Anotações sobre a conjuntura
Anotações sobre a conjuntura – Parte I
ANOTAÇÕES SOBRE A CONJUNTURA E A POLÍTICA EDUCACIONAL
Luiz Carlos de Freitas[1]
A questão que propomos examinar neste texto cruza dois campos de estudo: por um lado, estamos interessados na conjuntura socioeconômica que afeta a política educacional em curso; e por outro, nos interessa examinar os desafios que esta política educacional coloca para a educação e para a formação do magistério.
Este último aspecto, a formação do magistério, inclui uma crítica das finalidades educativas que estão sendo impostas pelo sistema-mundo do capital, em meio à sua crise sem precedentes e, em contraposição, demanda uma análise de quais são as nossas finalidades educativas destinadas a enfrentar esta ofensiva[2], contribuindo, desde a educação, para, em primeiro lugar, pensar a organização escolar que precisamos para desenvolver estas nossas finalidades, e em segundo lugar, pensar qual formação deve ser construída com o magistério para que ele possa efetivar tanto as finalidades, como a organização escolar derivada delas.[3]
Sobre a formação do magistério, pensamos que há consenso de que ela não se dá em um vácuo social e, ainda que com menos consenso, pensamos que ela também não se dá no campo das utopias e nem sob o manto de um vago “esperançar”. Há uma luta substantiva acontecendo agora e é impossível pensar a educação fora desta luta, pela simples razão de que os estudantes, em sua vivência extraescolar, já fazem parte desta – mesmo que o magistério não queira ou não possa reconhecê-la.
Pensando neste percurso – finalidades, organização do trabalho escolar e formação do magistério, nesta ordem -, tentaremos construir nossa reflexão na interface entre a conjuntura pretendida pela ofensiva do capital e as possibilidades de contra-regulação orientadas por finalidades educativas opostas, que atendem aos interesses das camadas exploradas da sociedade, disputando tanto a forma como o conteúdo da escola, o que permite, por este caminho, também esclarecer qual é o magistério que necessitamos desenvolver para enfrentar esta tarefa.
Independente de quanto consigamos avançar no curto tempo que temos nesta live, e independente até mesmo do próprio acerto de nossas considerações específicas, é importante guardarmos esta rota de desenvolvimento, ou seja: qual finalidade educativa? Qual organização de escola? E qual magistério formar?
Vale a pena enfatizar, então, que do ponto de vista da formação e desenvolvimento do magistério, definir as finalidades educativas – como um contraponto da ofensiva do capital – e pensar a organização da escola em consonância com tais finalidades, são pré-requisitos essenciais para se poder construir a formação do magistério com a qualidade social que nos interessa.
No entanto, é bom insistir, aqui só podemos fornecer apontamentos, pois a configuração desta trajetória não é algo que possa ser dado apenas a partir das universidades ou dos órgãos oficiais responsáveis pela educação, por mais que estes possam e devam ajudar, mas é feita em articulação com os coletivos mais amplos no interior das lutas dos movimentos sociais, pois é ali que se apreendem os ideais e as necessidades de libertação das classes exploradas.
Como dizia Krupskaya[4], a construção da nova escola é uma tarefa coletiva do magistério, em sintonia com as agruras e expectativas das classes exploradas e em contraposição às finalidades educativas postas pelo capital, as quais usualmente preparam a juventude para ser apenas mão de obra eficiente no interior das relações sociais vigentes.
Este é o âmbito das preocupações aqui reunidas e que estão divididas em três partes: o agravamento do cenário político e da crise do capital; os impactos desde cenário na educação com a configuração de um “neotecnicismo digital” imerso em um padrão sócio-político meritocrático; e por fim, a necessidade de se ensaiar, ainda que como contra-regulação, outro padrão sócio-político orientado por outras finalidades educativas, reposicionando tanto a forma como o conteúdo da organização escolar, o que deve permitir pelo menos visualizar a formação que necessitamos para o magistério.
1. Agravamento do cenário político e da crise do capital
Não se pode examinar nosso cenário político, sem levar em conta o agravamento global da crise do capital que é um fator de condicionamento deste cenário local.
Fazemos esta observação, aparentemente óbvia, porque nos preocupa, neste momento, a fala de alguns economistas à esquerda que estão situando as dificuldades socioeconômicas pelas quais passamos como um problema predominantemente da conjuntura nacional e que poderia, portanto, ser resolvido com ações locais, ignorando que, em parte, tais problemas têm origem na própria crise do capital e só serão de fato equacionados com a substituição da atual forma de organização social.
Sem colocar em cena este fator desestabilizador, nos comprometemos com a produção de resultados que dificilmente poderão ser obtidos, aumentando o grau de decepção com a política, o que favorece, a médio prazo, o fortalecimento do populismo da direita autoritária e seus radicalismos de ocasião contra o Estado e a própria política.[5] Uma população explorada e necessitada de soluções que são permanentemente adiadas, pode se seduzir pelos arroubos autoritários e conservadores.[6] Promessas irreais podem até ganhar eleições, mas podem ser, também, a antessala de um populismo de direita, como estamos vivendo hoje no Brasil, em associação com o neoliberalismo.
É certo que somente um governo à esquerda pode e deve colocar atenção na diminuição do sofrimento da classe trabalhadora, mas minimizar a brutal crise do capital desmobiliza os trabalhadores para o enfrentamento de uma longa batalha que é fruto dos problemas sistêmicos pelos quais passamos. Neste cenário, só podemos entender um governo de esquerda se ele tem um forte componente de mobilização que pelo menos denuncie as reais fontes do sofrimento da população.
Como bem aponta Michael Roberts[7], esta crise tem, agora, um elemento agregado: a crise geopolítica, a qual se soma à já existente crise ambiental.
Tanto a crise ambiental como a geopolítica são derivadas da mãe de todas as crises: a crise estrutural do capital que atinge diretamente a vida do trabalhador. Estes são os elementos desestabilizadores que estão promovendo uma mudança em profundidade da “ordem mundial”, neste exato momento.
