Agrotóxico cancerígeno
Monsanto vai a julgamento nos EUA por agrotóxico cancerígeno
Por Júlia Dolce | Brasil de Fato
Composto à base de químico glifosato corresponde a 50% do mercado brasileiro de agrotóxicos
Teve início nesta segunda-feira (9), nos Estados Unidos, o julgamento da multinacional Monsanto, acusada de ocultar deliberadamente os perigos relacionados ao herbicida Roundup, à base de glifosato. A empresa é processada por um de seus ex-empregados, o paciente terminal Dewayne Johnson, que afirma ter contraído um linfoma de Hodgkin após manusear o produto por mais de dois anos.
Apesar de a Monsanto responder a centenas de processos pelo mundo, o processo de Johnson, cujo julgamento deve durar pelo menos três semanas, é o primeiro referente a esse produto que chega aos tribunais. O Roundup é vendido há mais de 40 anos, e é um dos agrotóxicos mais utilizados no mundo, vendido em 160 países. Seu uso é internacionalmente questionado por inúmeros estudos científicos que revelam o caráter cancerígeno do composto glifosato.
No Brasil, a venda do pesticida representa metade de todo o mercado de agrotóxicos, e pode ser facilmente encontrado nas lavouras do país, como afirma a engenheira química Sônia Corina Hess, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro Ensaios sobre Poluição e Doenças no Brasil, publicado nesta semana. O livro dedica um capítulo inteiro ao componente ativo do Roundup, entitulado “Glifosato, o maior dos venenos”.
“O glifosato é o mais usado no mundo inteiro, não só no Brasil. É utilizado em tudo que é herbicida, para uso doméstico, você acha até em lojas de jardinagem. Tem um descontrole total do uso desse produto, como se fosse água. Ele é a base de água, não tem cheiro, e as pessoas acham que, porque não tem cheiro, não faz mal”, afirmou.
De acordo com a engenheira química, além de câncer, o glifosato pode causar muitos outros problemas de saúde.
“O efeito do glifosato no corpo humano é muito grave, porque bloqueia a produção dos aminoácidos essenciais. Causa depressão porque bloqueia a ação dos neurotransmissores, causa autismo porque bloqueia a produção de aminoácidos essenciais para o desenvolvimento do cérebro”, explicou.
Licença
Hess foi responsável por protocolar um parecer técnico ao Ministério Público, em 2016, explicando os perigos do glifosato. O parecer foi enviado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que, desde 2008, está em processo de reavaliação do químico, e, no momento, considera o agrotóxico como “pouco tóxico”. No entanto, a engenheira-química é pessimista.
“O poder de um produto desse em um país como o Brasil, campeão em uso de agrotóxicos no mundo, é enorme, é um mercado de bilhões de dólares por ano. Então quando os pesquisadores começam a dizer que é perigoso, é claro que a indústria tem todo o dinheiro para começar a dizer o contrário, fazer propaganda dizendo que tudo é bom. É uma luta desigual, a população ainda não sabe de nada. Agora, com a mudança na Lei dos Agrotóxicos, eles vão nadar de braçada”, afirmou.
A pesquisadora se refere ao Projeto de Lei (PL) 6.299/2002, conhecido como “PL do Veneno”, que pretende flexibilizar as regras para adoção de agrotóxicos no país, e foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados no dia 25 de junho, e segue em trâmite para o plenário da Câmara.
Na União Europeia, onde as licenças dos produtos químicos são reavaliadas periodicamente, houve uma grande discussão acerca da renovação do glifosato entre os anos de 2015 e 2017, e o agrotóxico quase foi banido, após a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançar um relatório colocando-o como “provavelmente cancerígeno para humanos”.
De acordo com o coordenador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Alan Tygel, o julgamento nos EUA pode servir de inspiração para a denúncia da Monsanto no Brasil.
“Achamos bastante improvável que tenhamos essa proibição dele no Brasil, porque o agronegócio é totalmente dependente dele. No Brasil, infelizmente, temos poucos casos onde a empresa é responsabilizada pelos danos de seus produtos, mas se a Monsanto for de fato condenada pelos seus crimes, isso pode abrir um precedente muito bom para a luta contra os agrotóxicos e pela vida no mundo inteiro. Temos diversas iniciativas no Brasil provando que é possível fazer uma agricultura baseada na agroecologia sem o uso de glifosato”, afirmou.
