Como a branquitude se expressa nas experiências pedagógicas da educação infantil

Investigação etnográfica, envolvendo crianças brancas de 4 a 5 anos e professoras brancas, revela como a branquitude, como prática de poder e configuração de uma identidade branca, se expressa nas experiências educativo-pedagógicas da educação infantil

branquitude experiências pedagógicas da educação infantil crianças negras

Cintia Cardoso, Geledés

Trata-se de uma investigação etnográfica, envolvendo crianças brancas de 4 a 5 anos e professoras brancas. O objetivo da pesquisa foi compreender a branquitude, como prática de poder e configuração de uma identidade branca, se expressava nas experiências educativo-pedagógicas da educação infantil.A Paridade Racial na Educação Infantil é fruto daquilo que a empiria me apresentou, já que o campo me apontava por diversos momentos essa questão, olhar a paridade racial entre professoras brancas e crianças brancas e negras de maneira relacional como uma das expressões da branquitude.

Como pesquisadora, percebi as escolhas, as preferências, as hierarquias, as representações na qual a raça, se constitui em um elemento fundamental. Trabalhei por meses para confirmar se minhas interpretações acerca da branquitude neste núcleo de educação infantil, pois como afirma Liv Sovik(2004), é necessário um exercício para apreender, buscar, remexer para a assim identificar a branquitude num contexto específico

A partir dos pressupostos teóricos, um ponto de encontro, ou seja, uma reflexão dialógica entre os estudos da Branquitude, Educação das Relações Étnico- Raciais e a Sociologia da Infância como um aspecto teórico e metodológico assumido na pesquisada.

Os resultados apontam a Paridade Racial como uma das gêneses, o estágio inicial para consolidação e perpetuação da branquitude nas relações entre professoras brancas e crianças brancas.

O termo Paridade, nos últimos anos, vem sendo incluído nos discursos sociais e pautado nas reivindicações por direitos como “Paridade de Gênero”, “Paridade Representativa” e “Paridade Política”, são termos que emergem da vida dos sujeitos nas relações em sociedade. Já a Paridade Racial me parece que ainda não foi apropriada nos discursos e debates sobre relações raciais.

A autora Iray Carone (2014) em uma pesquisa sobre a negritude em São Paulo intitulada “A força psicológica do legado social do branqueamento”, relembra a fala da antropóloga norte-americana Angela Gilliam em um seminário alertando sobre a paridade racial num país atravessado por tensões entre negros e brancos.

As minhas análises, com base no campo, iniciaram nas constantes relações percebidas entre professoras brancas com as crianças brancas e das relações dessas mesmas professoras com as crianças negras, minha hipótese nesse contexto é que a paridade nessas relações se dá a partir da cor da pele, não como uma categoria objetiva, mas sim uma categoria racial. O que pode ser explicado pela definição de branquitude como um construto de poder, um grupo privilegiado que tomam a sua identidade como norma e o padrão pelos quais os outros grupos são medidos (WARE, 2014).

A seguir, apresento excertos que apontam como a Paridade Racial no núcleo de educação infantil funcionava como uma espécie de engenharia racial capaz de forjar uma identidade branca fechada aos pares.

A captura das relações de professoras brancas com crianças brancas pelas lentes da pesquisadora.

Uma das estratégias num primeiro momento foi estar atenta às falas das professoras brancas com as crianças brancas, depois observar o toque, os gestos e, por fim, a afetividade. No segundo momento, observei as mesmas relações das professoras brancas com crianças negras, esse contraponto foi crucial para análise.

– Onde é que tu andavas minha loira! (Professora branca Maitê* falando para criança branca).

– Bom dia meu amor! (Professora branca Flora cumprimentando uma criança branca).

– Que coisa mais gostosa, que pescoço mais gostoso, que coisa mais querida! (Professora branca Flora recepcionando uma criança branca).

– Meu herói! (Professora branca Joana recepcionando uma criança branca).

– Bom dia gostosa! Sou toda tua! (Professora branca Flora recepcionando uma criança branca).