A crise geopolítica é um novo estágio da disputa pela hegemonia mundial, marcada por dois acontecimentos recentes: a declaração conjunta de cooperação Rússia-China que impulsiona a organização dos países da Eurásia, e o segundo acontecimento, a operação militar na Ucrânia.
Um novo desenho geopolítico está sendo construído tendo por base a quebra da hegemonia global unipolar americana, a qual tenta se recompor puxando a Europa para junto de si, através da criação da figura de uma suposta “ameaça russa” à Europa, em reação à configuração de polos de hegemonia alternativos. Não devemos imaginar que a hegemonia americana sairá de cena sem cobrar, se necessário, altos custos para o planeta.
Quando Arrighi[8], na década de 90, reafirmou sua análise de que a hegemonia americana estava em sua fase final, se viu a risadinha escondida de alguns “sábios” que afirmavam ser isso apenas catastrofismo marxista. A história está mostrando, neste minuto, que Arrighi tinha razão. Wallerstein, certamente, veria nesta situação atual os primeiros sinais de um novo sistema-mundo – acrescido de sua sábia advertência de que este novo sistema não será necessariamente melhor do que o que temos hoje, na dependência do que fizermos para interferir em seu desenvolvimento.
Faço este breve apontamento sobre a gravidade da situação geopolítica para sinalizar a grande responsabilidade que temos nas decisões políticas internas que estaremos tomando em relação à política nacional, e tomo por base o alerta de Mészáros[9] também formulado em meados da década de 90, mas que continua atual:
“O que hoje estamos vivendo – escrevia ele – não é apenas uma crescente polarização – inerente à crise estrutural global do capitalismo atual – mas, igualmente, o que multiplica os riscos de explosão, o colapso de uma série de válvulas de segurança que cumpriam o papel vital de perpetuação da sociedade de mercado” (p. 48).
E continuava mais adiante:
“Consequentemente a crise que enfrentamos não se reduz simplesmente a uma crise política, mas trata-se da crise estrutural geral das instituições capitalistas de controle social na sua totalidade. Aqui cabe assinalar que as instituições do capitalismo são inerentemente violentas e agressivas: são edificadas sobre a premissa fundamental que prescreve a “guerra, se fracassam os métodos “normais”.
[1] Texto preliminar para discussão, baseado em live proferida em programação da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação – ANFOPE – em 28/03/2022. Reprodução autorizada.
[2] E que não se restringem a um debate intra-escolar, pois trata-se do interesse público mais amplo.
[3] Seguimos, aqui, o caminho desenvolvido por Viktor N. Shulgin (1924) Fundamentos da Educação Social. Moscou. (Tradução no prelo pela Editora Expressão Popular).
[4] Krupskaya, N. (2017) A construção da pedagogia socialista. (São Paulo: Expressão Popular) Orgs: Luiz Carlos de Freitas e Roseli Salete Caldart.
[5] Eatwell, R, and Goodwin, M. (2018) National Populism: the revolt against liberal democracy. Penguin Books.
[6] Norris, P. and Inglehart, R. (2019) Cultural Backlash: Trump, Brexit and Authoritarian Populism. New York: Cambridge Univeresity Press
[7] Roberts, M. (2022) The three contradictions of the Long Depression. Acessível em https://thenextrecession.wordpress.com/2022/03/13/the-three-contradictions-of-the-long-depression/
[8] Arrighi, G. (1996) O longo século XX. Ed. Contraponto/Unesp.
[9] Mészáros, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Ed. Boitempo.
Parte II
A dimensão 1 diz respeito à lógica do capital que, como advertia Schumpeter nos idos da década de 40, terá problemas não pelo seu fracasso, mas pelo seu próprio “sucesso”.
Esta lógica direciona a humanidade para o objetivo de ganhar dinheiro para ganhar mais dinheiro, indefinidamente, e nenhum sistema social pode operar por acumulação permanente sem destruir os seres humanos e o ambiente.
A dimensão 2, refere-se à contradição estrutural entre o aumento do capital investido em tecnologia mais sofisticada na produção, e a consequente redução do capital investido em mão de obra, a qual é substituída por novas tecnologias, gerando menos postos de trabalho ou postos mais simplificados e mais baratos – como mostrou Marx[1] – mas que a longo prazo produzem uma queda tendencial nas taxas médias globais de lucro, que pode ser adiada se fatores contrariantes forem acionados, mas que não pode ser postergada para sempre[2].
Isso se deve a que é o trabalho vivo que pode gerar valor e as tecnologias disponíveis têm em seu interior trabalho morto, materializado em hardware ou software, e diminuem ou precarizam a participação do trabalho vivo na produção. A competição e a pressão pela acumulação permanente de valor, acelera esta mudança na composição orgânica do capital.
Para se perpetuar, o capital é obrigado, então, a pôr em marcha uma série de medidas que contrariem esta tendência à queda das taxas médias globais de lucro, entre as quais, para os nossos propósitos, destacam-se: a intensificação do trabalho; a imposição de salários mais baixos; a superpopulação de trabalhadores desempregados ou subempregados disponíveis para trabalhar por salários menores – enfim a precarização extrema da força de trabalho.
Para além das polêmicas que esta dimensão gera[3], o que importa destacar aqui é que tais ações de sobrevida, no entanto, acabam por aumentar as crises sociais e carregam alto poder de mobilização social.
