Alunos afetados pela pandemia
Afetados pela pandemia, alunos chegam aos Anos Finais do Fundamental com problemas de alfabetização
Redes de ensino têm focado os seus esforços na criação de turmas especiais, laboratórios e projetos ligados ao letramento
19/04/2024 ISABELLA SANDER
Já faz mais de dois anos que as aulas presenciais voltaram a ser rotina nas escolas, mas os esforços para recompor a aprendizagem perdida no período de isolamento seguem vivos. Em todas as redes de ensino, iniciativas como a criação de turmas especiais, laboratórios e projetos, ligadas especialmente às áreas de língua portuguesa e matemática, se consolidaram, a fim de enfrentar uma realidade que consiste em conhecimentos insuficientes e problemas de alfabetização entre alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Em 2021, um estudo da Unicef – braço da Organização das Nações Unidas (ONU) voltado para assuntos relacionados à infância – indicou que crianças de seis a 10 anos eram as mais afetadas pela exclusão escolar ocorrida na pandemia. Três anos depois, as mesmas crianças, hoje com 10 a 14 anos, refletem a interrupção dos processos de aprendizagem.
Em Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) desenvolveu o programa Recompoa, que reúne diferentes ações de combate às perdas de aprendizagem na pandemia. Há, por exemplo, a oferta de Laboratórios de Aprendizagem, nos quais estudantes cujos professores identificam dificuldades nas aulas podem ser encaminhados para receberem um atendimento mais individualizado, uma vez que a previsão é de grupos menores de alunos.
Outra iniciativa foi a criação de Turmas de Diferenciação Pedagógica, que reúnem estudantes que registraram uma defasagem maior na aprendizagem da etapa que estão cumprindo. Nelas, além dos docentes de cada disciplina, há o apoio de um pedagogo, que auxilia nas avaliações referentes ao processo de alfabetização.
— Nós tivemos muita adesão na rede. Nós já percebemos o aumento da participação e da aprendizagem dos alunos, e pudemos perceber mudanças na questão da reprovação, com esses alunos conseguindo aprovar, tendo os conhecimentos necessários para avançar para o ano seguinte — avalia Kelly Souza, coordenadora do Ensino Fundamental na Smed.
Na Escola Municipal Wenceslau Fontoura, no bairro Mario Quintana, em Porto Alegre, os docentes perceberam que muitos alunos pararam de frequentar as aulas durante a pandemia e, com isso, perderam dois anos de estudos. Como a orientação geral era de não reprovar os estudantes, uma vez que, especialmente em instituições públicas, o problema era a dificuldade de acesso à internet para fazer as atividades, o resultado foi que muitos chegaram às salas de aula, em 2022, com uma lacuna de dois anos de aprendizagem, mas duas séries à frente do que em 2020.
Percebendo a situação, a Wenceslau Fontoura foi pioneira ao reunir em uma turma – na época, de quarto ano –, em 2022, aqueles estudantes ainda não alfabetizados, para receberem uma atenção especial. O resultado tem sido positivo.
— Dizíamos para eles que todos ali tinham condições de aprender e que estávamos ali para superar aquelas dificuldades. Aos poucos, eles foram melhorando. No ano seguinte, foram para o 5º ano também naquela turma diferenciada. No final do ano passado, chegamos ao conselho de classe e avaliamos quais os resultados, e percebemos que alguns já puderam migrar para a turma regular — relata Denise Bruneta Cerva, supervisora educacional da escola.
Nas Turmas de Diferenciação Pedagógica, além de um olhar mais apurado para a alfabetização, os materiais didáticos são adaptados. No 6º ano, por exemplo, os textos passados pelos professores são mais curtos e a letra usada é sempre bastão, já que há quem ainda não domine a fonte cursiva.
Enzo Kenai, 11 anos, frequenta a 61ALFA, turma de sexto ano nesse modelo. O menino comemora os resultados:
— Eu já aprendi novas coisas, aprendi a ler, a escrever. Estou escrevendo bem, a sora está me dando boas notas. Hoje, me dá um aperto no coração de saber as coisas, saber o que fazer.
