Companhia das Letras / Divulgação
"O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, é um dos livros brasileiros mais aclamados pela crítica nos últimos anos.   Companhia das Letras / Divulgação

O livro O Avesso da Pele (2020), de Jeferson Tenório, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance em 2021, causou incômodo em uma escola de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo.

Diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, Janaina Venzon fez um vídeo em que reclama de palavras utilizadas na obra entregue no fim do ano passado à instituição. Ela retirou os exemplares da biblioteca. A postura foi endossada pela 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) da Secretaria Estadual de Educação (Seduc): em ofício assinado pelo coordenador Luiz Ricardo Pinho de Moura, é solicitada a retirada do livro das bibliotecas e que a obra não seja disponibilizada aos estudantes.

 A editora Companhia das Letras e o próprio autor, patrono da Feira do Livro de Porto Alegre na edição de 2020, tratam o caso como censura (leia nota ao final do texto).

Segundo Janaina, cerca de 200 exemplares de O Avesso da Pele chegaram à escola Ernesto Alves em dezembro de 2023, com a finalidade de serem trabalhados em sala de aula. A entrega foi realizada pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), que distribui obras didáticas e literárias às escolas públicas, a pedido das próprias instituições. 

Ao perceber que algumas páginas de O Avesso da Pele continham palavras que definem órgãos sexuais e se referem a relações íntimas, Janaina Venzon se revoltou e publicou, na sexta-feira (1°), vídeo em que critica o "vocabulário de tão baixo nível" da obra. Na postagem, também pediu que o Ministério da Educação buscasse os exemplares enviados à escola. 

Ela disse ter recebido orientação do titular da 6ª Coordenadoria Regional de Educação, Luiz Ricardo Pinho de Moura, para recolher os livros da biblioteca da instituição e os manter sob seus cuidados até que a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) se posicionasse.

— Os livros estavam na biblioteca, ainda embalados, porque os professores fariam um trabalho com o livro. Agora, estão em uma sala ao lado da biblioteca que nós temos. Já que meu coordenador pediu para retirar, retiramos — disse Janaina a GZH

Em entrevista ao portal Gaz, Luiz Ricardo Pinho de Moura confirmou que orientou a retirada do livro das bibliotecas escolares da região até que a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) se posicionasse. 

— Encaminhamos para as nossas escolas que estes livros fossem deixados sob os poderes da direção, que fossem retirados das bibliotecas escolares, até que se tivesse um posicionamento do que fazer e como gerenciar estes livros — disse o titular da 6ª CRE ao jornal de Santa Cruz do Sul. 

A Seduc, contudo, negou que tenha havido qualquer orientação da coordenadoria regional para recolher os livros. "Os livros não foram retirados e não houve nenhuma orientação da Coordenadoria Regional para nenhum recolhimento", respondeu à reportagem de GZH. A pasta também reiterou que a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas. Acionado pela reportagem de GZH, Moura disse que não poderia conversar e que o assunto seria tratado pela Seduc. 

"A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) informa que a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas, conforme priorização de faixa etária dos alunos, etapa de ensino, realização de projetos pedagógicos e contextualização prévia do material trabalhado em sala de aula com as turmas", diz a nota da Seduc. A diretora, entretanto, encaminhou à reportagem um ofício assinado por Luiz Ricardo Pinho de Moura em que orienta que a obra seja retirada das bibliotecas.

 

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Documento do dia 1º de março que mostra o pedido para que "O Avesso da Pele" não seja disponibilizado para bibliotecas e escolas. Reprodução / Reprodução

O documento que comprova a escolha de O Avesso da Pele pela Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira está disponível no Sistema Integrado de Monitoramento do Ministério da Educação e aberto ao público. No arquivo, consta o nome da diretora Janaina Venzon e a data do pedido, em novembro de 2022. Ela diz que não solicitou a obra diretamente e que procura entender com as supervisoras da escola quem teria feito o pedido. 

Reprodução / MEC
Reprodução do documento que mostra a solicitação da obra pela escola Ernesto Alves de Oliveira. Reprodução / MEC

— Perguntei para as supervisoras se elas fizeram alguma solicitação, e elas disseram que não. E outra coisa, quando o MEC oferece o livro ali no catálogo, as escolas não têm acesso ao interior do livro. Só vemos a capa e um resumo.  

Além de vencer o Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Romance Literário, O Avesso da Pele foi finalista prêmio Oceanos no mesmo ano, o maior reconhecimento a livros em língua portuguesa. A diretora reconhece a qualidade da obra, mas não acredita que ela seja adequada para os alunos.

— Nas páginas 29, 30, 31, tem expressões pejorativas. A história é muito bacana, minha questão é o seguinte: eu, Janaina, diretora, trabalhar com essa questão, esse vocabulário, dentro de sala de aula? Já imaginou a polêmica com os pais? Será que isso seria o ideal dentro de uma escola? Essa foi a minha indignação.

Interpretação "distorcida e descontextualizada", diz Companhia das Letras

Entre as maiores editoras do país e responsável por lançar O Avesso da Pele, a Companhia das Letras manifestou-se mostrando indignação diante do vídeo gravado pela diretora Janaina. Também classificou a situação como ato de censura. 

"A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo. Repudiamos veementemente qualquer ato de censura que limite o acesso dos estudantes a obras literárias sob pretexto de protegê-los de conteúdos considerados inadequados por opiniões pessoais e leituras de trechos fora de contexto", diz a editora em posicionamento publicado nas redes sociais.

"Meu livro não é sobre sexo, é sobre os efeitos do racismo", diz Jeferson Tenório

Félix Zucco / Agencia RBS
"Não dá para reduzir toda a história do livro às palavras que incomodam", afirma o escritor Jeferson Tenório.  Félix Zucco / Agencia RBS

Expoente da literatura nacional, Tenório, que vivia em Porto Alegre quando O Avesso da Pele foi publicado e premiado, reiterou que o livro se trata de uma obra destinada a refletir sobre o racismo e violência policial, não uma história com caráter sexual. 

— Meu livro não é sobre sexo, ou sexualidade, como a diretora sugere, meu livro é sobre os efeitos do racismo na vida das pessoas negras. As palavras, ou cenas de sexo, não estão lá gratuitamente, estão lá por que fazem parte da vida. Não dá para reduzir toda história do livro às palavras que incomodam. O livro conta a história de um professor de literatura que, após uma abordagem policial, em Porto Alegre, é assassinado. A história é narrada pelo filho dele e traz reflexões sobre relações familiares, o racismo, violência policial e educação. 

Surpreso com a atitude da diretora e com a repercussão que o caso ganhou, o escritor acredita que O Avesso da Pele é importante para estudantes do Brasil.

— Deveríamos estar preocupados em formar leitores e não censurar livros. O Avesso da Pele traz discussões sobre o letramento racial, uma tema importante justamente para quem está num período de formação. 

 

 

FONTE:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2024/03/coordenadoria-pede-que-o-avesso-da-pele-seja-retirado-de-bibliotecas-de-escolas-na-regiao-de-santa-cruz-do-sul-autor-e-editora-alegam-censura-cltal05j0003201f6mzvqc51q.html