em nossas vidas. Ao mesmo tempo em que é uma forma de destacar e valorizar o trabalho no campo, especialmente o dos pequenos e médios produtores”, diz a apresentação sobre o desenho animado. A animação faz parte da campanha “Todos a uma só voz”, projeto de marketing do agronegócio nos meios de comunicação e com foco em crianças e adolescentes .
A iniciativa é uma das muitas que tentam vender a ideia de que o agronegócio nacional é o salvador da economia brasileira.
Versão falsa
No artigo “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo”, realizado pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) com apoio da fundação Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil e recém publicado, os geógrafos Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb desmascaram a versão de que agronegócio é a maior força econômica do Brasil.
“O Agro usa diversas estratégias para construir o consenso na sociedade brasileira de que é o setor mais dinâmico, moderno e importante da economia brasileira. No entanto, uma análise detalhada dos números do agro revela outra realidade. A de um setor que recebe muito e contribui pouco com o país”, afirmam Mitidiero Junior, que é professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege), e Goldfarb, pesquisadora e vice-presidente da Abra.
Para avaliar o papel do agronegócio na economia do país, os geógrafos analisaram a participação do setor na balança comercial brasileira, no Produto Interno Bruto (PIB), na distribuição e no recebimento de créditos/financiamento, no ordenamento tributário, na produção de dívidas, na geração de postos de trabalho e renda; na relação com os impactos ambientais e no suprimento da demanda de alimentos.
“A análise da balança de pagamentos e dos créditos recebidos pelo setor somados aos incentivos fiscais, como é o caso da Lei Kandir, à baixa arrecadação, como no caso do ITR, e à constante renegociação e perdão das dívidas do setor mostra um país atado a uma economia reprimarizada, de uso intensivo de recursos naturais e profundamente dependente”, analisam os autores.
Domínio da matéria-prima bruta
Em 2019, na balança comercial brasileira, o total das exportações foi de 225 bilhões de dólares, superando o total de importações que chegou a 177 bilhões de dólares. Ou seja, houve um saldo positivo de 48 bilhões de dólares. As exportações estão dominadas pela agropecuária e pela indústria extrativa, pela venda de matérias-primas, enquanto nas importações o domínio marcante está nas compras da indústria de transformação, que correspondem aos produtos manufaturados.
E a venda de algumas matérias-primas marcam as exportações brasileiras: a soja (11,57% do valor total das exportações), o petróleo (10,74%), o minério de ferro (8,98%) e o milho (3,20%) são os quatro principais produtos exportados. O café em grão não torrado (2,03%) também se destaca, posicionando-se como o oitavo nas vendas ao exterior.
A análise aponta para o fato de que a pauta exportadora é dominada pela venda de matérias-primas brutas, sem nenhuma elaboração, com participação tímida dos produtos semielaborados e a pífia importância da venda de produtos de alta elaboração. A soja participa com 11,57%, ao passo que o principal produto da indústria de transformação, que exige alta elaboração, são as plataformas de perfuração, com 1,24% das exportações, praticamente dez vezes menos.
Já ao se olhar para as importações, há o predomínio dos produtos de média e alta elaboração.
A partir da análise de determinados dados comerciais, explicam Goldfarb e Mitidiero Junior, a conclusão é que o agronegócio é o salvador da economia nacional. “Seu sucesso estaria expresso nesses números da balança comercial e indicaria que esse é o único caminho de desenvolvimento da economia brasileira. Investir no agro seria a salvação da lavoura”, afirmam os geógrafos. Porém, questionam: “Qual país rico e avançado alcançou esse status produzindo e exportando matéria-prima? Nenhum dos chamados países ricos desenvolveu sua economia sem investimentos pesados no setor industrial e de serviços, acompanhado por investimentos mais pesados ainda em educação, ciência e tecnologia, posicionando-se, a partir dessa estratégia, na divisão internacional do trabalho, da produção e do comércio”.