O estudante gosta, por exemplo, de ler mangás e obras da série Crepúsculo. Por enquanto, se assusta com livros com muitas páginas, mas, aos poucos, eles têm aumentado de tamanho.
Outro recurso utilizado na Wenceslau Fontoura é a oferta de turmas de Correção de Fluxo, que agrupam estudantes que repetiram pelo menos dois anos. Na turma existente nessa escola, há alunos de 7º e 8º ano, que cursam duas séries em um só ano, a fim de reduzir a distorção idade-série. Para dar certo, o formato é um pouco diferente do regular.
— Eles precisam ter professores de referência, porque precisam de um vínculo maior para não evadirem. Por isso, é um grupo de seis ao invés de nove professores, com uma carga horária diferente. Português e matemática, nessa turma, têm oito períodos, ao invés de cinco e quatro — descreve Camilla Paiva Lara, professora de língua portuguesa e supervisora dos Anos Finais na instituição.
Nessa configuração, Renato Cardoso da Silva Saraiva, 15 anos, sente que está aprendendo mais – se hoje está matriculado no oitavo ano, sua expectativa é iniciar o Ensino Médio já no ano que vem.
— Eu nunca tinha participado da CF (Correção de Fluxo). Tá sendo tri bom, tô aprendendo muito mais, os professores são muito mais legais. Eu presto bastante atenção e, se eu não sei, eu pergunto, porque não custa nada perguntar. Agora eu só quero me formar e ir pro primeiro ano, que é onde eu deveria estar — vislumbra Renato.
O adolescente lembra que, durante a pandemia, teve muita dificuldade com o acesso às aulas por conta da internet, que, com frequência, caía, impedindo-o de assistir aulas online.
— Eu acho que eu rodei mais porque a minha internet caía toda hora. Daí, não tinha como eu prestar atenção nas matérias — lamenta o menino.
Incentivo ao hábito da leitura
Na rede municipal de Canoas, na Região Metropolitana, a professora de língua portuguesa Gabriela Moch percebeu que seus alunos do 6º ano, na Escola General Osório, voltaram do período pandêmico com, praticamente, dois anos de lacuna em seu processo de alfabetização, além de um vício no uso de aparelhos eletrônicos que dominou as famílias. Por isso, idealizou um projeto que permitisse que, ao mesmo tempo, as crianças desenvolvessem o hábito da leitura e tivessem momentos de partilha com seus parentes.
— O Meu Amigo Livro é uma forma de eles se conectarem com o papel, com a família, voltarem para o analógico, saírem das redes sociais e desenvolverem hábitos que são saudáveis tanto para a questão do convívio quanto para o desenvolvimento da leitura, que abre tantas portas, desenvolve o nosso cognitivo, a linguagem, traz conhecimentos — descreve a docente.
Gabriela selecionou alguns títulos e suas sinopses. A turma, então, escolheu três como “mascotes”. Em grupos, os estudantes decoraram uma caixa e um diário de registros, os quais, junto com a obra, vão para a casa de um aluno por semana. A orientação é que a criança faça uma leitura compartilhada com algum familiar. Ao final, a dupla deve escrever suas impressões sobre o conteúdo.
A educadora ressalta a dificuldade dos estudantes de escolas públicas em ter acesso adequado, durante a pandemia, às aulas remotas. Pelos seus cálculos, hoje, os alunos do 9º ano têm habilidades que variam entre o esperado para turmas de 7º, 8º e 9º ano, a depender das condições de aprendizagem de cada criança naquela época. Para dar conta das lacunas, foram feitas adaptações curriculares – os livros selecionados para esse projeto, por exemplo costumavam ser trabalhados no quarto ou no quinto ano.
— Se eu trago um livro maior para um aluno de 6º ano que não teve toda essa bagagem (de leitura e alfabetização), ele vai se assustar: “não é o que eu gosto, eu não quero, eu não entendo, eu não consigo”. Aí, eu afasto o aluno da leitura. Se eu trago uma obra que seria, talvez, mais adequada a uma idade menor, consigo aproximar a criança, que vai dar conta daquilo, vai se interessar mais por aquele livro e, com isso, o objetivo, que é desenvolver o hábito da leitura, vai ser mais facilmente atingido — sintetiza Gabriela.