Réu recorrente
Originalmente, o glifosato era utilizado para limpar incrustações em caldeiras, e seu potencial herbicida foi descoberto ao ter seu resíduo jogado, por acaso, em um terreno baldio. O produto foi patenteado em 1969 pela Monsanto, mas já caiu em domínio público.
Em março deste ano, uma corte federal estadunidense divulgou uma série de documentos que provam o conhecimento, omissão e falsificação de pesquisas empresa sobre o Roundup pela empresa. No julgamento que teve início nesta semana, a Monsanto nega que exista qualquer conexão entre os produtos com base de glifosato e câncer, e tem levado seu próprio especialista à corte, o epidemiologista do câncer Lorelei Mucci.
Ontem (10), o juiz Vince Chhabria considerou “fracas” as evidências de que o Roundup seja cancerígeno. “Vista em sua totalidade, [a evidência] parece muito equivocada para apoiar qualquer conclusão firme de que o glifosato causa câncer”, afirmou o juiz, que, ainda assim, permitiu a continuidade dos processos contra a empresa.
Apesar de ainda não haver processos no Brasil contra o glifosato, a multinacional coleciona processos no mundo todo contra esse e outros produtos. Em 2012, a Monsanto acordou pagar US$ 93 milhões após ter sido acusada de causar problemas de saúde à população de um município estadunidense que abrigou, entre os anos 1950 e 1960, uma fábrica de Agente Laranja – princípio ativo do Napalm, químico incendiário utilizado pelo exército estadunidense na guerra do Vietnã.
Em 2009, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos concordou que a empresa não era responsável pelo uso militar do Agente Laranja, uma vez que estavam prestando serviços ao governo. No mesmo país, agricultores têm sido repetidamente derrotados na corte ao contestarem as culturas de sementes transgênicas da Monsanto.
Em 2015, na França, a Justiça condenou a Monsanto a indenizar um agricultor, intoxicado em 2004 por vapores emitidos por outro agrotóxico da empresa, o Lasso, banido em vários países desde então. Em 2017, um tribunal civil informal chamado de “tribunal dos povos”, composto por cinco juízes profissionais, considerou a empresa culpada por violações dos direitos humanos e impacto ambiental negativo. A Monsanto denunciou a ação, que considerou uma “encenação anti-tecnologia agrícola”.
No Brasil, um juiz condenou, na última quarta-feira (4), unidades locais da Monsanto a realizarem depósitos em juízo dos royalties relacionados à tecnologia das sementes transgênicas Intacta RR2 Pro. Produtores de soja no Mato Grosso pediram a um tribunal federal que cancelasse a patente em novembro do ano passado, alegando o fracasso da empresa em provar que traz inovação tecnológica. Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu ganho de causa a uma ação coletiva do Sindicato dos Produtores e Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Sul contra a empresa.
Bayer
Uma das preocupações em relação à impunidade da Monsanto é a recente compra da empresa pelo grupo farmacêutico e agroquímico alemão Bayer, por mais de US$ 60 bilhões (equivalente a R$ 232,1 bilhões). Em junho deste ano, a Bayer anunciou o fim do nome da Monsanto, o que pode acarretar em complicações jurídicas para as vítimas que movem processos contra a empresa. O movimento de compra de empresas produtoras de agrotóxicos por multinacionais maiores têm sido frequente nos últimos tempos.
“Se antes já era um oligopólio, agora temos três empresas enormes que, além de ter o controle sobre as sementes e os agrotóxicos, também tem poder de lobby muito grande, com capacidade de influenciar mudanças de leis. Agora, com a fusão das empresas, há o temor que essa responsabilização fique mais frágil ainda. Fica a grande dúvida sobre de quem seria a responsabilização por todos os crimes praticados pela Monsanto, e a lista é grande”, afirmou Alan Tygel.
Tygel destacou o caso de Bhopal, cidade na Índia, onde um vazamento de gás tóxico na sede da empresa produtora de agrotóxicos Union Carbide, subsidiária da multinacional estadunidense Dow Chemical, matou mais de 10 mil pessoas instantaneamente, e deixou milhares de outros com sequelas permanentes, em 1984. A empresa foi fundida com a também estadunidense Dupont em 2017, o que diminuiu ainda mais a esperança dos sobreviventes por reparações.