Alfabetização para o MEC
PNA: O que o MEC pensa sobre Alfabetização?
A Política Nacional de Alfabetização (PNA) veio acompanhada de muitas críticas e dúvidas. Veja o que diz o documento e como dialoga (ou não) com a Base
POR: Paula SalasSe você está chegando agora a essa discussão sobre a política de Alfabetização, permita-me fazer um breve resumo do que aconteceu até aqui. Em abril, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto da Política Nacional de Alfabetização (PNA), chamada de “Alfabetização Acima de Tudo”. Já no primeiro momento surgiram polêmicas envolvendo o documento, como a participação da família e o método escolhido para o processo de Alfabetização.
Em agosto, o Ministério da Educação (MEC) lançou o caderno da PNA para aprofundar termos que apareceram no decreto, além de dados e referências que foram a base para a elaboração do documento.
Para Alessandra Gotuzo Seabra, professora de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista que contribuiu para a PNA, o diferencial da política está em sua base científica. “Não é uma proposta puramente teórica, mas verificaremos o que os estudos têm mostrado que é mais eficaz para Alfabetização e, a partir disso, faremos uma proposta teórica-metodológica baseada em pesquisa”, explica.
O caderno é fruto de discussões que aconteceram entre especialistas em Alfabetização e representantes do MEC em fevereiro. “Cada especialista contribuiu com um pouco da sua área de pesquisa sobre Alfabetização e aprendizagem, levantando os pontos fundamentais que seria importante pensarmos”, conta Augusto Buchweitz, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e especialista que contribuiu para a PNA. A partir dessas discussões e materiais enviados para referência, o MEC organizou e redigiu os documentos. E de lá para cá, a polêmica só cresceu.
A Política Nacional de Alfabetização vem acompanhada de incertezas sobre o futuro da Alfabetização e (aparentemente) poucos consensos. Entenda:
Como fica a Base diante da PNA?
Após o lançamento da Política Nacional de Alfabetização, o programa tornou-se alvo de críticas por ter rompido com as políticas anteriores. “A Base faz uma ponte com reflexões anteriores. Nesse sentido, a PNA polariza mais do que cria uma possibilidade de interlocução”, aponta Maria José Nóbrega, professora de pós-graduação no Instituto Vera Cruz. Sônia Madi e especialista no ensino da leitura e da escrita. “A BNCC recupera duas coisas: a importância das práticas sociais de leitura e escrita, inclui as multimodalidades e coloca a importância do trabalho sistemático [de escrita alfabética]”, diz a coordenadora da Plataforma Alfaletrar. “Já esse documento atual contradiz a Base porque ele toma apenas uma parte”.
Os especialistas que participaram das discussões da política de alfabetização junto ao MEC têm outra visão. Para eles, a PNA complementa a BNCC. “Em nenhum momento há uma intenção de não observar a Base”, afirma Augusto Buchweitz. Segundo ele, há definições “bastante amplas” em Alfabetização. “O MEC tentou não contradizer e produzir um material para complementar e aprofundar”, diz. Alessandra Gotuzo Seabra é mais assertiva. “A política está alinhada à BNCC. É possível trabalhar com o letramento e com a consciência fonológica. Aliás, a Base não é contra. O que não aparece tão explicitamente é só a correspondência letra-som”.
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BNCC x PNA: quais as diferenças e semelhanças?
Durante a elaboração da Base Nacional Comum Curricular, um grupo de cientistas – entre eles, nomes que fazem parte da equipe de especialistas da PNA – encaminhou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) um documento com críticas à definição de Alfabetização que aparecia na Base, em 2017. “Fomos sumariamente escanteados”, diz Augusto Buchweitz. Entre as críticas feitas pelo grupo à Base, é possível identificar pontos que aparecem com força na política de Alfabetização como, por exemplo, a correspondência fonema-grafema e o uso de referências e experiências internacionais. Veja outras diferenças e semelhanças entre o texto da BNCC e da PNA:
Alfabetização em 2 anos: Os dois documentos concordam que a Alfabetização pode ser feita em dois anos e com a importância de começar o processo já na Educação Infantil.