Note-se, então, que a introdução de novas tecnologia no processo de trabalho é uma necessidade intrínseca às crises do capitalismo. É pela introdução de novas tecnologias que ele impulsiona a economia e reduz temporariamente o impacto das crises. Em contraposição, na outra ponta, aumentam as contradições sociais, a miséria, os conflitos sociais e, com isso, as possibilidades de mobilização social. Isso explica, em boa medida, as alianças que estamos assistindo entre o neoliberalismo e os conservadores, com a finalidade de segurar as mobilizações. Desde o século XIX o capital recorre à aliança com os conservadores quando se encontra em apuros.[4]
Esta crise também se manifesta na superprodução acumulada: precarização e baixos salários permitem mais lucro, mas diminuem o poder de compra dos trabalhadores e o seu consumo e geram endividamento e queda na demanda; maiores salários, porém, aquecem a demanda e aumentam o consumo, mas derrubam os lucros e favorecem o movimento dos trabalhadores por melhores condições de trabalho.
Não é razoável supor que a área da educação não sofrerá, portanto, o assédio de novas tecnologias – especialmente à medida que vai sendo ampliada a privatização da educação. Igualmente, também não é razoável supor que a educação passará incólume ao longo dos conflitos sociais que crescerão.
A dimensão 3, refere-se ao papel do Estado, o qual, pelo menos até recentemente, era chamado a intervir para prover alguma compensação à permanente exploração a que os trabalhadores são submetidos.
Tratava-se de aliviar as tensões sociais. No entanto, mesmo o pouco que se fez nestes momentos, acabou por levar a um aumento dos custos fiscais decorrentes desta estratégia, agravado pelo baixo desempenho do capital global.[5]
O esgotamento da social democracia que exercia este papel em alternância com o neoliberalismo, criou nova contradição: uma maior inclusão aumentava o tamanho do Estado e exigia mais impostos, derrubando a competitividade e os lucros.
O inverso, a não inclusão, diminuía o Estado, reduzia impostos, permitia atender às demandas capitalistas, mas gerava mais conflito social, em um quadro em que o capitalismo precarizava constantemente a força de trabalho a cada inovação tecnológica que introduzia para postergar suas crises.
A “corrida para o mais barato” implicou em externalização de custos, desoneração do capital e diminuição de impostos, desregulamentação de mercados, o que é incompatível com financiar a inclusão.
Isso significa que a pressão para a diminuição do Estado redefinirá o papel do Estado e o próprio conceito de democracia, à medida que a crise avance. Haverá uma tendência a oficializar, pela meritocracia, a naturalização da exclusão social e isso também atingirá a área da educação.
A dimensão 4, diz respeito aos danos que o capital faz à ecologia global pelo processo de acumulação ilimitado e pela externalização crescente do custo ambiental. Aqui, nosso tempo acabou e as ações necessárias são emergenciais. À medida que a acumulação cresce, cresce igualmente o garimpo de matérias primas, a mineração, a extenuação da terra por fertilizantes, o desmatamento, entre outras agressões sistemáticas à natureza.[6]
Finalmente, a dimensão 5, é uma decorrência da dimensão 2, uma crise na própria geração de valor, e aponta para as consequências da introdução da inteligência artificial e das novas tecnologias. Randal Collins[7] põe em evidência a crise de empregos, agora na classe média, em virtude da inteligência artificial e dos robôs.
A introdução de IA e a robotização também atingirão a educação de forma generalizada com diminuição de postos de trabalho e rotinização de atividades.[8]
Do conjunto desta crise, derivam-se certas reações e movimentos no campo político:
1. A radicalização da proposta sócio-política neoliberal[9] em substituição ao liberalismo centrista que emergiu no século XIX[10] e a popularização de um liberalismo mais radical ainda, conhecido como libertarianismo[11] que propõe a liquidação completa do Estado e a inserção direta das atividades humanas em processos concorrenciais plenos.
Em meio à crise, por ora, a estratégia tem sido, por um lado, empurrar as crises para frente e, por outro, blindar as elites dos efeitos financeiros e políticos destas, através do restabelecimento das teses do liberalismo clássico[12], fortalecendo um contrato social meritocrático, construído dentro de uma lógica que tem sido chamada de neoliberal, e cujas bases foram lançadas nos anos 20 do século passado no entre guerras e tornaram-se hegemônicas nos anos 70[13]. Este caminho, depois de 40 anos nos países centrais, não tem conseguido equacionar os problemas contemporâneos do capital[14].
2. O segundo efeito diz respeito ao fortalecimento das vertentes do conservadorismo que visualizam, na crise do liberalismo[15], possibilidades de retomar suas teses, e se estruturam ao redor do mundo (taticamente em aliança com o neoliberalismo/libertarianismo) com acesso a governos importantes.[16]
Uma aliança de ocasião, eleitoral, entre conservadores e neoliberais tem garantido capacidade política para obliterar o avanço de propostas alternativas ao neoliberalismo e ao próprio capital.
3. O terceiro efeito diz respeito ao desenvolvimento de um horizonte negativo com o fortalecimento do movimento pós-moderno, que ao recusar os projetos históricos disponíveis para combater o capital, remove a categoria da contradição, e cria um vazio que favorece a ocupação do espaço político pelo conservadorismo pós-moderno[17].
O movimento pós-moderno foca a atenção nas consequências culturais da crise do liberalismo, no “fim da verdade” e no “relativismo”, deixando de fora da análise as causas estruturantes da própria crise do capital. A direita conservadora aprendeu bem.
Temos que cobrar dos fundadores do movimento pós-moderno a destruição ou desconstrução da verdade, que agora vemos se transformar em narrativas circunstanciais, quando não em recorrentes fake news.
4. O quarto efeito, este mais promissor, é o aumento do interesse na compreensão das crises cíclicas e estruturais do sistema do capital, um renovado interesse nos estudos de Marx e uma reavaliação de projetos sociais alternativos ao capital, especialmente as teses socialistas.
Neste cenário, a educação tem seu papel estratégico reforçado e é disputada como instância formadora da juventude. Dois conceitos básicos devem comandar a ofensiva pelo lado neoliberal/libertariano na educação: o neotecnicismo digital e a meritocracia.
