Bolsonaro e as “humanas”
Bolsonaro e as “humanas”
O presidente da república voltou a tratar de tema ligado ao ensino superior em sua conta no Twitter (imagem abaixo). Afirmou que pretende, junto do ministro da educação, “descentralizar” investimentos de “faculdades” de sociologia e filosofia, áreas consideradas menos importantes pelo atual governo. A questão que sua afirmação suscita é: como isso irá ocorrer?
A postagem do presidente revela que quando ele critica a universidade, via de regra, ele está falando especificamente de uma área do conhecimento, as ditas “humanas”. Nesse outro texto, já analisei uma afirmação feita por Bolsonaro sobre o suposto “domínio da esquerda” no meio acadêmico.
Não é novo na história o combate de poderes constituídos contra a filosofia, Giordano Bruno e Voltaire foram perseguidos por suas ideias pela inquisição e pela monarquia francesa, respectivamente. A filosofia foi banida dos currículos escolares na época da ditadura militar no Brasil, junto da sociologia, seu ensino só voltou a ser obrigatório no ano de 2008.
O movimento do presidente parece atender a grupos políticos que constituíram sua base eleitoral. Eles identificam o ensino dessas disciplinas como uma suposta doutrinação político-partidária, desconsiderando a pluralidade e a diversidade dessas áreas. Há a clara tentativa de apresentar “as humanas” como improdutivas, desimportantes. Teoria da conspiração, reacionarismo e autoritarismo se fundem em nome de um tecnicismo/economicismo que busca apresentar determinadas profissões como “produtivas”, as que iriam salvar a família e a nação.
Se compararmos o Brasil e a média dos países da OCDE no que tange ao ingresso de estudantes em cursos de educação superior por área do conhecimento, identificamos que nas áreas de engenharias e saúde (salientadas como importantes no post do presidente) o Brasil tem quase o dobro de ingressantes que a média da OCDE (grifo vermelho na imagem abaixo*). Logo, já priorizamos essas áreas quando nos comparamos aos principais países do mundo. Por outro lado, tanto em ingressantes como em concluintes, as humanidades e artes estão muito abaixo em relação a média da OCDE.
O presidente fala em “faculdades”, a União não é mantenedora de instituições cuja categoria administrativa seja Faculdade. Possivelmente o presidente esteja se referindo a unidades acadêmicas dentro das universidades federais. Se for o caso, cabe lembrar o artigo 207 da Constituição Federal: “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”.
Como disse no introito, a pergunta que logo vem a mente é como se pensa operacionalizar a referida “descentralização de investimento”? Cortando as bolsas de PROUNI ou do FIES de estudantes que fazem esses cursos em instituições privadas? Cortando editais da CAPES e do CNPQ que fomentam pesquisas nessa área? Cortando bolsas de pós-graduação? Intervindo em universidades para que elas deixem de oferecer esses cursos? Aliás, como são cursos cujo “custo” é fundamentalmente infraestrutura de sala de aula e salário dos docentes, como descentralizar recursos? Demitindo professores servidores públicos com estabilidade?
Outro ponto grave é a ingerência do governo, exógena as universidades, que visa priorizar, conforme a ideologia do governante da vez, determinadas áreas de formação profissional em detrimento de outras. Isso influencia diretamente a decisão das pessoas, a mensagem que passa é a de que o cidadão “tem liberdade de escolher sua profissão, desde que não seja as que o governo não gosta”.
No caso do magistério isso impõe dificuldade adicional. O número de pessoas que procura alguma licenciatura (20% das matrículas no ensino superior) vem caindo historicamente, entre os jovens é cada vez menor o contingente dos que desejam ser professores. Esse fenômeno se torna ainda mais grave em disciplinas específicas, justamente as desprestigiadas pelo presidente e seu governo. Há grande escassez de professores de sociologia, artes e filosofia.
Como pode ser visto na imagem abaixo, nos anos finais do ensino fundamental, apenas 35,6% (em verde) dos docentes que trabalham a disciplina de artes são formados na área, geografia e história também tem índices baixos perto do ideal.
Quando olhamos para o ensino médio a situação fica mais preocupante. O indicador de adequação da formação docente** indica que apenas 28,4% dos professores que ministram sociologia são licenciados na área.
Portanto, em um futuro próximo teremos carência de docentes no país, no caso das disciplinas em debate isso já é uma realidade. De acordo com o último dado da Sinopse Estatística da educação Superior do INEP-MEC, contando apenas os cursos de ciências sociais, sociologia, filosofia e antropologia social (licenciaturas e bacharelados) tivemos algo em torno de 6000 concluintes em um universo total de 947.606, estamos falando de 0,63% dos estudantes que se formam no país.
Mesmo se incluirmos todos formados em Humanidades e Artes e Educação lato senso não chegaríamos a 20% dos concluintes. Isso demostra que mais uma vez o presidente se guia por suas premissas ideológicas arreigadas e tenta agradar grupos sociais que as chancelam. Claramente esse não é caminho, apresentar professores como inimigos e atacar áreas específicas do conhecimento dizem mais sobre os limites do presidente do que qualquer outra coisa.
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*Área de “Ciências sociais, negócios e direito” é amplamente puxada pelos cursos de Direito e Administração que estão entre os três com maior números de matrícula no Brasil. No guarda-chuva “Educação” estão todos cursos de formação de professores, nas suas mais diversas disciplinas.
**Glossário do Indicador de Adequação da Formação Docente: Grupo 1 — Percentual de disciplinas que são ministradas por professores com formação superior de licenciatura (ou bacharelado com complementação pedagógica) na mesma área da disciplina que leciona; Grupo 2 — Percentual de disciplinas que são ministradas por professores com formação superior de bacharelado (sem complementação pedagógica) na mesma área da disciplina que leciona; Grupo 3 — Percentual de disciplinas que são ministradas por professores com formação superior de licenciatura (ou bacharelado com complementação pedagógica) em área diferente daquela que leciona; Grupo 4 — Percentual de disciplinas que são ministradas por professores com formação superior não considerada nas categorias; Grupo 5 — Percentual de disciplinas que são ministradas por professores sem formação superior.
Doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia pela UFRGS | Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul
https://medium.com/@gregoriogrisa/bolsonaro-e-as-humanas-375160a4249b