Os excertos acima são pontos de partida para fundamentar os argumentos que desembocam na afirmação de que a Paridade Racial é um dos fatores que consolidam uma das formas de expressão da branquitude no espaço da unidade educativa investigada. A maneira como as professoras brancas se referem às crianças brancas, relaciona-se profundamente com a solidariedade racial para defesa dos privilégios entre pares brancos que se fortalecem na vida, no cotidiano da sociedade e que adentra a unidade educativa. Ao observar as relações que se estabelecem, percebo como elas fortalecem se auto alimentam e a raça está presente. As professoras brancas encontram modos de elogiar as crianças brancas e substancialmente a raça se materializa na linguagem dos próprios sujeitos (brancos) que a negam.

Bento (2014, p. 39) discorre sobre um fator importante nessas relações e que explica também parte da construção social da branquitude, “a própria capacidade de identificação com o próximo, criando-se, bases de uma intolerância generalizada contra tudo o que possa representar a diferença”. Essa capacidade de identificação funcionaria como uma espécie de “espelhismo da normalidade” (FERRE, 2005). Ainda para Bento (2014, p. 40).

O objeto do nosso amor narcísico é “nosso semelhante”, depositário do nosso lado bom. A escolha de objeto narcísica se faz a partir do modelo de si mesmo, ou melhor, de seu ego: ama-se o que se é, ou o que se foi, ou o que se gostaria ser, ou mesmo a pessoa que foi parte de si. […].

Em nenhum momento, durante o campo, observei as crianças negras serem elogiadas como as crianças brancas. Ao contrário, em relação a elas, se dirigiam sempre para algum tipo de repreensão requerendo que elas ficassem atentas nos seus lugares.

Foi nessa perspectiva de observadora das relações no núcleo de educação infantil que pude constatar a diferença de tratamento estritamente ligada à configuração de paridade racial. Bento considera que “[…] a discriminação racial pode ter origem em outros processos sociais e psicológicos que extrapolam o preconceito. O desejo de manter o próprio privilégio branco” (BENTO, 2014, p. 28).

As relações das professoras brancas com as crianças brancas são carregadas de subjetividades com isto há “[…] uma supressão/anulamento das diferenças e isso é altamente discriminatório para as não brancas e a possibilidade de nos transformamos com o outro, de se abrir para o novo é descartada” (OLIVEIRA, 2004, p. 98, grifo meu). Mesmo as palavras utilizadas por estas professoras ao se referir as crianças (Gostosa, Herói) não serem adequadas,há um privilégio racial a ser exaltado por ser portador da brancura.

São elogios diários as crianças brancas que lhes dão a certeza de que são merecedoras de toda a deferência, que entre todas elas são as escolhidas e por isso, podem deduzir que são melhores que outros grupos não exaltado com a mesma frequência, com o mesmo destaque.

As percepções feitas aqui não tratam de desqualificar as profissionais no exercício da docência, mas sim explicitar o quanto é complexo a percepção por partes das próprias professoras brancas em perceber os lugares de privilégios e poder nessas relações crianças/adultas que geram um ambiente que propicia a manutenção do privilégio racial para as crianças brancas e exclui aquelas crianças que não pertencem ao mesmo grupo racial.

O campo foi mostrando fatos que me levaram a apontar a paridade racial nas cenas, nas relações como um fenômeno importante a ser considerado nas relações entre as professoras e as crianças.

A branquitude tem uma configuração peculiar, pois a relação adulta branca x criança branca é cercada de códigos de vivências que marcam as experiências educativo-pedagógica de crianças brancas e negras no espaço da unidade do núcleo de educação infantil. Esta constatação foi se consolidando por meio das observações realizadas, usei a teoria para iluminar meu pensamento. Além das expressões verbais como as destacadas anteriormente, a paridade racial funciona como um regulador de comportamentos das relações cotidianas.

Organizei as capturas deste processo da seguinte maneira: 1) negação do pertencimento racial das crianças negras, 2) Preferências pelas brancas, 3) estereótipo ao representar o negro, e 4) o silêncio tático e a representatividade hegemônica materializada.

Destaco duas capturas desse processo, a seguir:

1) Preferências pelas crianças brancas:

Depois de muito observar cotidianamente a mesma cena com as mesmas meninas brancas de um grupo serem penteadas antes das refeições decidi ouvir estas crianças. Aproximo-me de Lorena (menina branca de cabelos longos sempre penteados) para um diálogo.

– Oi Lorena, que bonito estão seus cabelos. Todas as crianças da tua sala pentearam os cabelos?

– Só pentearam algumas meninas.

– Por que só algumas?