Sucesso da Alfabetização: A PNA coloca seis pilares para medir o sucesso da Alfabetização. São eles: consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, fluência em leitura oral, desenvolvimento de vocabulário, compreensão de textos e produção de escrita. Segundo Maria José Nóbrega, esses eixos dialogam com habilidades que aparecem no texto da Base como, por exemplo, dominar as relações entre grafemas e fonemas e saber decodificar palavras e textos escritos. “Pode correlacionar, mas tudo vai depender de como isso for tratado didaticamente”, explica.
Letramento x literacia: Utilizado por programas do MEC como o Pró-letramento e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), o termo letramento é associado ao trabalho de Magda Soares, professora titular emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Magda define o letramento como “o desenvolvimento das habilidades que possibilitam ler e escrever de forma adequada e eficiente, nas diversas situações pessoais, sociais e escolares em que precisamos ou queremos ler ou escrever diferentes gêneros e tipos de textos, em diferentes suportes, para diferentes objetivos, em interação com diferentes interlocutores, para diferentes funções” (Glossário Ceale, do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita).
Esse termo é ampliado pela Base, que coloca a importância do multiletramento – que envolve o ensino de habilidades específicas para a escrita e leitura em ambientes digitais e textos multissemióticos e multimidiáticos. Estamos falando, portanto, de leitura e escrita de textos com imagens estáticas ou em movimento com som.
A escolha de ampliar o escopo, que envolvia o letramento, pode ter influenciado na escolha por literacia – conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados à leitura e à escrita, bem como sua prática produtiva (p. 21 da PNA) . “A definição de letramento utilizada na Base é extremamente ampla e até por isso se decidiu usar a definição literacia para focar no aspecto específico do desenvolvimento da habilidade fundamental da leitura”, explica Augusto Buchweitz.
No entanto, há um receio de que os professores, acostumados com o termo letramento, pensem que se trata de algo diferente, quando na verdade são termos semelhantes que provêm da mesma origem do inglês literacy. “Eles mudam para literacia como se fosse outra coisa, desconsiderando que o termo que os professores conhecem é letramento”, afirma a especialista Sônia Madi. “Se nós queremos que os professores trabalhem com práticas sociais de leitura e escrita, por que substituir e dar a impressão que é outra coisa?”.
Ler e compreender: “A compreensão não resulta da decodificação. São processos independentes. Por isso, é possível compreender sem ler, como também é possível ler sem compreender. A capacidade de decodificação, no entanto, é determinante para a aquisição de fluência em leitura e para a ampliação do vocabulário, fatores que estão diretamente relacionados com o desenvolvimento da compreensão” (p. 34 da PNA)
A partir desse trecho, especialistas apontaram que a separação entre ler e compreender que aparece no documento é diferente da forma que a Base vê essa questão. A visão defendida pelo documento tende a ver “a compreensão de leitura como algo que só deveria ser priorizado após o domínio da ‘decodificação’ e da ‘leitura fluente’”, explica Artur Gomes de Morais, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro "Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização".
Em uma abordagem da perspectiva socioconstrutivista, a compreensão está “sempre colocada”, não existe essa separação entre ler e entender. “Apesar de não decodificar, se alguém lê para a criança, ela pode entender muita coisa”, explica a professora Maria José Nóbrega. Ela complementa: “Se for estimulada a tentar ler sem ter esse conhecimento, sem saber ler, a criança aos poucos vai ganhando a compreensão do funcionamento do sistema de escrita e vai conseguir fazer essa decifração com maior intimidade”.
Para Maria José, é buscando a compressão que se cria as condições para interpretar os sinais gráficos. É importante lembrar que apenas decifrar não garante de fato que a criança estabeleceu essa compreensão.
Concepção de língua: Aqui também há uma divisão clara. Partindo do princípio de que a língua é um código alfabético, a PNA entende que, além do letramento, a criança precisa conhecer o código - o que significa aprender a correspondência entre letra e som. “Eles seguem um caminho do mais simples para o mais complexo, partindo da decifração”, aponta Sônia Madi.
“Primeiro, a criança aprende as letras, depois as sílabas, depois as palavras para depois aprender a ler e a escrever”, diz. A Base, segundo ela, reconhece que “a estrutura da língua, tanto a oral quanto a sintaxe, aparece em paralelo ao trabalho da Alfabetização no convívio e no contato com a escuta das histórias, do texto escrito”.
