Brasil, fora de exame internacional
Brasil pode ficar fora de exame internacional pelo qual já pagou R$ 1,5 milhão
Direção já comunicou a desistência após não conseguir cumprir o cronograma, mas com a impossibilidade de ser ressarcida do dinheiro, ainda não cancelou o exame
Sede do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, em Brasília
Pillar Pedreira / Agencia Senado/Divulgação
O Brasil pode deixar de participar de um exame internacional de estudantes este ano, pelo qual o Ministério da Educação (MEC) já pagou R$ 1,5 milhão, por má gestão do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Documentos obtidos pelo Estadão mostram que a direção do Inep, órgão vinculado ao ministério, já comunicou a desistência após não conseguir cumprir o cronograma, mas com a impossibilidade de ser ressarcida do dinheiro, ainda não cancelou o exame.
O órgão passa há meses por uma crise institucional, com demissões em massa de técnicos e denúncias de assédio praticado por dirigentes ligados ao governo de Jair Bolsonaro, que nega as acusações.
Essa seria a primeira vez que o Brasil estaria no Estudo Internacional de Educação para o Civismo e a Cidadania (ICCS), exame do qual participam quase todos os países europeus, Coreia do Sul, Hong Kong, Taiwan, Nova Zelândia, México, Argentina, Chile, entre outros. Ele avalia, desde 2009, como os sistemas de ensino preparam seus alunos para a cidadania. A prova é feita por uma amostra de alunos de 13 anos de escolas públicas e particulares; professores do 8º ano também respondem a questionários.
O exame é reconhecido pela Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU), como uma evidência sólida sobre educação de qualidade para pesquisadores, educadores e gestores. É realizado pela Associação Internacional para a Avaliação do Desempenho Educacional (IEA), organização formada por institutos de vários países, responsável também por duas outras avaliações conceituadas, o TIMSS (sobre Matemática e Ciência) e o PIRLS (sobre alfabetização).
O ICCS tem duas etapas: o pré-teste, que seria em maio deste ano, e a avaliação principal, marcada para setembro. Em reunião realizada nesta segunda-feira (25), a presidência do Inep decidiu que os brasileiros não fariam o pré-teste.
Em despacho ao qual o Estadão teve acesso, a responsável pela Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (CGSNAEB), Margareth Fabiola dos Santos Carneiro, diz que "considerando a capacidade operacional" propõe "a exclusão do ICCS - Testes, previstos para 17 a 30 de maio, devido ao fato de que a contratação não será feita em tempo hábil".
O Inep ainda não contratou uma empresa que seria responsável pela aplicação do teste, apesar de ter formalizado a adesão com o órgão internacional em março de 2020. Outras etapas do cronograma também estão atrasadas. Para participar, cada país precisa pagar ao IEA taxas em dólares e euros. Em valores convertidos, o Brasil pagou R$ 924,8 mil em 2020 e R$ 592 mil em 2021, ambos referentes ao exame deste ano. O total foi de R$ 1.516.866,52.
Em outro documento ao qual a reportagem teve acesso, a área internacional da presidência do Inep pede à Andrea Netten, coordenadora do IEA na Holanda, "termination of Brazil's participation in the current ICCS 2022 study" (fim da participação do Brasil no ICCS 2022). Na resposta, Andrea diz que a desistência do Brasil é "decepcionante". Ela ainda explica que as taxas pagas não podem ser transferidas para o outro exame, o TIMSS, como o Inep pretendia, porque isso era contra as regras do órgão e porque já tinham sido gastos recursos para o exame ser feito pelo Brasil.
Com a inviabilidade de realizar a primeira parte do ICCS, segundo técnicos, o exame fica prejudicado. O pré-teste serve para avaliar a efetividade das questões traduzidas em cada país. Perguntas que abordam situações pouco conhecidas dos brasileiros, como por exemplo a neve, podem ter respostas diferentes se comparadas ao que ocorre com alunos de outras nações.
A previsão era de que o pré-teste fosse aplicado a 2 mil estudantes das cidades de São Paulo, Curitiba, Brasília, Belém e Fortaleza. A avaliação principal, em setembro, teria a participação de 225 escolas de todos os Estados, em um total de 10 mil estudantes do 8º ano, de escolas públicas e particulares.
A participação em avaliações internacionais é considerada importantíssima por grande parte dos educadores para aprimorar o sistema de ensino. Integrantes do próprio governo Bolsonaro sempre manifestaram interesse em aumentar a inserção brasileira nesse tipo de teste. O Brasil participa este ano do Pisa, feito pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), e do TIMMS em 2023.
O Estadão perguntou à assessoria de imprensa do Inep se o ICCS será realizado no Brasil e quando. Não obteve resposta. Pouco mais de um hora depois de o órgão ser questionado pela reportagem, a presidência publicou um despacho com o cronograma dos exames deste ano, sem o pré-teste do ICCS e com a avaliação principal marcada para 12 a 30 setembro.
Técnicos ouvidos pela reportagem, no entanto, têm dúvidas se haverá tempo hábil para a realização do exame e ainda questionam a efetividade do resultado se ele for feito sem o pré-teste. O Estadão procurou o IEA, na Holanda, e a entidade informou que o Brasil pode participar do exame sem ter feito o pré-teste, mas não explicou se isso prejudica ou não a comparação com outros países.
O Inep vive atualmente sua pior crise desde 2009, quando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi roubado e cancelado dias antes da prova, como revelou o Estadão na época. Em 2021, dezenas de servidores pediram demissão e têm denunciado a falta de critério técnico em decisões, inoperância e má gestão durante os anos do governo Bolsonaro. Recentemente, o órgão divulgou ter a intenção de usar questões repetidas no Enem por falta de estoque no banco de itens.
Brasil precisa aumentar participação em testes internacionais, diz especialista
Para a presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) e uma das maiores especialistas em avaliação do país, Maria Helena Guimarães de Castro, o Brasil precisa aumentar sua participação em exames internacionais, e não diminuir.
— Isso ajuda a identificar evidências importantes sobre aprendizagem dos nossos estudantes, a melhorar as nossas estratégias de ensino e aprendizagem e também nossos programas de formação de professores — disse.
O país integrou o grupo que participa até hoje do Pisa, em 2000, quando Maria Helena era a presidente do Inep.
Despacho da própria Margareth Fabíola, da coordenação da Avaliação Básica do Inep, ao discutir a possibilidade de o Brasil não participar do ICCS diz que "sob o ponto de vista pedagógico e de contribuições à formulação de políticas públicas em educação, o cancelamento do exame tem profundo impacto". Isso porque, continua o documento, a prova permite o "intercâmbio de técnicas na elaboração de modelos inovadores de itens e de aplicação de testes" e "o aprimoramento das avaliações nacionais, principalmente na área de Ciências Humanas".
Ela ainda cita o impacto para as equipes do Inep que ficaram mais de um ano trabalhando para a aplicação do exame, em traduções e outras atividades, e "um constrangimento técnico que pode impactar na percepção deste órgão junto a equipes de outros exames internacionais".
A inclusão do Brasil entre os países que aplicam o ICCS faz parte também do acompanhamento da Meta 4.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da ONU, compromisso do qual o país é signatário. Ele diz que os alunos devem adquirir habilidades por meio de uma educação de qualidade que promova "uma cultura de paz e não violência, cidadania global, valorização da diversidade cultural".