O gráfico apresenta o saldo da balança comercial do agronegócio e do agregado de outros setores da economia (indústria e serviços).
Como a análise explica, a forma de exposição dos dados permite a visualização mais concreta, segundo a visão do agro, de que sem a agropecuária a economia brasileira teria ido à falência. Entre 2010 e 2020, os produtos da indústria e serviços dão prejuízo, segundo a ótica da balança comercial, ao passo que a venda dos produtos primários alcança superávits entre as trocas do setor e garante o superávit da balança comercial como um todo.
Retrato do atraso
Em 2019 e 2020, o agro garantiu superávit nas trocas comerciais de matérias-primas de 83,1 e 87,7 bilhões de dólares, respectivamente, enquanto o déficit do agregado dos demais setores chegou a 35 e 36,7 bilhões de dólares.
Para esses dois anos, o Brasil conseguiu ter superávit geral de 48 e 50,9 bilhões de dólares. “O argumento é um só, o agro garante a positividade da balança comercial. Contudo, o gráfico é o retrato do atraso. Trata-se da perpetuação histórica de inserção subalterna e dependente do Brasil no comércio e na economia global”, diz o texto dos geógrafos.
Os autores afirmam que é importante problematizar as informações da balança comercial entre produtos primários, que obteve superávits na média de 82 bilhões de dólares nos últimos cinco anos. O principal produto primário de exportação brasileiro – que é o principal produto de exportação de toda a economia – é a soja.
A diferença do valor de exportação entre o primeiro e o segundo produto mais vendido pelo agro mostra o peso dessa produção: em 2019, o Brasil exportou 26 bilhões de dólares em soja, sendo que o segundo produto primário mais vendido foi a carne bovina, com 7,6 bilhões de dólares. “O que para alguns pode ser interpretado como o sucesso da sojicultura, para outros mostra-se como uma clara dependência da pauta exportadora basicamente em um produto apenas”, sinalizam.
O terceiro mais vendido, em 2019, foi a celulose (7,4 bi), seguido do milho (7,2 bi) e da carne de frango (6,9 bi). O sexto colocado em vendas merece destaque pelo seu significado para além dos números, o farelo de soja, com 5,8 bilhões de dólares.
Por que o Brasil precisa comprar produtos de fácil produção nacional?
No caso interno, analisando as exportações de matérias-primas, o Brasil isenta, por meio da Lei Kandir, a exportação da matéria-prima bruta. Pagar imposto não é, em geral, um hábito comum aos ruralistas, lembram os autores, o que conduz a exportações de mercadorias sem nenhuma industrialização. Ou seja, o próprio Estado brasileiro incentiva essa forma de inserção do país nas relações comerciais globais.
Os dados de importações de produtos agropecuários mostram outro aspecto das trocas comerciais brasileiras. Os quatro principais produtos agropecuários que o país comprou, em 2019, foram: trigo (1,4 bi dólares), peixes (1,1 bi dólares), produtos hortícolas, raízes e tubérculos (1 bi), e papel (850 milhões de dólares). Para nenhum desses produtos existem grandes limitações para produção nacional. “Mesmo com imenso superávit comercial entre os produtos do agro, por que o Brasil precisa comprar produtos de fácil produção nacional?”, questionam Yamila Gordfarb e Marco Antonio Mitidiero.
Os geógrafos analisam também a importação de arroz. Os dados apontam que, entre os dez produtos agropecuários mais comprados do exterior, entre 2018 e 2020, o arroz ocupa a nona posição. As importações de arroz só cresceram nos últimos anos. Em 2018, foram 614 mil toneladas, chegando em 2020 a quase 1 milhão de toneladas compradas, com o detalhe de que a maior parte é de arroz sem casca semielaborado (730 mil toneladas). “O que faz um país com uma das maiores disponibilidades de terra e água para produção agrícola depender do mercado externo para suprir a demanda de um produto que é a base da alimentação de seu povo? A resposta não é difícil: a falta de uma política agrícola que assegure a soberania alimentar e demais interesses da economia nacional tem permitido que produtores rurais priorizem o lucro obtido com exportações, elevando a importação onerosa e descabida para compensar a falta do produto no mercado interno.”
