Amanhã a babá não trabalha.
Amanhã a babá não trabalha
Nas coberturas à beira–mar, a vida segue, porque o sangue derramado não mancha o piso de mármore
Amanhã a babá não trabalha.
Talvez o motorista também falte.
E, por algumas horas, os moradores dos condomínios de luxo do Rio de Janeiro talvez percebam – não o luto, mas o incômodo logístico – causado pela chacina de hoje. Mais de cem pessoas mortas nas favelas. Quatro policiais também. A tragédia é noticiada em letras minúsculas. Nas coberturas à beira–mar, a vida segue, porque o sangue derramado não mancha o piso de mármore.
A favela sangra, e o país finge normalidade.
A ONU se disse horrorizada com a letalidade da operação, mas o Estado brasileiro parece anestesiado pela crença perversa de que “combate ao tráfico” é sinônimo de “licença para matar”.
O discurso oficial fala em “segurança pública”. A Constituição, no artigo 144, também fala: diz que a segurança é dever do Estado e direito de todos, e que sua finalidade é proteger pessoas e patrimônio.
Mas, nas vielas, o que se protege é o medo. E o que se patrimonializa é a morte.
É nas favelas que a polícia entra atirando, e é nas favelas que o Estado faz o luto coletivo parecer rotina.
Mas é nos condomínios de luxo que o crime se recicla, se financia, se protege.
As grandes apreensões de armas, as investigações de lavagem de dinheiro, as conexões entre milícias e políticos não se dão nas lajes, estão nos andares altos, nas contas bancárias discretas, nos contratos públicos e privados que alimentam a engrenagem.
O dinheiro do tráfico tem endereço fiscal, não geográfico.
E quase nunca esse endereço é uma favela.
A Constituição garante, no artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e que a vida é inviolável.
Mas o Estado escolhe quem é “todos” e quem é exceção.
Há brasileiros com direito à investigação e brasileiros com direito à bala.
Há territórios onde o Estado só chega quando decide matar.
E há outros, protegidos por muros e blindagens, onde ele nunca ousa entrar.
Chamar de “operação policial” o que é uma execução coletiva é um eufemismo que serve para limpar a consciência de quem aperta o gatilho e de quem o financia.
A elite brasileira segue acreditando que a violência é um problema de quem morre, não de quem lucra com o medo.
E, por isso, amanhã a babá não trabalha, e talvez isso gere algum desconforto.
Mas ninguém perguntará o nome das mulheres mortas, das crianças traumatizadas, dos corpos que desapareceram entre helicópteros e blindados.
O Estado que mata não é apenas violento, é inconstitucional.
Fere o artigo 1º, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.
Viola o artigo 3º, que impõe a erradicação da pobreza e da marginalização como objetivo nacional.
E trai o artigo 5º, que garante a inviolabilidade da vida.
Cada incursão militar nas favelas é, juridicamente, uma suspensão temporária da Constituição.
É o Estado declarando guerra contra parte de seu próprio povo.
O Brasil é um país onde a desigualdade tem endereço e a morte tem CEP.
Enquanto o asfalto debate “segurança”, o morro enterra filhos.
Enquanto a elite posta indignação seletiva nas redes sociais, mães de periferia lavam o chão do sangue.
O que se chama de “combate ao tráfico” é, na prática, o combate à favela.
E o verdadeiro tráfico, o de armas, de influência, de dinheiro público, permanece intocado, protegido por sobrenomes e escritórios de advocacia de alto padrão.
Amanhã a babá não trabalha.
E talvez, no incômodo passageiro de quem terá de levar os próprios filhos à escola, o Brasil perceba o que sempre se recusou a enxergar: a vida na favela vale menos porque o Estado assim decidiu.
E enquanto não decidirmos o contrário, não haverá Constituição que nos salve da barbárie.
Thaís Cremasco é advogada especializada em Gênero e Saúde da Mulher pela Universidade de Stanford (EUA) e Direito do Trabalho e Previdenciário. É coordenadora do Núcleo de Violência contra a Mulher da OAB/SP, presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Campinas e cofundadora do Mulheres pela Justiça.
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