Pelo lado conservador, a agenda avança, como se sabe, com a implementação da escola cívico-militar para disciplinar áreas mais pobres, combate ao que chamam ideologia de gênero e implementação de versões do movimento escola sem partido.
As duas agendas constituem o maior cerco já visto sobre a escola, mas vamos nos concentrar aqui na agenda neoliberal, que tem maior alcance e poder destrutivo.
[1] Marx, K. (1984) O Capital. Vol. III, tomo 1. Ed. Abril Cultural.
[2] Ver Michael Roberts (2022) disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2022/01/22/a-world-rate-of-profit-important-new-evidence/ disponível também em português em https://eleuterioprado.blog/2022/03/27/uma-taxa-de-lucro-mundial-novas-evidencias/; Carchedi, G. and Roberts, M. (2018) World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket Books; Roberts, M. (2016) The Long Depression. Chicago: Haymarket Books.
[3] Harvey, D. (2019). Teoria da crise e a queda da taxa de lucro. Geografares(28), 15-35. Acesso em 5 de outubro de 2021, disponível em https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/24381/16649; Roberts, M. (2019). Monocausalidade e teoria da crise: uma resposta a David Harvey. Geografares, 36-54. Acesso em 5 de outubro de 2021, disponível em https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/24382/16650
[4] Ver Wallerstein, I. (2011) The modern Word-system IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914. Berkeley: University of California Press.
[5] Carchedi, G. and Roberts, M. (2018) World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket Books. Prado, E. (2022) A estagnação e o futuro da economia capitalista no Brasil. Disponível em https://eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/
[6] Cunha, D. A natureza da “contradição em processo”. Disponível em www.sinaldemenos.org – Ano 10(13), 2019.
[7] Wallerstein, I.; Collins, R.; Mann, M.; Derluguian, G. and Calhoun, C. (2013) Does Capitalism have a future? New York: Oxford University Press.
[8] Uma formação exigente e elevada para o magistério associada à defesa de uma escola que restringe o uso de plataformas on line, poderá proteger ou dificultar a desqualificação e consequente desprofissionalização. A Base Nacional de Formação da ANFOPE é um elemento central nesta luta contra a desqualificação do magistério que tenderá a serampliada pelo ensino híbrido.
[9] Ver Biebricher, T. (2018) The political theory of Neoliberalism. Stanford: Stanford University Press.
[10] Wallerstein, I. (2011) The modern Word-system IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914. Berkeley: University of California Press.
[11] Ver Rothbard, M. (2006) For a New Liberty. Alabama: Ludwig von Mises Institute.
[12] Apesar da discordância de alguns pós-modernos que insistem em “uma nova razão do mundo”, é o próprio articulador da proposta neoliberal, Ludwig von Mises (ver Mises, Liberalismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises do Brasil, 2010) quem reafirma o liberalismo clássico como fundamento do neoliberalismo.
[13] Ver Slobodian, Q. (2018) Globalists: the end of the empire and the birth of neoliberalism. Cambridge: Harvard Univesity Press. Já há tradução no Brasil.
[14] Ver Michael Roberts disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2022/01/22/a-world-rate-of-profit-important-new-evidence/
[15] Deneen, P. (2019) Why Liberalism failed. New Haven and London: Yale University Press. (Há tradução em português.)
[16] Norris, P. and Inglehart, R. (2019) Cultural Backlash: Trump, Brexit and Authoritarian Populism. New York: Cambridge Univeresity Press; Teitelbaum, B. (2020) Guerra pela eternidade: o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Campinas: Ed. Unicamp.
[17] McManus, M. (2020) What is post-modern conservatism? Essays on our hugely tremendous times. UK: Zero Books; McManus, M. (2020) The rise of post-modern conservatism: neoliberalism, post-modern culture and reactionary politics. Vancouver: Palgrave Macmillan.
Parte III
Nos anos 80 a pedagogia capitalista se constituiu predominantemente como um tecnicismo que nas palavras de Saviani[1] visava subordinar o magistério aos processos e métodos de ensino e suas finalidades educativas.
O impacto do neoliberalismo nos países centrais introduziu um refinamento neste controle descrito por Saviani.
Uma nova versão do tecnicismo preservava a padronização e ampliava o controle através da predominância da avaliação externa de larga escala, implementada a partir de uma teoria em que o magistério e a escola eram responsabilizados de fora do sistema educacional pelos resultados de aprendizagem. Esta transferência para um controle externo, potencializava os controles já existentes no interior da escola. No início dos anos 90, chamei esta versão de neotecnicismo.
Atualmente, este neotecnicismo atinge seu nível mais avançado, agora em sua versão digital, virtualizando e ampliando este controle sobre o magistério e os estudantes, apoiando-se nas mudanças no mundo do trabalho que mercantilizaram as próprias relações sociais[2], inclusive a relação professor-aluno, hoje mediadas por tecnologias de informação e comunicação, tendo agora como horizonte as finalidades educativas meritocráticas do neoliberalismo.
Estas modificações foram aceleradas pela pandemia, mas viriam com ou sem pandemia, pois são uma exigência da fase atual do capital que tem sido chamado de “capitalismo de plataformas”.
Temos então os dois núcleos conceituais que deveremos enfrentar na tarefa de criação de um padrão sócio-político alternativo:
– por um lado, está o avanço de um “neotecnicismo digital” que combina a teoria da responsabilização por metas com a teoria da escolha pública. Juntas essas duas teorias reformulam os espaços educativos: a primeira, apoiando-se no controle pela avaliação e agora, com novas tecnologias de informação e comunicação, amplia o controle sobre os objetivos, conteúdos e processos educativos, incorporando no trabalho pedagógico as mudanças que a crise do capitalismo vai impondo ao mundo do trabalho em geral – inclusive a virtualização dos processos; a segunda, coloca em marcha processos de privatização da educação (por dentro ou desde fora) com vistas a retirar a educação do âmbito do Estado e colocá-la nas mãos ideologicamente seguras do empresariado, além de expandir mercado.