Isabelle Mendes, 11 anos, passou por um processo de alfabetização mais longo do que o costumeiro, por conta da pandemia.
— Eu aprendi a ler no primeiro ano, já na creche, assim, eu já sabia mais ou menos, porque a minha irmã me ensinava em casa. E aí, eu aprendi a escrever emendado no quarto ano, porque teve a pandemia no meio e foi mais difícil — lembra a garota.
Se a alfabetização demorou um pouco, Isabelle agora já tomou gosto pela leitura.
— Eu gosto (de ler). Eu já li o livro do Pequeno Príncipe, eu acho bem legal, de fazer, assim, no tempo livre. Eu gosto de aventura também, que é bem legal. E também de drama. E histórias tipo Anne Frank, eu gosto também — cita a menina.
Sobre o projeto Meu Amigo Livro, a aluna Gabriela Cruz, 11 anos, gostou especialmente de fazer a leitura compartilhada.
— A gente fez antes de dormir, no final de semana. A gente dividiu o livro, assim: eu li pro meu pai e meu pai leu pra mim. Eu li pra minha mãe e minha mãe leu pra mim. Minha irmã leu pra mim e eu li pra ela. Foi muito legal. A gente deu bastante risada — diz a estudante.
Para Valentina Machado, 12 anos, quanto mais se lê, melhor se lê:
— Quanto menos a gente lê, a gente vai continuar lendo do mesmo jeito que a gente começou. Se a gente lê mais, a gente vai ler melhor.
Docente da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-líder do Grupo Aula: Alfabetização, Linguagem e Ensino, Luciana Piccoli participa de duas pesquisas sobre o impacto da pandemia na aprendizagem: um estudo mais amplo, sobre os conhecimentos da etapa dos Anos Iniciais de modo geral, realizado pela Faced, e outro focado especificamente na alfabetização, feito em rede por mais de cem pesquisadores de mais de 30 universidades.
Uma das iniciativas que Luciana identifica como mais bem-sucedidas é o projeto Ateliê Alfaletrar, da prefeitura de Novo Hamburgo. A proposta é que uma pedagoga atenda, no turno inverso, estudantes do 4º ao 9º ano do Fundamental, para sanar a angústia dos professores ao ver alunos já mais velhos sem a devida alfabetização.
— Quando começamos a fazer essa pesquisa sobre o impacto da pandemia, várias escolas começaram a nos chamar com demandas dos Anos Finais, porque o professor dessa etapa não é alfabetizador. Mesmo aquele formado em Letras, ele vai trabalhar com leitura, produção de texto para crianças já alfabetizadas. Então, esses professores não sabem como ajudar as crianças não alfabetizadas. Eu gosto muito do trabalho em Novo Hamburgo porque é muito personalizado, o que é possível em grupos pequenos — explica Luciana.
A atividade acontece utilizando diferentes recursos didáticos, como jogos que estimulam a alfabetização e o gosto pela leitura e a escrita, a partir de instrumentos diferentes dos convencionais. O objetivo é, além de desenvolver a aprendizagem, melhorar a autoestima escolar daquela criança.
Luciana entende, porém, que nem toda família que consegue levar o estudante para atividades no turno inverso, o que eleva a importância da oferta de ensino em tempo integral.
— Seria necessário que essas crianças fossem colocadas como prioridades nas políticas de educação, porque essas crianças são aquelas que mais estão precisando de ajuda e de uma mediação intencional. Elas precisam de uma professora muito qualificada, porque ela provavelmente vai se deparar com uma série de casos não “só” de defasagem do período pós-pandêmico, mas de dificuldades de aprendizagem e até deficiências não diagnosticadas — observa a professora da UFRGS, salientando que, caso esse olhar não exista, esses estudantes não conseguirão ser reintegrados de fato à educação tradicional.
A docente alerta que esse trabalho não acontece do dia para a noite: é um trabalho de “formiguinha”, que precisa ser feito em parceria entre a pedagoga, os professores dos Anos Finais, a coordenação pedagógica, a orientação, a direção e a Secretaria de Educação.
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