Anistia e negacionismo
Anistia e negacionismo histórico
O negaciosismo serve para esconder que anistias tiveram como efeito, ao longo da história, deixar livre o caminho para que golpistas voltassem a atentar contra a democracia
A anistia ampla, geral e irrestrita, que deveria ser sinônimo de memória e justiça, passou a ser a anistia do "esquecimento" e da "reconciliação" - (crédito: Caio Gomez)
Lucas Pedretti — historiador, doutor em sociologia e coordenador da Coalizão por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia; Rodrigo Lentz — Advogado, doutor em ciência política, pesquisador do Instituto Tricontinental e Conselheiro da Comissão Nacional de Anistia Política (MDHC).
Há poucos dias, este jornal publicou artigo em que um general do Exército defendia a anistia como um instrumento político e jurídico fundamental na história brasileira. A partir de exemplos históricos que demonstrariam como as sucessivas anistias teriam aberto caminho para uma solução pacífica dos conflitos, o general defendeu, então, a anistia aos acusados pelo 8 de Janeiro.
O texto não surpreende. Afinal, anistias foram instrumentos historicamente usados por oficiais militares para garantir a própria impunidade. Também produziram o esquecimento coletivo e a própria naturalização de seus crimes. Aliás, o mesmo general, ministro da Saúde de Bolsonaro, até hoje não foi responsabilizado pela tragédia que vivemos naqueles anos, a despeito de ter sido indiciado pela CPI da Covid do Senado Federal.
O mantra da caserna de um Duque de Caxias "pacificador" ignora uma folha corrida de massacres, da Guerra do Paraguai às rebeliões regenciais. O espírito de "reconciliação" de Caxias talvez só tenha existido frente aos escravocratas que lideraram a Farroupilha, destinando aos Lanceiros Negros o Massacre de Porongos. Ali, sua ação contrastou com a resposta dada pelo militar às revoltas populares como a Cabanagem e a Balaiada, que resultou em dezenas de milhares de mortos.
A ideia de que a repressão à "Intentona" Comunista de 1935 foi a forma de "evitar um maior esgarçamento do tecido social" chega a ser inacreditável. Em 1937, uma grande fake news produzida por um tal capitão Mourão (não o amigo do general, mas Olímpio Mourão Filho) fomentou o anticomunismo do Exército para legitimar o golpe e a ditadura do Estado Novo, com brutal repressão. A anistia veio quase uma década depois, não sem antes deixar um enorme saldo de torturados e mortos. O exemplo também ignora que o Partido Comunista ficou proscrito por quase todo o século 20. Será que o general aceitaria igual destino para seu atual partido, em nome da "reconciliação nacional"?
Por fim, a ideia de que a anistia de 1979 foi ampla, geral e irrestrita é uma falsificação histórica das mais grosseiras. Essa foi a palavra de ordem construída pela sociedade civil a partir de meados dos anos 1970, por meio da qual os Comitês Brasileiros pela Anistia demandavam não apenas a volta dos exilados e a liberdade dos presos políticos, mas também memória, verdade, reparação e, principalmente, justiça em relação aos mortos e desaparecidos. Figueiredo, o último dos generais ditadores, veio à público repetidas vezes afirmar que os militares jamais aceitariam uma anistia ampla, geral e irrestrita. Mas, ao notar que a luta crescia na sociedade, a ditadura mudou de estratégia. Ao invés de recusar a demanda, ela impôs os próprios termos para a anistia, invertendo completamente os sentidos daquela bandeira popular.
A anistia ampla, geral e irrestrita, que deveria ser sinônimo de memória e justiça, passou a ser a anistia do "esquecimento" e da "reconciliação", que eram, na verdade, sinônimos de impunidade. De fato, esse é o sentido fundamental da lei imposta pelo regime em 1979, por meio de um Congresso ainda sob seu estrito controle: garantir que os torturadores e assassinos de Rubens Paiva e de milhares de outros brasileiros saíssem impunes pelos crimes que cometeram, ao mesmo tempo em que mantinha excluídos dos benefícios diversos militantes ainda presos.
