As (contra)reformas do ensino médio
As (contra)reformas do ensino médio e os impactos na docência
Por Gabriel Grabowski / Publicado em 5 de agosto de 2024
No dia 31 de julho de 2024 o Presidente Lula sancionou – com alguns vetos – a Lei nº 14.945 que alterou novamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) com novas diretrizes para o ensino médio.
Esta nova lei revoga alguns dispositivos na LDBN que foram introduzidas pela MP º 746/2016, transformada em lei nº 13.415/2017, que gerou muitas críticas e resistência no meio educacional durantes estes últimos 8 anos.
A nova lei restabelece as 2.400 horas para a Formação Geral Básica (FGB) dos estudantes e retoma disciplinas obrigatórias, em todos os anos, como: português, inglês, artes, educação física, matemática, ciências da natureza (biologia, física e química) e ciências humanas (filosofia, geografia, história, sociologia).
O estudo de Espanhol ficou facultativo. As demais 600 horas serão destinadas aos Itinerários Formativos (IF), inclusive a oferta de cursos técnicos de nível médio.
Desde a aprovação da LDB em 1996, nestes longos 28 anos, inúmeras modificações foram sendo introduzidas nestas diretrizes, sendo o ensino médio que mais sofreu tentativas de reformulação, a cada ciclo de governos.
De grande impacto sobre as escolas e seus sujeitos (estudantes e professores), cabe especial atenção para a reforma atualmente em rediscussão e disputas acirradas.
Contudo, uma certeza se evidencia, ou seja, as (contra)reformas no ensino médio são portadoras de impactos na qualidade da educação básica, na vida e sonho dos estudantes e, na destruição da carreira docente na esfera pública estatal.
O presidente vetou, também, as mudanças no Enem aprovadas pela Câmara dos Deputados, mantendo as provas ancoradas à formação geral básica que todos os estudantes do país reivindicam em nome da igualdade de condições e direitos.
Enquanto alguns avaliam o veto do Enem como uma estratégia de fragilização dos itinerários formativos, visto que não serão avaliados nas provas, pesquisadores da educação, como Daniel Cara (USP), entendem que a decisão foi correta.
O professor Daniel Cara argumenta que a “prova é nacional, portanto, precisa ser pautada no que é comum. É uma questão de justiça e, inclusive, uma questão constitucional: o direito à educação é nacional e é preciso ter igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
Portanto, o ingresso à Universidade precisa ser feito com a maior isonomia possível”. E questiona, por exemplo, como seria feita a organização das questões da prova dos IF já que cada rede de ensino tem autonomia para definir seus itinerários?
“Um Enem com a parte diversificada seria uma injustiça por definição: os itinerários de qual rede estadual prevaleceriam?”, pergunta Daniel Cara.
Entidades, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) criticam que os privatistas impuseram nesta nova lei mais uma derrota à educação pública deixando mais distante o Brasil encontrar a rota definitiva para a inclusão social de seu povo, com dignidade.
A CNTE cita, também, os atropelos regimentais nos processos de votação, propositalmente conduzidos pelo presidente da Casa, dep. Arthur Lira (PP/AL), a Câmara dos Deputados aprovou um parecer muito próximo da MP nº 746/2016, que deu origem a nefasta reforma do Novo Ensino Médio no governo do golpista Michel Temer.
O coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade: entre conquistas coletivas e mudanças não realizadas veio a público manifestar preocupação e indignação com o texto aprovado pelo Congresso Nacional, especialmente no que tange:
– a não garantia da predominância de oferta do Ensino Médio Integrado nos Institutos Federais (IFs);
– a oferta de ensino presencial mediada por tecnologias ou na modalidade EaD; a manutenção do notório saber para a docência; a ausência da língua espanhola como componente curricular obrigatório;
– a possibilidade de oferta de parte da carga horária do ensino médio por instituições privadas;
– o estímulo ao trabalho precoce a partir possibilidade de validar horas de trabalho como carga horária letiva;
– e a existência de carga horária diferenciada na FGB para os ensinos médios técnico e propedêutico (o primeiro com 300 horas a menos).
Este mesmo coletivo reafirma que um projeto de nação alicerçado no desenvolvimento social, econômico e cultural do seu povo, na superação das desigualdades sociais e educacionais, sustentável e soberano, demanda a construção de uma escola pública à altura. Não será privando os/as estudantes do pleno acesso ao conhecimento científico e a uma formação ética e estética que assegure o direito à educação de qualidade que construiremos uma sociedade livre, plural e democrática.
Impactos na docência
O tema da carga horária da FGB e dos Itinerários Formativos (IF) na reforma do novo ensino médio despertou uma disputa e mobilização dos reformistas, dos congressistas e por representantes de fundações/institutos empresariais que tentaram, ao longo de todo o processo legislativo (trabalhando nos bastidores), reduzir a carga horária das disciplinas básicas dos estudantes brasileiros. Por quê? Qual é o verdadeiro interesse que está em jogo?