Para Maria José, a PNA e a Base divergem já na própria concepção de língua. “A partir do momento que eu estabeleço que a língua é um código, o aluno precisa aprender as unidades e estabelecer correlações”, diz a professora de pós-graduação do Vera Cruz. “Se você lida com a língua como um código, a noção de leitura é muito restrita aos sinais gráficos, mas nós não lemos apenas com o que está escrito, mas dialogamos com os textos a partir dos referenciais de conhecimento de mundo que a gente tem e das experiências que a gente viveu”, explica.
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EXISTE UM MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO DEFENDIDO PELA PNA?
Há discordâncias. De um lado, os especialistas entendem que há uma predileção pelo método fônico. “A Base já falava da importância do trabalho sistemático e trazia competências e habilidades relacionados. Isso é substituído pela implementação do método fônico”, aponta Sônia Madi. O documento em si não institui nominalmente um método, mas no texto do que o professor precisa levar em consideração na alfabetização, é possível identificar uma escolha metodológica. “Eles sustentam que não estão definindo método, mas quando dizem que as abordagens precisam ir do simples para o complexo, eles estão fazendo uma opção metodológica das abordagens sintéticas [da Alfabetização]”, explica Maria José.
Apesar de se identificarem com o método fônico, os especialistas que participaram da elaboração do documento negam que a política impõe a metodologia. “O documento não impõe, isso é um equívoco, porque não pode impor nada. Cada ente federativo é independente para fazer o que quiser. Não temos esse poder, nem queremos ter”, afirma Augusto Buchweitz. O professor da PUC-RS complementa: “A produção científica nunca é prescritiva, querem descrever e mostrar a evidência”. Para ele, o objetivo da Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Conabe) é “trazer informação para quem toma decisão”. “Se eles quiserem seguir a evidência, é essa. Se querem fazer outra coisa, assumam que estão fazendo outra coisa. Essa é a autonomia dos entes federativos”, afirma.
Augusto Buchweitz avalia que a resistência está ligada a disputas ideológicas. “Não tem nada a ver com a ciência da Alfabetização”, diz. Segundo ele, do ponto de vista científico não há discussão, há apenas um lado e o resto é “outro tipo de discussão”. “Se sabe claramente que o desenvolvimento dessas habilidades fundamentais que estão no decreto é o que ajuda a alfabetizar de maneira mais efetiva”, afirma.
“Os comentários sobre a política dizem que o texto sugere o uso do método fônico. Isso não é verdade, o documento sugere a introdução da instrução fônica”, afirma Alessandra Gotuzo Seabra. Ela explica que a política propõe que, dentro da metodologia do professor, escola ou sistema educacional, a instrução fônica seja incorporada.
Vale lembrar que a instrução fônica sistemática é o ensino explícito e organizado das relações entre os grafemas (letra) e os fonemas (som). “Ela deve ser vista pelo professor como uma descoberta do código alfabético, a criança vai junto com o professor refletir sobre o código alfabético”, diz Alessandra. “Não devemos pensar que o professor vai fazer essa instrução fônica de um modo extremamente tradicional ou de uma forma mecânica, isso seria um erro”, finaliza. Mas quando se espera que a instrução seja feita? Para ela, o ideal é que seja feito no final da Educação Infantil e início do Ensino Fundamental. “Sem a instrução, a criança demora mais tempo para fazer a distinção entre as figuras do livro e as letras, enquanto código linguístico. É preciso mostrar desde cedo que são diferentes”, explica.
Em relação à instrução fônica sistemática, Artur Gomes de Morais tem ressalvas: “Temos evidências de que as crianças podem ser ajudadas a compreender o princípio alfabético sem aulinhas sistemáticas sobre relações entre grafemas e fonemas, de modo repetitivo e controlado”, afirma. O autor do livro "Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização" também critica que o que o documento chama da instrução fônica sistemática coloca a criança como uma “receptora e reprodutora de informações prontas e não querem investigar o que ela pensa sobre letras, sílabas, palavras e textos”.
Dessa forma, o autor sustenta que há habilidades tradicionais no método fônico que não se mostram necessárias para a Alfabetização como, por exemplo, a consciência fonêmica – a habilidade de conhecer e manipular intencionalmente o fonema, ou seja, que a criança seja capaz de ser pronunciar um a um os fonemas. “É desprender uma energia da criança com algo que não é necessário para aprender a ler e a escrever”, complementa Maria José Nóbrega.
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