PIB brasileiro X PIB do agro
O texto ainda analisa a participação do agro no Produto Interno Bruto (PIB). De acordo com a tabela a seguir, a agropecuária compõe a menor fração do PIB brasileiro. Os dados mostram que, em média, o agro contribuiu com apenas 5,4% do PIB, enquanto o setor industrial com 25,5% e o setor de serviços 52,4%. Ou seja, o setor que mais produz mercadorias para exportação é o que menos contribui na composição dos valores do cálculo geral de produção de riqueza.
A potência do agro resumiu-se, entre os anos de 2010 e 2018, a um pouco mais que 5% do PIB. Na nova classificação de intensidade tecnológica da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), dividida entre alta, média-alta, média, média-baixa e baixa, as atividades econômicas da agricultura, pecuária, florestal e pesca são classificadas no menor estrato (“baixa”), com um percentual de intensidade tecnológica e participação no PIB de 0,27%, enquanto, por exemplo, a indústria farmacêutica (que produz vacinas) contribui com 27,98% e produtos de informática/eletrônicos 24%.
“A pergunta que salta aos olhos é: como é que o Agro que ‘é tech, pop e tudo’ participa tão pouco da composição do PIB?”, questionam os pesquisadores.
O agronegócio também passou a calcular o próprio PIB, usando uma metodologia particular e pouco clara, critica a análise. “Para sedimentar a narrativa de que o ‘Agro é tudo’, inventaram o ‘Produto Interno Bruto do Agronegócio’”.
De acordo com tal cálculo, o agro seria responsável por mais de um quarto do PIB nacional, sendo que, em 2019, totalizou 20,5% e, em 2020, alcançou 26,6% do PIB. “Como é possível saltar de uma participação na casa dos 5% ao ano para 26%?”, perguntam os geógrafos.
O “milagre” da multiplicação
O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq/USP), é o responsável pelo cálculo do “PIB do Agro”.
“Em uma operação de multiplicação dos pães e peixes outros setores porteira afora foram aglutinados no cálculo. Nessa metodologia, calcula-se a soma dos valores da produção agropecuária básica/primária, dos insumos para atividade, da agroindústria (processamento) e do que eles chamaram de agrosserviços”, explicam os geógrafos.
Embora o agro seja o setor que menos gera riqueza, recebe muitos créditos.
Ou seja, os créditos vão para quem não produz alimentos para os brasileiros, mas, sim, commodities para exportação.
No Brasil, o sistema nacional de créditos é a principal política agropecuária e é realizado pelo Plano Safra. Os créditos são ofertados por instituições públicas e privadas para custeio, investimento, comercialização e industrialização e são distribuídos segundo categorias: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) para os pequenos produtores familiares, o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp) para os médios e para as demais categorias nas quais se encaixam, principalmente, os grandes produtores, o agro.
No Plano Safra 2019/2020, por exemplo, os valores das contratações chegaram a 225 bilhões de reais, um valor superior ao Plano Safra 2018/2019 de 173,4 bilhões.
Os dados da tabela mostram que os “demais”, ou seja, o agronegócio, é quem recebe, de longe, a maior fatia do bolo. No Plano Safra 2019/2020, enquanto o Pronaf, que congrega o maior universo de produtores no campo brasileiro, recebeu 29 bilhões de reais, o Pronamp recebeu 27,9 bilhões e o agro 134,8 bilhões.
A desigualdade na distribuição dos créditos é potencializada ao se olhar para os dados de número de contratos, mostra o estudo. O Pronaf, que respondeu a 1.416.064 milhão de contratos, ficou somente com 12,8% dos recursos; o Pronamp, com 186.363 mil dos contratos e com 12,4% dos créditos; e os demais, que correspondem a apenas 328.066 mil contratos, receberam 59,9% da totalidade dos créditos.