O negacionismo que já conhecíamos em relação às vacinas transforma-se em negacionismo histórico. E reforça o diagnóstico de que nas escolas militares se ensina mitologia ao invés de historiografia. Em verdade, esse negacionismo serve para esconder que anistias tiveram como efeito, ao longo da história, deixar livre o caminho para que golpistas voltassem a atentar contra a democracia. Caso militares golpistas tivessem sido responsabilizados na primeira metade do século 20, possivelmente não teríamos vivido uma ditadura de mais de 20 anos.
E caso os responsáveis por essa ditadura não tivessem sido anistiados em 1979, o deputado federal cujo ídolo é um torturador dificilmente teria chegado à Presidência da República. Assim, poderíamos ter evitado muitos episódios que, ao longo dos últimos anos, demonstraram que a farda tem sido vista, pelos próprios militares, como uma garantia de não responsabilização.
Estamos, portanto, diante de uma encruzilhada histórica. Ou rompemos com o ciclo de impunidade que marca nossa história ou estaremos permanentemente ameaçados pelo risco do retorno ao autoritarismo, com a ascensão de torturadores e negacionistas ao poder."
(Lucas Pedretti — historiador, doutor em sociologia e coordenador da Coalizão por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia;
Rodrigo Lentz — Advogado, doutor em ciência política, pesquisador do Instituto Tricontinental e Conselheiro da Comissão Nacional de Anistia Política(MDHC).
Fonte:https://www.facebook.com/joao.teixeiralopes.5
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"Nos ataques do 8/1, o edifício-sede do Supremo Tribunal Federal foi o mais destruído entre as sedes dos Três Poderes.
Em resposta, a então presidenta do STF, Rosa Weber, disse pisando ainda sobre os destroços que o tribunal estaria pronto para a abertura do ano judiciário poucas semanas depois, no dia 1º de fevereiro de 2023. E assim foi, num esforço para demonstrar força, resiliência, diante da tentativa de golpe de Estado.
Outro esforço neste sentido veio um pouco mais tarde, com o lançamento pelo STF da campanha Democracia Inabalada, que incluiu um documentário com o mesmo nome.
“A gente se viu aqui com três mil, quatro mil pessoas chegando no Supremo Tribunal Federal. E a gente viu que existia um treinamento e uma coordenação entre eles. A gente tá falando de pessoas que tinham escudos para se proteger de elastômero, que são balas de borracha, vários utilizando máscara contra gás, que a gente utilizava gás contra eles, e diversas outras atitudes que eles tomaram, de conhecimentos de certos locais do Supremo Tribunal Federal, que nos fazem ter a certeza de que eles têm um treinamento diferenciado e que eles vieram com planejamento feito para poder invadir as três casas dos poderes”, disse no documentário o secretário de segurança do STF, Marcelo Schettino.
Também no documentário, o diretor-geral do STF, Miguel Piazzi, contou que no 8/1, quando os voluntários civis de Bolsonaro e do bolsogolpismo militar começaram a atacar o STF, ele mandou um segurança correr até o anexo II do prédio do Supremo para arrancar as placas de identificação dos gabinetes dos ministros, "em razão de provável alvo do ministro x ou do ministro y".
Sabemos bem quem era o x, o y e o z.
Há - e já havia ali - um ponto de convergência entre as percepções de golpistas e democratas deste país: não fosse a presença de Alexandre de Moraes no STF, dificilmente a reação ao golpismo, desde antes do 8/1, teria o mesmo nível de vigor que ora desemboca no início do julgamento de Jair Bolsonaro e altos comparsas, neste 25 de março de 2025, dia de começar a tirar da cara deles aquele risinho cínico de nós.
(A presença de Moraes no STF, ela mesma, é fruto direto de um golpe de Estado, o que só reforça a conhecida tese do talento extraordinário do roteirista do Brasil. Mas isso hoje é isso mesmo: só um parêntese).
“Tire esse risinho da cara!”, fala grosso, grita um um assistente do promotor Richard Scruggs, numa cena de tribunal do filme O informante, quando um advogado das tabaqueiras - as embusteiras e assassinas tabaqueiras -, desdenha da tentativa do Estado do Mississippi de levá-las ao tribunal.
A ameaça de outra anistia ainda paira sobre o Brasil, mas nesta terça-feira, daqui a pouco, as placas de identificação dos ministros estarão em seus devidos lugares na tribuna da 1ª Turma do STF.
Hoje é dia daquele risinho chorar.
Publicado no Come Ananás. Link nos comentários."
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