Bicefalia da democracia brasileira
A incrível (e perigosa) bicefalia da democracia brasileira
Com congressistas assim, não são necessários inimigos estrangeiros para destruir a fragilmente forte democracia brasileira

O Brasil está no fio da navalha entre a democracia e o fascismo. O "regular funcionamento das instituições" não garante que a democracia prevaleça sobre o fascismo pela simples razão de que uma das instituições democráticas, o Congresso, não está funcionando regularmente. Assim sendo, a luta entre a democracia e o fascismo acabará mais tarde ou mais cedo por ser travada nas ruas. Visto de longe, dá a impressão de que os democratas brasileiros ainda não se deram conta do que está em jogo. Há fortes instituições intermediárias e da sociedade civil que têm o poder para despertar as consciências, mas, aparentemente deslumbradas com as decisões recentes do STF, caíram no engodo de pensar que a democracia brasileira estava mais forte que nunca e que podiam dormir descansadas. Oxalá não acordem tarde demais.
Na história recente, raramente um regime democrático nos deu no espaço curto de uma semana duas imagens tão discrepantes como as que a democracia brasileira nos acaba de dar. Por um lado, com pleno respeito pelas garantias processuais e pela Constituição, o STF pune severamente os autores de um golpe de Estado que por pouco não teria posto fim à democracia brasileira. Uma semana depois, a Câmara dos Deputados aprova por folgada maioria de 353 votos contra 134 um projeto que legaliza a impunidade total dos congressistas e prepara outro que declara a anistia dos condenados pelo golpe de Estado. O segundo projeto é dramático e fará sangrar a democracia de forma espetacular. Mas o primeiro projeto é ainda mais perigoso porque, com ele, o fascismo veste-se de democracia e continuará a passear-se pacificamente entre os democratas até que estes um dia acordem e algo lhes faça lembrar que a democracia afinal já acabou há algum tempo sem se terem dado conta.
Realmente, o projeto da blindagem dos congressistas vai muito além do chamado foro privilegiado: nos seus termos, para que o Supremo Tribunal possa instaurar um inquérito contra um congressista por crime comum, será necessária a autorização prévia, conforme os casos, da Câmara ou do Senado. Como é de prever que funcione o instinto corporativo que domina nessas instituições ("defendo-te hoje a ti para que me defendas amanhã a mim"), esse projeto, ao tornar-se lei, transforma o Congresso em um vasto galpão de impunidade, um tipo de zona especial no campo político onde as leis do país não vigoram. O órgão legislativo transforma-se no órgão da subversão da lei.
A obsessão de fugir ao controle judicial da legislação e da atividade dos legisladores consignado na Constituição (quem promulga as leis não é quem as aplica, interpreta ou executa) é tal que pode conduzir a situações ridículas, além de manifestamente inconstitucionais e potencializadoras de caos político e social. Suponhamos que o crime comum seja cometido contra outro congressista? Também é preciso autorização da Câmara ou do Senado? Se não é, criou-se um caos constitucional; se é, criou-se caos político e social.
As sentenças recentes do STF e o projeto de blindagem não cabem dentro do arco de tensão dialética que é próprio da democracia. A segunda decisão está fora desse arco e o seu objetivo é impedir que no futuro decisões do primeiro tipo tenham lugar. De fato, inviabiliza qualquer possibilidade de supervisão judicial de todas as atividades dos parlamentares. A primeira decisão é democrática, a segunda é antidemocrática. A primeira separa a democracia do fascismo, a segunda cria um híbrido demofascista.
Esta afirmação decorre dos fundamentos da teoria democrática. O primeiro fundamento é que, em democracia, quem faz as leis está sujeito a elas. Este é o incentivo para legislar não tendo em vista apenas o interesse próprio, e de fazê-lo em termos gerais de modo a que a lei tenha aplicação geral.
Quatro benefícios decorrem daqui. Primeiro, a arbitrariedade, no sentido de usar o poder público para fins privados ou agir com base em caprichos momentâneos, é substituída pela estabilidade de leis relativamente fixas, abertas, claras e prospectivas, que são administradas de forma imparcial e feitas para promover o bem comum. Segundo, a liberdade individual é promovida pela capacidade resultante de planejar em um ambiente relativamente seguro e previsível. Terceiro, a separação de funções traz ganhos de eficiência associados à divisão do trabalho. Em particular, a atividade do poder legislativo torna-se menos pesada como resultado da delegação de mais decisões de curto prazo a um poder executivo capaz de agir com maior coerência e rapidez. Quarto, este sistema garante a responsabilidade mútua dos poderes. Inicialmente, o objetivo era tornar o executivo responsável perante o legislativo, mas com o tempo o principal problema passou a ser como responsabilizar o legislativo. Esses quatro benefícios são postos em causa pela proposta do Congresso.
O segundo fundamento é a separação articulada dos poderes na teoria democrática. Na definição de Ronald Dworkin, constitucionalismo é o sistema que estabelece direitos legais que o poder legislativo não pode substituir, violar ou negligenciar. A separação articulada de poderes significa separação funcional, institucional e proibição de sobreposição. Não é uma questão jurídica; é uma questão política assentada na superioridade da Constituição. John Locke achava que a diferença essencial entre a sociedade política e o estado de natureza era que, no segundo, não havia separação articulada de poderes. A gravidade da proposta dos 353 congressistas reside em colocar a democracia brasileira em uma rampa deslizante da sociedade civil para o estado de natureza. Com congressistas assim, não são necessários inimigos estrangeiros para destruir a fragilmente forte democracia brasileira.
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