“Isso resulta em uma imensa concentração de recursos nas mãos de um pequeno número de produtores rurais, em sua imensa maioria representantes do agro”, avaliam Goldfarb e Mitidiero.
Na regionalização do total de créditos concedidos para a safra 2019/2020, ao se comparar com o total de estabelecimentos rurais de cada região, segundo os dados do Censo Agropecuário do IBGE 2017, constata-se que o Sul recebe 34% dos créditos e possui 16,8% dos estabelecimentos rurais, o Centro-Oeste com 26% dos créditos e 6,8% dos estabelecimentos, o Sudeste com 24% dos recursos e 19,1% dos estabelecimentos, o Nordeste com 9% dos recursos, mas com 45,7% dos estabelecimentos, e o Norte com 7% do crédito e 11,4% dos estabelecimentos rurais. Relativamente, o Centro-Oeste com o menor número de estabelecimentos rurais é a região que mais recebe créditos. “Os dados não podiam apontar resultado diferente, pois é nessa região que a grande monocultura exportadora de commodities ganha mais força, com destaque para as fazendas de soja.”
Nas safras de julho de 2016 a junho de 2017 e de julho de 2017 a junho de 2018, segundo dados do Banco Central, a pecuária foi a atividade que recebeu mais créditos, com 74,9 bilhões de reais, seguida pela soja com 61,9 bilhões, pelo milho com 25,9 bilhões, café com 15,4 bilhões e cana-de-açúcar 13,7 bilhões.
Não paga a conta
Além de ser profundamente privilegiado na distribuição de recursos públicos, o agronegócio deixa pouco para o Brasil, ou seja, é um setor pouco tributado.
Um dado que explica a baixa arrecadação do setor, salienta a análise, é a isenção que recai sobre as exportações. Como exemplo, o artigo cita os valores pagos como Imposto de Exportação pelas Atividades de Agricultura, Pecuária e Serviços Relacionados, entre 2011 e 2019.
Como se vê na tabela, em 2014, ano em que mais impostos foram pagos, as Atividades de Agricultura, Pecuária e Serviços relacionados desembolsaram apenas 85 mil reais com imposto sobre exportações.
Os pesquisadores explicam que a desigualdade do sistema tributário brasileiro não se dá pela quantidade de tributos cobrados, mas, principalmente, por seu caráter regressivo, indireto e focado na taxação sobre o consumo. Por sua vez, a agropecuária de exportação é isenta de vários impostos.
O texto também avalia o Imposto Territorial Rural (ITR). O ITR é, desde 1997, autodeclaratório, assim como o Imposto de Renda, o que aumenta o risco de sonegação, uma vez que a fiscalização é praticamente inexistente.
As alíquotas do ITR variam segundo o grau de utilização da terra e a dimensão da área total do imóvel rural. As alíquotas são maiores à medida que a dimensão do imóvel rural aumenta e o seu grau de utilização diminui. Embora seja de competência da União, 50% da receita do ITR fica com os municípios, podendo chegar a 100%, no caso dos que assinaram convênio com a Receita Federal para fiscalizar e cobrar o tributo.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Cartografia, o Brasil deixa de arrecadar R$ 2 bilhões por ano em impostos na área rural. Há muita divergência quanto às declarações dos proprietários de terras e de órgãos governamentais quanto ao uso da terra. Cerca de 87% dos proprietários de terra declaram alcançar grau de utilização maior que 80% de suas terras, enquanto que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) indica que o grau de utilização média da terra no Brasil é da ordem de 59%. Esses dados mostram a grande evasão (sonegação) existente no caso do ITR. “O ITR representa uma injustiça fiscal não apenas pela baixa arrecadação, mas porque os grandes e médios proprietários passaram, em 2010, a pagar menos por hectare, fazendo cair a média de R$ 1,59 por hectare, em 2003, para R$ 1,52”, afirmam os geógrafos.
