Brasil da meningite de 1974
Escolas fechadas, hospitais lotados, eventos cancelados: o Brasil da meningite de 1974
Aulas suspensas e eventos esportivos transferidos, algumas das consequências da atual pandemia do novo coronavírus, já marcaram a história recente do Brasil, por conta de outra doença: a meningite.
Em 1974, durante o período da ditadura militar, o Brasil enfrentava a pior epidemia contra a meningite de sua história. O país já tivera dois surtos da doença - um em 1923 e outro em 1945 -, mas, nenhum deles tão grave ou letal.Isso porque o Brasil foi vítima não de um, mas de dois subtipos de meningite meningocócica: do tipo C, que teve início em abril de 1971, e do tipo A, em maio de 1974.
Para evitar o contágio, o governo tomou medidas drásticas: decretou a suspensão das aulas e suspendeu eventos esportivos. Os Jogos Pan-Americanos de 1975, que estavam marcados para acontecer em São Paulo, tiveram que ser transferidos para a Cidade do México. Hospitais, como o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, ficaram superlotados.
A que viria a ser a maior epidemia de meningite da história do Brasil teve início em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Logo, a população mais carente começou a se queixar de sintomas clássicos, como dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em novembro daquele ano, o que parecia ser um surto restrito a uma determinada localidade logo se alastrou e, aos poucos, ganhou proporções epidêmicas. Dali, não parou mais.
Meningites causadas por bactérias, como a meningocócica, estão entre as formas mais grave da doença
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes. Algo semelhante só se via no "Cinturão Africano da Meningite", área que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia.
Das regiões mais carentes, a epidemia migrou para os bairros mais nobres. Até julho daquele ano, um único hospital em São Paulo atendia pacientes com meningite. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas tinha 300 leitos disponíveis, mas chegou a internar 1,2 mil pacientes.
"Não houve quarentena porque o período de incubação da meningite é muito curto", explica a epidemiologista Rita Barradas Barata, doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Na época, Rita trabalhava como aluna do internato em medicina no Emílio Ribas. "O atendimento foi além de sua capacidade máxima.
Trabalhávamos muitas horas por dia", recorda.De agosto em diante, outras 26 unidades passaram a fazer parte de uma rede de atendimento a pacientes com sintomas de meningite. "Depois de um ou dois dias recebendo tratamento injetável, os casos mais leves eram transferidos para outras unidades, onde recebiam a medicação oral. Já os pacientes mais graves permaneciam no Emílio Ribas", complementa a médica.
Atentados, passeatas e epidemias eram assuntos vetados na imprensa
Até então, uma pequena parcela da população, quase nula, sabia da existência da epidemia. O governo procurou escondê-la ao máximo, segundo explica quem acompanhou o caso de perto."Assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença", afirma a jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora da tese A Construção Discursiva dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo sobre a Epidemia de Meningite na Ditadura Militar Brasileira (1971-1975).
"Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas".Durante os anos da ditadura, alguns temas foram proibidos de serem divulgados - através de notícias, entrevistas ou comentários - em jornais e revistas, rádios e TVs. A epidemia de meningite que castigou o Brasil na primeira metade da década de 1970 foi um deles.
Sob o pretexto de não causar pânico na população, a censura proibiu toda e qualquer reportagem que julgasse "alarmista" ou "tendenciosa", sobre a moléstia.Em 1971, quando foram registrados os primeiros casos, o epidemiologista José Cássio de Moraes, doutor em Saúde Pública pela USP e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, integrava uma comissão de médicos de diferentes áreas, como epidemiologistas, infectologistas e sanitaristas. Juntos, detectaram um surto da doença e procuraram alertar as autoridades. Não conseguiram. Em tempos de 'milagre econômico', o governo se recusou a admitir a existência de uma epidemia. "Os militares proibiram a divulgação de dados. Pensavam que conseguiriam deter a epidemia por decreto. Se eu não divulgo, é como se não existisse. Não sabiam que o vírus era analfabeto e não sabia ler Diário Oficial", ironiza o médico.
Dali por diante, médicos de instituições públicas foram proibidos de conceder entrevistas à imprensa. O jeito era dar declarações em "off" para jornalistas de confiança, como Demócrito Moura, do Jornal da Tarde. Mesmo assim, as poucas matérias publicadas, alertando a população dos riscos da meningite, eram desmentidas pelas autoridades.
"Ao governo não interessava a divulgação de notícias negativas. Negar a existência da epidemia foi um erro porque facilitou sua propagação e atrasou a adoção de medidas necessárias ao seu combate. Numa situação dessas, quanto mais rapidamente essas medidas forem adotadas, menores serão as perdas de vidas e os danos à economia", afirma o historiador Carlos Fidelis Ponte, mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Em 1975, o Brasil deu início à Campanha Nacional de Vacinação Contra a Meningite Meningocócica
Medo
Em 1974, quando a verdade veio à tona, pelo menos sete Estados totalizavam 67 mil casos - 40 mil deles só em São Paulo. A população, quando soube da epidemia, entrou em pânico. Com medo da propagação da doença, as pessoas evitavam passar na frente do Emílio Ribas. De dentro de carros e ônibus, fechavam suas janelas. Na falta de remédios e de vacinas, recorriam a panaceias milagrosas, como a cânfora.
"Naquela época, não havia rede social, mas já existiam 'fake news'. A boataria atrapalhou bastante", recorda José Cássio.O governo suspendeu as aulas e mandou os estudantes de volta para casa. Quando era registrado algum caso nas dependências das escolas, as autoridades sanitárias passavam formol nas mesas e carteiras. Em algumas cidades, as escolas públicas foram transformadas em hospitais de campanha para atender os doentes.Nos hospitais, a epidemia sobrecarregou especialistas em doenças infecciosas. Médicos de outras áreas, para evitar a contaminação, usavam capacetes, óculos e botas. Outros, ao contrário, atendiam pacientes sem qualquer tipo de proteção. Um terceiro grupo preferiu mudar para o interior, com suas famílias.
Uma das primeiras medidas foi prescrever sulfa. Na esperança de deter o avanço da epidemia, a população passou a tomar o antibiótico por conta própria. "O estoque acabou rapidamente e a bactéria ficou resistente", recorda José Cássio.
Todos os dias, a comissão médica da qual o médico fazia parte procurava atualizar os números e divulgá-los no quadro de avisos do Palácio da Saúde, onde funcionava a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Os setoristas da área até tinham acesso às informações, mas não podiam divulgá-las.Os números de casos e de óbitos são contraditórios. O estudo A Doença Meningocócica em São Paulo no Século XX: Características Epidemiológicas, de autoria de José Cássio de Moraes e Rita Barradas Barata, calcula que, no período epidêmico, que durou de 1971 a 1976, foram registrados 19,9 mil casos da doença e 1,6 mil óbitos. Já a edição de 30 de dezembro de 1974 do jornal O Globo divulgou que, só naquele ano, a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2,5 mil em São Paulo.
Ministério censurado
Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência no lugar do general Médici. Para ministro da Saúde, ele nomeou o médico sanitarista Paulo de Almeida Machado.
Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência no lugar do general Médici; textos da imprensa eram censurados