Avesso da Pele

Avesso da Pele

O AVESSO DA PELE

E O AVESSO DA CENSURA*

Não pense duas vezes. Se você tomar conhecimento de que algum livro foi censurado, corra para tê-lo em mãos. E leia-o imediatamente. Esteja certo de que a censura a um livro, ou a qualquer obra de arte, é indicativo claro de que algum ou alguns cretinos-ignorantes-fascistas, que têm o hábito de cultivar o cinismo e a hipocrisia, se sentiram incomodados.

 

Aprendi isso durante a ditadura civil-militar de 64, que, descaradamente, me roubou 21 anos de liberdade, dos meus treze aos trinta e quatro anos. Era assim. Sempre que escapava a informação de que tal livro seria censurado, eu corria para a livraria antes do seu recolhimento. Quando eu não conseguia chegar a tempo, apelava para a rede da clandestinidade, onde os livros proibidos circulavam de mão em mão, numa espécie de confraria de resistência à estupidez da odiosa ditadura.

Lembro-me, por exemplo, de que o livro de contos “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, publicado em 1975, estava passando batido do meu interesse. À época, eu andava ocupado em dividir minha vida entre os estudos e a necessidade de faturar uns trocados para a sobrevivência, afinal, o primeiro rebento já tinha saltado para a vida e precisava do leite Nestogeno, acho que era este o nome. Pela manhã, ministrava aulas para turmas de quinta à oitava série no antigo Colégio Brasileiro. À tarde, meu tempo era ocupado com o Curso de Letras da Universidade do Amazonas, que funcionava no antigo Seminário São José. E à noite, para completar o dia, dava aulas numa escola pública.

Pois bem, quando correu a notícia de que o livro de Rubem Fonseca estava sendo recolhido das livrarias, foi tarde demais para mim. Era o ano de 1976, não me lembro o mês. Os argumentos dos censores eram os mesmos. O livro continha “material obsceno e subversivo e, portanto, atentava contra a moral e os bons costumes”. Eu nunca me interessei em saber que porra era essa de “moral e bons costumes”. O fato é que eu tive que entrar na enorme fila da confraria da clandestinidade e só consegui me encontrar com as páginas de “Feliz ano novo” no final daquele ano. Algum tempo depois, já livre da censura, fiz questão de comprar “Feliz ano novo” na saudosa Livraria Maíra, do nosso bom poeta Dori Carvalho. Esse exemplar me acompanha até hoje.

E por que esse assunto me veio à cabeça? Porque vez ou outra, alguma figura nefasta em cargo público, saudosa do obscurantismo, se acha no direito de impedir que as pessoas possam livremente ler o que bem entenderem. E foi o que aconteceu com o “O avesso da pele”, de Jéferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti de 2021. Três governadores de extrema direita se acharam nos tempos do famigerado AI-5, da odiosa ditadura civil-militar de 64, e resolveram censurar o livro.

Na verdade, eu não tinha ainda lido o livro de Jéferson Tenório. Mas, embalado pela curiosidade e pela repercussão da censura dos três governadores paspalhões, revivi os tempos sombrios da ditadura e corri para comprar o meu exemplar. E nessa busca, me dei conta de que o tiro dos abomináveis censores tinha saído pela culatra. Em tempos de internet, as vendas do livro aumentaram a perder de vista, surpreendendo o autor e sua editora. Ou seja, o propósito calhorda e autoritário de impedir que mais leitores tivessem acesso à obra acabou contribuindo para que se desse o avesso da censura.

No mais, Jéferson Tenório navega poeticamente, mas sem perder em momento algum a contundência, nas águas terríveis do racismo estrutural e da violência que a hipocrisia de grande parte da sociedade brasileira insiste em jogar para debaixo do tapete:

"É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos."

De minha parte, mergulhei profundo nas páginas de “O avesso da pele”. Assim como um escafandrista que volta à superfície de alma lavada, mas já com uma enorme vontade de submergir outra vez, tal a força desse extraordinário livro.

Censura nunca mais!

(O. Sena)

(*) Crônica publicada no Portal do Largo e no Clube da Crônica e do Conto.

FONTE:

https://www.facebook.com/groups/1801481759880980/ 




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