– por outro lado, além deste núcleo conceitual do neotecnicismo digital, temos ainda o núcleo da meritocracia que impõe finalidades educativas oriundas do padrão sócio-político neoliberal, onde o indivíduo é colocado como o gestor da sua própria acumulação de competências e habilidades, com as quais deve se apresentar ao mercado concorrencial. Com esse objetivo, aparecem as “disciplinas” que procuram “ajudar” os jovens a se transformarem em supostos “empreendedores” como se eles fizessem parte dos ganhadores do sistema e não fossem, de fato, trabalhadores precarizados. Com isso, tentam apagar sua origem de classe.
Colocando de uma forma mais ampliada, temos:
1. O projeto neoliberal (em aliança com conservadores) que está em curso, propõe romper o contrato social que até agora previa compensar, pela inclusão social, as mazelas da exploração do capitalismo, responsáveis pela desigualdade social.
Em seu lugar, acuado pelas crises, propõe introduzir na formação da juventude, a lógica da concorrência e da meritocracia, estabelecendo que, de agora em diante, cada um é responsável por si mesmo, hegemonizando outra justificativa social – ou seja, a justificativa da meritocracia, entendida como uma hierarquia social construída pelo acúmulo de mérito pessoal.[3]
Este contrato neoliberal, contrapondo-se a uma visão social da liberdade, privatiza a liberdade como um fenômeno pessoal e individual, não sendo relevante se as demais pessoas são ou não igualmente livres. Nega-se a liberdade como um fenômeno social, coletivo e emancipatório. Como consequência, nesta visão, não há sociedade, mas sim indivíduos jogando o jogo da vida – empreendedores e jogadores oportunistas em bolsas de valores -, como se todos fossem “sócios de um empreendimento” – a própria vida. Uma sociedade na qual todos “participam” segundo seu próprio mérito e sorte.
Frente às crises constantes do capital e às possibilidades crescentes de desemprego e de subemprego, o projeto permite que as elites blindem os melhores e mais significativos postos de trabalho para si, criando uma exigência meritocrática que somente elas, as elites, reúnem as condições socioeconômicas necessárias para cumprir[4]. Com isso, restringem a mobilidade social e explicam a desigualdade social como opção pessoal ou “falta de empenho”.
Constrói-se na juventude, dessa forma, a ideia de que cada um é responsável por si mesmo, minando a própria ideia de um Estado inclusivo e, pelo oposto, fortalecendo a ideia de um Estado mínimo para o social e máximo para o capital – cria-se uma ambiência social de violência e de vale tudo concorrencial.
2. Para implementar este contrato social meritocrático, articulado com as novas demandas do mundo do trabalho, é preciso criar uma nova materialidade nas escolas, fortalecendo as teses educacionais neotecnicistas que levam a uma ampliação do controle técnico e político da escola, fazendo uso da adição de tecnologias da informação e da comunicação disponíveis (p. ex. ensino híbrido). Isso conduz à introdução de plataformas de aprendizagem e sistemas informatizados de armazenamento de dados e controle.
Este movimento que atende, como vimos, à necessidade de lidar com as contradições do capital elevando a produtividade pela introdução de tecnologia e ampliando mercado, vai na esteira da mercantilização da própria “sociabilidade” em geral[5], agora também mediada por tecnologia, sob controle de grandes corporações transnacionais – as big techs.
Nas palavras de Huws[6] mais aspectos da vida são agora incluídos no mercado, ou pelos menos aqueles aspectos que interessam para gerar lucro, e que antes se encontravam fora dele. Isso inclui “a biologia, arte e cultura, serviços públicos e a sociabilidade” (p.7).
Neste processo de mudança, “os trabalhadores criativos foram convertidos em “produtores de conteúdo” (p. 8). E continua: “A colonização da sociabilidade pelo mercado não só gerou uma nova fonte de lucro, mas também penetrou na estrutura da vida social [das pessoas], minando a base da futura solidariedade.” (p. 11)
Huws acrescenta que “a comunicação social agora envolve, com efeito, o pagamento de um dízimo a essas empresas [que fazem a mediação tecnológica] por parte de todas as pessoas ao redor do mundo que tenha um contrato de telefone celular ou uma conexão à internet em casa – um número que continua a crescer exponencialmente” (p. 13).
Como salienta Weiner[7]:
“[As alterações globais] no trabalho dos trabalhadores culturais e do conhecimento e aqueles do serviço público envolvem: a intensificação ampliada do trabalho; a diminuição da autonomia e da criatividade; a padronização dos processos de trabalho; e pressão para se “desempenhar de acordo com padrões cada vez mais rigorosos estabelecidos de cima para baixo, definidos em termos de protocolos, metas de desempenho e padrões de qualidade” (Huws, 2014, p. 40)”.
É de extrema importância que enfrentemos este padrão sócio-político que pretende tornar-se hegemônico. A crise estrutural escala um ponto extremamente perigoso para a humanidade.[8] A perspectiva de fragmentação da globalização em meio a uma crise estrutural onde as taxas de lucro são declinantes mesmo com os remédios do neoliberalismo[9], e onde a principal hegemonia está sendo desafiada, pode aprofundar a crise estrutural com consequências imprevisíveis e um custo social impagável, com o capital apelando para projetos autoritários que prolonguem sua vida.
O tamanho da crise estrutural já obriga os neoliberais a uma aliança com conservadores de todos os matizes, inclusive grupos de extrema-direita, com a finalidade de conter o crescimento da insatisfação entre aqueles atingidos pelas crises e tenta redefinir o centro político em uma “social-democracia de direita”, protegendo as reformas neoliberais em um novo “centro político”. Mas este novo “centro” é obtido com a inclusão da extrema direita no cenário político.