– Por que não deu tempo de pentear todas as meninas.

– E como vocês se organizam para se pentear?

– A Fernanda, vai chamando uma por uma.

Neste grupo seleto que tem seus cabelos penteados nenhuma menina ou menino negro estavam inclusos. Porém, as crianças negras estão tentando resistir a norma da braquitude que regula as relações na unidade educativa. Este é o exemplo que trago a seguir.

Lucia é menina negra que esteve fora do grupo merecedor de ter seus cabelos penteados e ela resiste e insiste em fazer parte deste grupo. Um dia, trouxe de sua casa um creme de cabelos, ou seja, um forte indicativo de que ela percebe porque não é uma das crianças chamadas para ter seus cabelos cuidados, sabe certamente que tem alguma relação com o seu tipo de cabelo e não com o tempo disponível da professora. Assim, de posse de sua arma de resistência solicita à professora que a penteie. Neste dia, a professora Flora (branca) passeou com a menina de sala em sala mostrando seus cabelos. Lucia, por ora vence o jogo.

2) Estereótipo ao representar o negro

– Tô pronta para o samba! (Auxiliar Fernanda branca).

Esta frase foi capturada em uma das idas ao campo. Um grupo estava realizando um baile à fantasia, a professora se caracterizou com uma peruca que imita cabelos crespos. Essa postura demonstra a visão essencialista, estereotipada de uma mulher branca sobre o negro, associando ao samba e estética negra como uma representação de negro genérico. Ademais, como afirma Gomes (2005, s.p.)

O discurso pedagógico proferido sobre o negro, mesmo sem referir-se explicitamente ao corpo, aborda e expressa impressões e representações sobre esse corpo. O cabelo tem sido um dos principais símbolos utilizados nesse processo, pois desde a escravidão tem sido usado como um dos elementos definidores do lugar do sujeito dentro do sistema de classificação racial brasileiro.

A professora usou a peruca como uma forma estereotipada e sarcástica de representar pessoas negras. Um ataque à estética negra que, geralmente, ocorrem pelos traços fenotípicos, onde a dupla cabelo e cor da pele são os alvos. Essas perucas são muito similares aos cabelos crespos afros. Nesse sentido, como se sentem as crianças negras ao verem a professora caracterizada com uma peruca similar aos cabelos delas de maneira engraçada? E as crianças brancas como compreendem essa forma de representação? Essa associação não se dá de maneira imediata pelas crianças, mas são compreendidas e é preciso considerar que existe todo uma construção social sobre isso e as crianças não estão alheias, seja na família, na mídia, na vizinhança ou nas instituições de ensino, bem verdade,

[…] estamos imersos em relações de poder e de dominação política e cultural, nem sempre percebemos que aprendemos a ver as diferenças e as semelhanças de forma hierarquizada: perfeições e imperfeições, beleza e feiura, inferioridade e superioridade. (GOMES, 2005, p. 51).

Modos de agir e pensar sobre grupos raciais podem ser incorporados pelas crianças de maneira hierárquica, como crença. Mesmo sem se dar conta, a professora reforça uma situação socialmente construída quando se trata de representar os negros. Ao longo da pesquisa, por exemplo, não vi a professora fazer qualquer relação que identificasse num grupo a pertença da identidade racial branca. Uma de minhas hipóteses é o próprio exercício da branquitude esse lugar considerado o normal e natural que ancorado no racismo “[…] é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade”. (CARNEIRO, 2004, s.p.).

A Ware (2004) chamou de Poder duradouro da branquitude.

Uma das expressões da branquitude é moldar a estrutura das relações, e a Paridade Racial, se manifestou nas preferências orientadas pela cor da pele. Ou seja, há uma perpetuação da vantagem/privilégio racial, aqueles herdeiros da brancura onde as crianças brancas são preferidas pela cor da pele, e em contrapartida, todas as outras que não se enquadram no modelo padrão tem negada atenção, afeto, um elogio, um toque, um pentear nos cabelos.

A Paridade Racial no contexto analisado indicou que esta é uma das gêneses, o estágio inicial para consolidação e perpetuação da branquitude nas relações entre professoras brancas e crianças brancas.

Referências:

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*Atribuí nomes fictícios aleatórios para identificar as crianças, as professoras e a instituição analisada em conformidade com os Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos, conforme Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.