Agro é tóxico
O texto de análise também trata do mercado de agrotóxicos, que movimenta no Brasil, em média, 10 bilhões de dólares anualmente. Porém, as indústrias do setor são desoneradas integralmente do IPI (alíquota média estimada em 10%), PIS/Cofins (alíquota cheia estimada em 9,25%) e usufruem de desoneração parcial de ICMS e de Imposto de Importação, sendo que este último é extremamente mutável em decorrência das inúmeras alíquotas e dos volumes importados.
Como os agrotóxicos são considerados insumos para atividade agrícola, assim como os fertilizantes, sementes, aviões para pulverização e maquinário, o gasto com a sua aquisição é abatido integralmente na apuração dos tributos sobre a renda (Imposto de Renda Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido)
Segundo estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), as isenções e reduções de imposto das empresas produtoras de agrotóxicos somam quase 10 bilhões de reais ao ano. Isso equivale a quase quatro vezes o orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2020 (2,7 bilhões). A isso se somam, ainda, investimentos públicos nas transnacionais do setor. Nos últimos 14 anos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) emprestou 358,3 milhões a empresas do setor.
Não gera emprego e renda
A máxima de que o “Agro é pop” e gera empregos no Brasil também não se sustenta em nenhuma base de dados. Em 2020, durante a pandemia, o setor agropecuário não parou, com crescimento na produção alcançando recordes nas colheitas e na exportação de commodities. Contudo, 185.477 mil trabalhadores perderam seus empregos nessa safra, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE.
Em 2020, quando o país bateu recordes de produção agrícola e pecuária, os preços dos alimentos também subiram de forma avassaladora e a fome voltou a ser uma realidade. O aumento dos preços dos alimentos, em geral, atingiu 14,09%, enquanto a inflação oficial foi de 6,29%, em 2020.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a inflação teve impacto de 6,22% para os pobres, mais que o dobro do impacto para os ricos, com 2,74%. No aspecto de comprometimento da renda, as famílias pobres comprometeram 37% dos seus orçamentos com gastos alimentares, energia e gás de cozinha, enquanto os ricos comprometeram apenas 15%.
Com os impactos da pandemia na perda de renda das famílias, aliada ao aumento dos preços dos alimentos devido às escolhas econômicas dos governos federais mais recentes, o ano de 2020 terminou com os seguintes resultados: “do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome”, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
Insegurança alimentar é um projeto
No “tudo” que o agro invoca para si entra a fome. Com isso, o agro é, também, fome, diz a análise. “O agro molda, defende e planeja uma estrutura político-econômica de produção de alimentos que deságua no aumento da fome. Por isso, a insegurança alimentar no Brasil não é uma consequência inesperada de uma pandemia ou uma falha do sistema econômico, mas, sim, projeto”, concluem.
Os autores finalizam a análise explicando que o texto é muito mais que apenas “uma crítica à falsa ideia de que a economia brasileira é sustentada pelo agro e que, portanto, bastaria aprimorar a forma de atuação deste ou então industrializar (ou reindustrializar) a economia”. Eles dizem que “poderia parecer, em um primeiro momento, que para melhorar as condições de inserção econômica bastaria industrializar essa produção de commodities, já que com isso agregaríamos valor à produção e ganharíamos autonomia tecnoprodutiva”.
No entanto, acreditam que “o buraco é mais embaixo: Não se trata apenas de agregar valor à produção do agro, assim como não basta o agro passar a pagar mais impostos ou a produzir internamente seus insumos tecnológicos e todos os problemas estarão resolvidos. Um outro desenvolvimento, uma outra agropecuária, ou seja, uma outra forma de produzir e distribuir é o que nos move”.
O que a análise pretendeu mostrar, afirmam, é que “nem do ponto de vista capitalista o país está no rumo certo. Isso porque o agro brasileiro é um tiro no pé do próprio desenvolvimento capitalista brasileiro”.