Pensamos que à radicalização do projeto do capital, deve corresponder uma radicalização de um projeto alternativo que nos conduza à construção não apenas de um pós-capitalismo, mas, como assinala Mészáros[10], a uma era superadora do próprio capital. E isso terá que passar pelo aprofundamento das teses socialistas a partir das experiências históricas que já dispomos. No entanto, este não é o nosso tema aqui.
A questão que temos que nos colocar, agora, é bem mais modesta. Compreendido o padrão sócio-político da coalisão conservadora/neoliberal, qual o padrão sócio-político que podemos exercitar nas escolas como contra-regulação, tanto no campo da formação da juventude, como da formação do magistério?
[1] Saviani, D. (1983). Escola e democracia. São Paulo: Cortez Ed./Autores Associados.
[2] Huws, U. (2014). Labor in the global digital economy. New York: Monthly Review Press.
[3] Sandel, M. J. (2020) A tirania do mérito: o que aconteceu ao bem comum? Rio: Civilização Brasileira.
[4] Markovits, D. (2019) The meritocracy trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the middle class, and devours the elite. New York: Penguin Press. Há tradução disponível.
[5] Huws, U. (2014). Labor in the global digital economy. New York: Monthly Review Press.
[6] Huws, U. (2014) Idem.
[7] Weiner, L. (2021) Heads up! Chins down! Resisting the New Bipartisan Neoliberal Project in Education. New Politics. Disponível em https://newpol.org/heads-up-chins-down-resisting-the-new-bipartisan-neoliberal-project-in-education/
[8] Streeck, W. (2016). How will capitalism end? Essays on a failing system. London: Verso.
[9] Ver Michael Roberts (2022) disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2022/01/22/a-world-rate-of-profit-important-new-evidence/ disponível também em português em https://eleuterioprado.blog/2022/03/27/uma-taxa-de-lucro-mundial-novas-evidencias/
[10] Mészáros, I. (2011) Para além do Capital. São Paulo: Boitempo.
Parte IV
Não é raro ouvirmos a afirmação de que devemos desenvolver uma educação que tenha qualidade social. A questão dessa afirmação é que disso ninguém discorda, nem mesmo os neoliberais. Isso nos obriga a diferenciar o que entendemos por qualidade social daquela pretendida pelos neoliberais/conservadores?
Preliminarmente, para aclarar nossa posição, é importante delimitar que, como consequência de reconhecermos que a educação não ocorre em um vácuo social, entendemos ser pouco definir qualidade social a partir de um debate focado apenas no reconhecimento/acolhimento do outro, partindo de um paradigma abstrato que confronta o humano/desumano que não identifica a origem da desumanidade. Este discurso centrado no reconhecimento já foi incorporado pela terceira via neoliberal à sua maneira (de Clinton até Blair, passando por Obama e chegando agora a Biden) e já teve sua crítica muito bem formulada pela sociologia inglesa e americana[1].
Rejeita-se também partir da ideia de uma biopolítica respaldada por um biopoder, pois, como bem aponta Rancière[2], este modelo de análise subordina a política ao poder: “A política não é o exercício do poder. A política deve definir-se em seus próprios termos como um modo específico de atuar que é posto em prática por um sujeito específico e que tem sua própria racionalidade. É a relação política o que permite pensar o sujeito da política e não o contrário” (p. 51).
Se o poder é o campo da violência que imobiliza, a política, no entanto, está no campo da intersubjetividade[3], portanto está aberta à contra-regulação, e em nosso entendimento, para além dos micro-poderes.
A crítica de Habermas[4] é ilustrativa dos impactos dos estudos pós-modernos: “Foucault resiste ao convite para tomar partido; escarnece do “dogma esquerdista” que toma o poder pelo mal, o feio, o estéril e o morto – “e aquilo sobre o qual o poder se exerce, pelo bom, genuíno e rico”. Não há para ele nenhum ‘lado certo’” (p. 394-5). E continua Habermas: “[Foucault] está certo de que uma análise axiologicamente neutra de forças e fraquezas do adversário é útil para aquele que quer assumir a luta – mas por que, em princípio, lutar? Por que a luta é preferível à submissão? Por que resistir à dominação?” (p. 397).
Também não concordamos com deduzir nossas finalidades educativas a partir de uma mera inversão de sentido das políticas neoliberais em curso, procurando “democratizar” processos originalmente pensados para implementar a exclusão meritocrática.
Finalmente, é igualmente insuficiente construirmos nossas finalidades a partir de um paradigma de inclusão, sem que se faça uma crítica mais aprofundada das finalidades do ato de incluir, especialmente porque também há uma inclusão via mercado, defendida na ótica neoliberal: incluir para explorar, incluir meritocraticamente.
É preciso ir além disso. Estas teses, sem sua inserção crítica na lógica perversa do capital, serão presas fáceis do que Fraser[5] chama de “neoliberalismo progressista”.
De onde partir então?
Pensamos que defender uma educação com qualidade social em nosso tempo é ter como horizonte a construção de um novo padrão sócio-político que mobilize a sociedade em direção a uma sociedade pós-capital.
Não haverá qualidade social sob o capital. Portanto, no entendimento do que seja “qualidade social”, a palavra-chave é “social”. É ela que qualifica a qualidade. Mas ela não é neutra. Isso significa que a qualidade social deve ganhar sentido como compreensão e superação das relações sociais vigentes, na compreensão das implicações éticas e filosóficas destas relações sociais portadoras de desigualdades objetivas.
Vale dizer que são as relações entre as pessoas as portadoras de sentidos de humanização ou desumanização, são portadoras de reconhecimento ou de exclusão, pois tais relações expressam o próprio processo de produção da vida.[6] Portanto, esclarecer as relações sociais vigentes (e sua mutação histórica) é essencial, não só como uma dialética substantiva, mas inseridas em um projeto histórico de superação.