Um interesse é histórico que se expressa na dualidade educacional brasileira: uma formação propedêutica de qualidade para uma parcela dos filhos da elite brasileira e, uma formação e qualificação de segunda classe inferior para a grande maioria das juventudes populares.
Por meio das escolas particulares e algumas poucas ilhas de escolas nas redes públicas tais objetivos são atingidos, mantendo a grande maioria de estudantes (85% das matrículas) em redes e escolas sem as condições básicas para o desenvolvimento de uma aprendizagem e oferta de educação com qualidade.
Cabe relembrar que a reforma do novo ensino médio foi imposta por uma medida provisória no concomitante com um conjunto de outras reformas administrativas de interesse do empresariado com a redução do tamanho e capacidade do Estado brasileiro: PEC 095/2016 do teto de gastos sociais (novo regime fiscal), impondo limites investimentos nas área sociais; reforma previdenciária; reforma trabalhista (flexibilização contratações temporárias e a intermitência), entre outras medidas tomadas pelo então governo Temer (2016-2018).
Com a flexibilização curricular em 40% do currículo no ensino médio, por meio dos itinerários formativos de qualquer natureza, parcerias, EaD, certificação competências, validação de estágios e experiências de trabalho e “notório saber”, ficou evidenciado que maior objetivo da reforma do ensino médio é reduzir o tamanho da participação do estado e de seus investimentos em educação pública de qualidade, precarizando a carreira docente, reduzindo o quantitativo de professores efetivos nas diversas redes pública e, travando a realização de concursos públicos e/ou não efetivando das nomeações quando realizados os processos seletivos. Vejamos alguns exemplos a seguir:
Recente diagnóstico divulgado pela ONG Todos pela Educação e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), revelam que de 2013 a 2023 o quantitativo de docentes temporários nas redes estaduais se tornou majoritária, passando de 31,1% para 51,6%.
Nas redes municipais, ainda são minoria de 34%, porém seu número aumentou para 47% a partir de 2020, exatamente quando se iniciou a implementação da BNCC nos municípios.
Aproximadamente seis a cada dez cidades do país estão há mais de cinco anos sem realizar concurso público para contratar professores para as escolas municipais.
Esta baixa frequência de concursos deixas as instituições escolares, sobretudo nas regiões vulneráveis, sem profissionais com formação adequada para trabalhar na sala de aula e um contingente docentes formados sem emprego.
A maior rede de ensino do Brasil, com mais de 3 milhões de alunos, o estado de São Paulo, precursor na implementação do Novo Ensino Médio, tem mais de 162 mil professores, sendo 50,7% com contratos temporários.
Agora intensifica o uso de tecnologia nas escolas para reduzir a “interferência dos professores” e prioriza as escolas cívico-militares com salários superiores ao dos professores formados e efetivos.
No Ceará, estado “referência” para os reformistas e privatistas (fundações e institutos empresariais), de acordo com o painel de monitoramento do PNE, do governo federal, a situação dos docentes na rede pública cearense era em 2023 de: Rede Federal: dos 1.432 professores, 94,4% são efetivos; Rede Estadual: dos 19 mil professores, 41,4% são efetivos; Rede Municipal: dos 69 mil professores, 56,1% são efetivos, com um Total de 87 mil professores, 54,2% são efetivos.
Ou seja, no Ceará, a realidade é que a cada 100 professores das escolas públicas, 54 são concursados e outros 46 estão em outros regimes de contratação.
No Estado do Rio Grande do Sul, de acordo com a terceira edição do Observatório da Educação Pública no RS (2023) da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, ocorreu uma significativa redução de 57,7% no número de professores efetivos no magistério estadual ao longo de 16 anos.
Os dados apresentados indicam uma queda drástica, passando de 74.163 matrículas em 2006 para 31.309 em 2022. Depois de 10 anos sem concurso na área da educação, o Governo do Estado lançou Edital do Concurso Público para professores e professoras, contemplando somente 1.500 vagas.
O pretenso déficit dos sistemas previdenciários dos servidores públicos, agravado pelo envelhecimento da população, e os orçamentos engessados tendem a dificultar a contratação de efetivos. Por outro lado, a profissão docente exige valorização e bons salários; no mundo desenvolvido, isso é norma.
No Brasil, a BNCC e a reforma do novo ensino médio, em suas várias versões, com seus itinerários, visam, também, destruir a carreira docente e a dignidade dos profissionais da educação.
O apagão docente e o desinteresse dos jovens pela profissão professor não é um acaso, é um projeto das reformas empresariais na educação, operados pela nova direita conservadora, com velhas ideias.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
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