Arquitetura do Dinheiro Mundial
A Nova Arquitetura do Dinheiro Mundial
24/07/2025
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A supremacia global do dólar norte-americano tem resistido às transformações do sistema financeiro internacional. No entanto, a emergência das moedas digitais soberanas (CBDCs), a disputa tecnológica entre grandes potências, e o uso geopolítico do sistema monetário colocam em xeque os pilares dessa hegemonia.
Ao analisar criticamente cinco obras recentes sobre o tema, com foco em King Dollar (2025), de Paul Blustein, contrastando sua tese com autores como Eswar Prasad, Barry Eichengreen e W. McDowell, discutirei as implicações para o Brasil e os países do Sul Global diante os desafios da digitalização financeira e à reconfiguração das reservas internacionais.
Em King Dollar: The Past and Future of the World’s Dominant Currency, Paul Blustein reitera o argumento da resiliência do dólar baseada em fundamentos estruturais: liquidez, profundidade dos mercados financeiros, Estado de Direito e poder militar. Blustein rebate os diagnósticos recorrentes de colapso do dólar e aponta a dominância ser resultado, não apenas de poder coercitivo, mas de “escolha racional” dos agentes econômicos diante da ausência de alternativas viáveis.
Entretanto, sua análise minimiza o risco político e institucional interno dos EUA, como a erosão da independência do Fed ou a politização das sanções. Ao tratar moedas digitais e criptoativos como fenômenos periféricos ou desorganizados, Blustein mantém um viés institucionalista liberal e possivelmente subestima as transformações de longo prazo.
Autores como Eswar Prasad, em The Currency Cold War (2020) e The Future of Money (2021), propõem um cenário mais dinâmico e competitivo, onde as moedas digitais estatais (CBDCs) se tornam instrumentos de disputa geopolítica. Prasad analisa o avanço do yuan digital como parte da estratégia chinesa de reduzir sua dependência do dólar, ao mesmo tempo em busca de ampliar sua influência no comércio sul-sul por meio de redes alternativas de pagamento como o CIPS.
W. McDowell, em Globalizing the Yuan (2021), complementa essa visão destacando o uso do RMB em acordos bilaterais com países do BRICS e a formação de um ecossistema financeiro paralelo, ainda limitado, mas promissor.
Para esses autores, a hegemonia do dólar não está em colapso iminente, mas sua legitimidade está sendo corroída por múltiplos vetores: instabilidade fiscal americana, abuso de sanções, e fragmentação tecnológica.
No clássico The Exorbitant Privilege (2011), Barry Eichengreen argumenta o dólar reinar por falta de concorrência efetiva, mas esse privilégio se torna um fardo: déficits gêmeos crônicos e perda de credibilidade estão levando a uma substituição lenta, mas inexorável.
Eichengreen aponta as alternativas como o euro, o yuan ou mesmo os Direitos Especiais de Saque (SDRs) do FMI dependerem mais de arquitetura institucional global em vez de inovações tecnológicas — uma lição relevante para o Sul Global.
No contexto brasileiro, essas reflexões ganham relevância à luz da recente proposta de uma moeda comum para o comércio do BRICS, do debate sobre uso do real em acordos bilaterais e da participação em redes alternativas de pagamentos.
A hegemonia do dólar impõe ao Brasil custos em forma de vulnerabilidade cambial, indexação financeira e exposição às sanções unilaterais dos EUA. No entanto, o país carece de um projeto soberano de inserção monetária, limitando-se à função de exportador de commodities dolarizadas.
Com o avanço da digitalização, a emergência do Drex (real digital), o crescimento dos datacenters e o uso de IA financeira, o Brasil se vê diante de um paradoxo: adotar as inovações promovidas por big techs do Norte ou apostar em um modelo de infraestrutura digital soberana, em coordenação com parceiros do Sul Global?
Há alternativas reais ou são miragens tecnológicas? King Dollar nos alerta, com razão, para a força persistente do dólar. Mas a convergência dos argumentos de Prasad, McDowell e Eichengreen sugere o futuro da moeda global será menos dominado por um império único e mais marcado por competição regulatória, infraestruturas digitais estatais e redes financeiras regionais.
O Brasil pode se tornar coadjuvante passivo ou protagonista moderado. Para isso, precisará repensar sua política cambial, seu modelo de reservas e, sobretudo, sua posição frente à digitalização assimétrica do sistema financeiro internacional.