Neste sentido, o acesso à ciência social é fundamental para este entendimento e não podemos, em nome de não “influenciar” as classes oprimidas, continuar a sonegar-lhes o conhecimento acreditando que vão, espontaneamente, desenvolver uma crítica científica da realidade – a menos que, à moda pós-moderna, desqualifiquemos a própria ciência e mergulhemos no negacionismo, convencidos de que todo conhecimento está comprometido pelo poder.[7] O mais provável, por este caminho, é que fiquemos todos ao sabor de fake news da propaganda hegemônica vigente, ou pior ainda, da resignação religiosa.
Qualidade social da educação, então, deve significar uma crítica das atuais relações sociais e uma avaliação de sua capacidade para construir um horizonte em que se vislumbre mais humanização. E dada a impossibilidade das atuais relações sociais irem além da exploração dos seres humanos e da natureza, isso significa, por oposição, lutar e construir novas relações entre as pessoas que radicalizem a igualdade e a democracia para além do capital e para além da democracia liberal vigente, incapazes de produzir mais humanização.
Humanização, portanto, não é uma categoria abstrata, mas é o exercício concreto de humanidade que se dá na organização da vida material para além do reconhecimento do outro e da diversidade e que conforma as relações entre as pessoas. A fonte de desumanização contemporânea está nas relações sociais que sustentam a geração de valor sob o capital, sempre relações de exploração e dominação.
Sem a superação do capital, não há humanidade possível, entendida esta como a humanização coletiva. Portanto, falar em qualidade social mais humana sem identificar a origem da desumanidade nas próprias relações sociais capitalistas, não indica qual o alvo de luta e nem as formas de luta. É preciso assumir que as lutas atuais são, então, lutas anticapitalistas, lutas pelo esgotamento e superação das relações sociais desumanizadoras criadas pela vida sob o capital – incluídas aí as desigualdades de gênero, de classe, de raça entre outras. É neste campo que a definição das finalidades da educação que nos interessam têm que ser colocadas.
As consequências disso para a educação são claras. Ou seja, uma educação com qualidade social é aquela que – guiando-se por uma matriz formativa mais ampla, que inclui o acesso ao conhecimento acumulado e portanto às ciências e às artes, e guiando-se igualmente pela crítica da organização interna das escolas (que na escola atual reproduz os princípios da organização social verticalizada) – é uma qualidade social que prepara as lutas por uma sociedade de outro tipo, onde a igualdade e uma democracia de tipo superior, portanto baseada na participação e construção coletivas, apontam para um tipo de vida para além da geração e acumulação de valor ilimitado e desigual, e ensaiam novas relações sociais superadoras da era do capital, nos limites possíveis da luta.
É isso que queremos dizer quando afirmamos que uma discussão sobre as finalidades da educação envolve sempre decisões políticas. Para que queremos formar a juventude? Para se adaptar bem às relações sociais vigentes, ou para superá-las? Se para superá-las, em que direção? Quais relações sociais permitem a superação da desumanização imposta pela era do capital?
Educar com qualidade social, então, para além do necessário domínio do conhecimento das ciências e das artes, é permitir que os estudantes possam construir uma crítica das relações sociais vigentes e participar durante sua formação do exercício de vivência de relações sociais contra-reguladoras, contra-hegemônicas, com forte ancoragem no trabalho coletivo e na participação.
É este debate que o neoliberalismo quer obliterar com as Bases Nacionais Curriculares e os conservadores querem paralisar com o movimento “escola sem partido” e a militarização de escolas – prescientes que são do tamanho da crise em que o capital está mergulhado e que pode conduzir à sua superação.
Portanto, nosso padrão sócio-político deve incluir experiências que levem os estudantes a saber se auto-organizar pessoal e coletivamente em função de pautas coletivas, contrariando a meritocracia e o individualismo vigentes nas escolas de hoje e que dão sustentação às relações sociais vigentes. E isso terá que ser feito apesar do ensino híbrido individualista e do controle a que o magistério está sendo submetido. Estas são as condições atuais de luta.
Como propõe Viktor Shulgin[8], uma educação com qualidade social forma estudantes que saibam lutar por uma outra sociedade mas, ao mesmo tempo, saibam também preparar-se para construí-la.
Com Shulgin, pensamos que se teremos cada vez mais lutas pela frente, então, em primeiro lugar, devemos formar lutadores. Mas a luta, como ele diz, é uma contingência amarga e não nosso desejo. Portanto, quem luta, deve também saber construir, construir o novo a partir de novas finalidades para a vida, o que implica em formar lutadores e construtores a partir dos ideais de libertação das classes oprimidas.
[1] Ver sobre isso: Oliveira, S. B. (2019) O papel da confiança interpessoal e institucional nos processos participativos de avaliação da qualidade da escola pública. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da UNICAMP. Ver também a nota 5, abaixo.
[2] Rancière, J. (2019). Disenso. Ensayos sobre estética y política. México: Fondo de Cultura Económica.
[3] Ver Habermas, J. (2002). O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes.
[4] Ver Habermas, idem.
[5] Fraser, N. (2019). O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária.
[6] Rubin, I. I. (1980) A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense.
[7] Ver Habermas, J. (2002). O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes.
[8] Shulgin, V. N. (1924) Fundamentos da Educação Social. Moscou. (Tradução no prelo pela Editora Expressão Popular).
Isso abre a possibilidade para uma relação educacional na qual aprendemos com as classes exploradas seus ideais de libertação, ou seja, em nosso entendimento, um diálogo que permite conhecer e vivenciar, como também diria Shulgin, os anseios de libertação da classe explorada, sua visão de mundo e, nesta relação de troca, garantir-lhes também o acesso ao conhecimento historicamente acumulado que, geração traz geração, foi sonegado a elas para que permanecessem privadas de ferramentas culturais e científicas que ajudassem o revolucionamento de sua condição. É para isso que precisamos da escola e de seu magistério.
Mas para cumprir esta finalidade, a escola precisa inserir-se na atualidade[1], conectar-se à realidade social em toda sua amplitude. Não é por outra razão que Paulo Freire pesquisava, antes, o universo cultural daqueles com quem dialogaria – algo muitas vezes ausente quando se fala de seus ensinamentos.