Vale então fazer uma análise aprofundada do capítulo de King Dollar de Paul Blustein onde examina como a combinação de déficit crescente, erosão do Estado de Direito e uso abusivo de sanções e tarifas sob Trump pode, a médio prazo, abalar a confiança global no dólar como moeda hegemônica no comércio internacional.
Blustein retoma o Dilema de Triffin: “a necessidade dos EUA de incorrer em déficits para fornecer liquidez global gera vulnerabilidades estruturais”. Com o endividamento do país ultrapassando US$ 34 trilhões, em 2024, cresce o receio de investidores externos exigirem prêmios mais altos para comprar Treasuries — reduzindo a atratividade da dívida americana e, por extensão, do próprio dólar.
Embora o dólar ainda se mantenha como porto seguro, devido à liquidez única de seus mercados, o excesso de déficits tem capacidade de forçar ajustes. Eles têm potencial de minar sua estabilidade.
Nos Estados Unidos, observa-se uma erosão institucional no Estado de Direito, inclusive pela diagnóstico de vulnerabilidade. “A maioria das pessoas provavelmente não considera o Brasil um líder em inovação financeira. Mas a economia política do Brasil é claramente muito diferente da nossa — por exemplo, eles realmente julgam ex-presidentes quando tentam anular eleições”, escreveu Paul Krugman, Nobel de Economia em 2008.
Para Blustein, a integridade institucional é pilar da confiança global no dólar. A politização da Justiça dos EUA, a interferência na independência do Fed e a instrumentalização das sanções corroem essa base. Ele afirma: se investidores estrangeiros deixarem de confiar na imparcialidade dos tribunais americanos, poderão vender ativos em dólares e acelerar uma crise séria da moeda americana.
As sanções e o uso de tarifas como arma são catalisadores da desdolarização. Blustein dedica parte substantiva de seu livro ao uso do dólar como arma geoeconômica — especialmente sob Trump.
Sanções amplas e tarifas punitivas reforçam a percepção de o dólar servir menos como meio neutro de comércio e mais como instrumento coercitivo. Isso motiva países como Rússia, Irã e membros do BRICS a desenvolverem alternativas — pagamentos em moedas locais, redes como CIPS e SPFS, ou até criptomoedas e ouro digital.
Blustein argumenta que o dólar permanece robusto hoje — e mesmo após Trump 1.0 e 2.0, sua hegemonia se mantém. Mas alertas sérios surgem: a combinação de déficits crescentes mais erosão institucional mais abuso do poder monetário, tudo isso pode corroer a sustentação da confiança internacional.
O dólar pode persistir no limiar crítico da confiança, mas também se enfraquecer gradualmente até ser substituído por um regime monetário multipolar, formado por diversas moedas seguras, inclusive alternativas digitais, funcionando como refúgio durante crises. Será um processo lento, mas sustentável.
O que isso significa para o Brasil e o Sul Global?
A dependência exclusiva do dólar expõe países como o Brasil a vulnerabilidades: sanções indiretas, tarifaços diretos, flutuações cambiais e inflação importada.
A diversificação de reservas (como aponta o FMI) já está em curso: entre 1999 e 2021, a participação do dólar caiu de ~71% para 59%, e parte migrou para o renminbi e outras moedas menores.
Em resposta às sanções e tarifas coercitivas, países do BRICS vêm articulando alternativas como pagamentos bilaterais em moedas locais, redes paralelas (CIPS, SPFS) e até CBDCs.
Embora estabilização digital (tokenized deposits) seja uma via de fortalecimento do dollar-system, o abuso contínuo do poder monetário acelerará a busca por modelos alternativos, inevitáveis em médio prazo.
Blustein, portanto, alerta quanto ao “reino do dólar” não ser eterno se seus fundamentos forem deteriorados por dentro. A combinação de déficit fiscal elevado, perda da independência institucional e uso arbitrário das sanções pode abalar a confiança global mesmo antes de surgir um rival monetário coeso.
Esse cenário impõe ao Brasil e ao Sul Global um desafio estratégico: investir em sistemas financeiros alternativos, apostar na digitalização soberana, incluindo moeda digital e infraestrutura. Cabe fortalecer cooperações no BRICS para mitigar riscos e garantir autonomia monetária no século XXI.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: Reprodução
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