Para conduzir esta luta, no entanto, não basta reconhecer o outro, fazer guerrilha gramatical, clamar pela diversidade, ou procurar dar um novo sentido “democrático” às políticas neoliberais/conservadoras. Não. Como aponta Moisey Pistrak[2], é necessário que o processo educacional permita que a juventude “compreenda, em primeiro lugar, em que está a essência do processo de luta (…); em segundo, que lugar a classe oprimida ocupa nesta luta; em terceiro, qual o lugar que deve ser ocupado por cada adolescente nesta luta; em quarto, saber conduzir esta luta no seu próprio espaço e ao desembaraçar-se dela, saber ocupar seu lugar na construção do novo edifício.”
Penso que estas finalidades educativas – contrárias às finalidades atuais que levam nosso jovem a se adaptar ao existente – devem propiciar:
– uma organização educacional que, baseada no domínio do conhecimento acumulado e em uma análise crítica da atualidade vivida pelo jovem, também leve a uma apreensão de seus anseios e necessidades de libertação, inserindo a atividade da escola na crítica da própria atualidade;
– mas deve igualmente permitir o desenvolvimento da auto-organização dos jovens tanto pessoal como coletiva e à proximidade com a crítica do trabalho na nossa sociedade, abrindo as possibilidades de sua superação por novas formas de organização social.
Se queremos que a juventude seja construtora de novas relações é preciso que ela saiba auto-organizar-se pessoal e coletivamente. E é por isso que a organização da escola atual teme que os alunos se organizem, se unam, aprendam a trabalhar coletivamente. Mais seguro é fornecer-lhes a educação on line, individualizada e de preferência em casa.
Importante assinar que uma escola construída segundo estas finalidades inclui, e ao mesmo tempo, vai além do domínio do conhecimento historicamente acumulado e só pode ser pensada como um processo de luta que envolve o magistério e os estudantes na redefinição de seus processos de gestão e educação. Encontramos este tipo de escola sendo ensaiada nos movimentos sociais – especialmente o MST.[3]
Estes são, portanto, nossos horizontes estratégicos. Obviamente, cada escola terá que dimensionar os passos que pode dar nesta direção, de acordo com suas próprias forças.
E é para esta finalidade e para esta escola que devemos pensar como devemos formar um magistério que esteja em condições de preparar lutadores e construtores de um futuro alternativo para a humanidade. A Base Nacional de Formação da ANFOPE[4] e seu acúmulo histórico de debates é um bom começo. Ela se constitui em um importante instrumento para conter a desqualificação e a desprofissionalização do magistério que o reduz a meros administradores de rotinas algoritmizadas em plataformas de aprendizagem on line.
Quais os obstáculos que enfrentamos para desenvolver esta qualidade social? Muitos. O principal, penso, nós já estamos vivenciando agora: à medida que o capital se sinta ameaçado pelas contradições inevitáveis que vai desenvolvendo, vai apelar mais e mais para a radicalização de suas teses e para o autoritarismo. Vai ativar suas milícias e fazer aliança com forças conservadoras e até neonazistas.
Temos que criar formas de romper o aprisionamento a que foram submetidas as escolas. Pelas Bases Nacionais Curriculares do Conselho Nacional de Educação, foi determinado detalhadamente o que deve ser ensinado para que não se corra o risco de ensinar mais do que as classes dominantes precisam para gerenciar seus interesses. E para completar a tarefa, foi determinado também como deve ser a formação do magistério, para que não se corra o risco de que este venha a ser mais bem formado do que precisaria ser e acabe indo além do que se espera dele.
E, parafraseando novamente Shulgin, foram colocados dois “soldados” nas escolas para vigiar o que lá ocorre: o soldado dos céus – o conservadorismo que pretende falar em nome de deus – e o soldado da terra – as bases nacionais comuns neoliberais, seus processos de inclusão meritocráticos e, agora, o ensino híbrido.
Estamos diante do maior cerco político e técnico à escola, motivado pela atual fase vivida pelo capital e que deverá se arrastar em meio a crises.[5] É preciso que nos preparemos e não que nos acalmemos a partir de visões abstratas e utópicas. Teremos uma luta dura e longa que pode ser mais difícil ou mais fácil na dependência de quem ocupar o Estado nos próximos anos.
Tenho consciência de que tais temas podem ser incômodos. Inclusive porque quando estas análises são feitas, elas causam uma reação defensiva nas pessoas: alguém dirá que isso não acontece linearmente, que haverá resistência e que isso é muito negativista. Prefiro dizer, com Wallerstein, que é realista – nem otimista, nem pessimista.
E sim vai haver, melhor, já há resistência, mas só haverá resistência eficaz se (1) conhecermos quem são nossos inimigos; (2) levarmos a sério a extensão da crise; e (3) se dispusermos de lutadores que, além de lutar, possam participar da construção de novos horizontes.
E essa é a finalidade de uma educação com qualidade social no nosso tempo. E como esta será uma longa luta, será preciso que sejamos substituídos nesta luta pelos jovens e que estes se disponham a correr os riscos de lutar para abrir espaço e poder construir o novo.
Nunca estivemos em uma posição tão propícia para pensarmos um novo rumo para a humanidade. Nisso reside o otimismo que devemos ter, e não na relativização da crise, pois a relativização só nos desarma.
Baixe o texto integral aqui.
[1] Shulgin, V. (1924) Fundamentos da Educação Social. Moscou (No prelo pela Expressão Popular).
[2] Pistrak, M. (2018) Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular.
[3] Caldart, R. S. e outros (2014) Escola em Movimento. São Paulo: Expressão Popular.
[4] ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação. http://www.anfope.org.br/
[5] Streeck, W. (2016). How will capitalism end? Essays on a failing system. London: Verso.