Brasileiros passam fome
Quinze em cada cem brasileiros passam fome diariamente; país volta a patamar dos anos 1990
Levantamento mostra ainda que mais da metade da população convive com algum grau de insegurança alimentar
ESTADÃO CONTEÚDO Roberta Jansen
A fome no Brasil voltou a patamares registrados pela última vez nos anos 1990, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, lançado nesta quarta-feira (8). Atualmente, 33,1 milhões de pessoas, o equivalente a cerca de 15% da população, não têm o que comer no país — 14 milhões a mais do que no ano passado.
A nova edição da pesquisa mostra ainda que mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave).
Especialistas que participaram do levantamento dizem que o desmonte de políticas públicas por parte dos governos, o agravamento da crise econômica, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia contribuíram para a piora do quadro.
No ano passado, o número de brasileiros que não tinham o que comer era de 19 milhões. Em 2018, eram 10 milhões. A falta de acesso regular à água para beber e cozinhar, a chamada insegurança hídrica, também é um problema para 12% da população brasileira.
— Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros — explica o coordenador da Rede Penssan, Renato Maluf.
— As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis — diz.
Como explica a gerente de programas da Oxfam-Brasil, Maitê Gauto, a pandemia surgiu neste contexto de agravamento da pobreza, e o Estado não tinha mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram "sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento" por terem sido obrigadas a usar de meios "social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos".
A pesquisa é realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi, Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Oxfam, entre outras instituições.
Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, por meio de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos pelos 26 Estados e o Distrito Federal. A pesquisa usa a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), a mesma usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado a patamares equivalentes aos de 2004. Este ano, o levantamento mostra que apenas quatro em cada 10 domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação; ou seja, são considerados em condição de segurança alimentar.
De acordo com os pesquisadores, os números atuais são similares aos do início da década de 1990, quando o Brasil tinha 32 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou uma campanha nacional contra a fome.
Desigualdade
A nova pesquisa mostra que a fome atinge as regiões do país de forma muito desigual. Em média, 15% dos brasileiros estão abaixo da linha da pobreza. O porcentual, entretanto, chega a 25% e 21% no Norte e no Nordeste. A situação também é pior entre os negros e as mulheres.
Segundo o levantamento, 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com alguma restrição alimentar. Comparando com o primeiro inquérito, a fome saltou de 10,4% para 18,1% dos lares comandados por pretos ou pardos.
As diferenças também são expressivas na comparação entre lares chefiados por homens e por mulheres. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nos lares em que os homens são os responsáveis, o salto foi de 7% para 11,9%. Segundo os pesquisadores, isso ocorre por conta da desigualdade salarial entre os gêneros.
Outro dado preocupante levantado pelo estudo é que, em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos de idade — passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atinge 25,7% dos lares. Já nos domicílios apenas com moradores adultos, a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.
Praticamente não há fome nas famílias com renda superior a um salário mínimo por pessoa. Em 67% desses domicílios, o acesso a alimentos é pleno e garantido. Ainda assim, 33% das famílias enfrentam algum grau de insegurança alimentar. A fome é maior nas casas em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1).
Cerca de metade das famílias que deixaram de comprar arroz, feijão, vegetais e frutas nos últimos três meses, convivem com insegurança alimentar moderada ou grave. Entre as famílias que deixaram de comprar carne nos três meses anteriores à pesquisa, 70,4% estavam passando fome. Dados semelhantes foram encontrados nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%).
— Esse é outro problema sério — diz a professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, Rosana Salles, pesquisadora da rede. — Estamos abrindo uma janela para o aumento dos índices de doenças crônicas na população por conta da alimentação ruim — completa.
A segurança alimentar, por sua vez, é maior nos lares em que o chefe da família trabalha com carteira assinada (53,8%) e entre os que têm mais de oito anos de estudo (50,6%).
— Reverter essa situação é um desafio muito grande — constata Rosana.
"Fome é uma sensação de morte": a rotina de quem passou a dormir sem saber se vai comer no dia seguinte
GZH ouviu seis relatos de pessoas que fazem parte dos 19,6 milhões de brasileiros que enfrentam o problema, um contingente que dobrou de tamanho entre 2018 e 2020
Antonio Augusto, 61 anos, bacharel em Direito: "A fome te leva a perder a noção de civilidade". Jefferson Botega / Agencia RBS
Todos os dias, Antonio Augusto Costa Lima acorda com o nascer do sol. Pouco depois das 5h, abre a casa para arejar, dá água aos três cachorros e sai para caminhar. Duas quadras adiante, faz uma série de exercícios na academia pública da Praça Jardim América, no bairro Rio Branco, em Canoas.
Aos 61 anos e com 83 quilos mal distribuídos em 1m68cm de um corpo já curvado pela idade, ele tenta se manter saudável erguendo garrafas pet cheias de água presas aos equipamentos salpicados de ferrugem. Ao fim da malhação, tem início seu drama diário. Vendedor e bacharel em Direito, Antonio não tem nada para comer dentro de casa. Então ele sai para a rua.
— A fome gera uma angústia, uma ansiedade muito grande. Porque as horas começam a passar, deu aquela fomezinha, tu olha pra frente e não vê nada. Uma coisa é estar com fome e ver na mesa um pão, uma banana, uma mortadela. Se tu avista e pode botar a mão, a fome diminui. Quando tu começa a ter fome quimicamente, que o teu organismo precisa repor a energia e tu enxerga só vazio, ausência, carência, essa fome se acelera e atinge a tua mente. Daí, cara, eu acho que é meio Fórmula 1 sabe? Aquela cena da pista invadindo, vrumm, vrumm, vruummm, e tu: “Cadê a comida, cadê a comida?”. A fome é um ácido que vai saindo das tuas células, vai te invadindo e gerando uma raiva. Te leva a perder a noção de civilidade. Eu passei dois dias sem comer. Chegou uma hora que não aguentei mais e comecei a comer coisa do lixo, cara, do lixo. Sabe qual é a minha autodefinição? Eu sou um caçador urbano. Eu sou um cara que eu tô na rua, e eu caço. Já sei onde estão as coisas, procuro frutas nas árvores, nas praças. Passei um ano juntando moedinhas que achava no chão. É horrível, é horrível. Faço de tudo para estar bem alimentado.
Antonio é um dos 19,6 milhões de brasileiros que enfrentam o que os especialistas chamam de insegurança alimentar grave, um contingente que dobrou de tamanho entre 2018 e 2020, agravando-se na crise do emprego neste período de pandemia, segundo estudo referencial da Rede Penssan. Antonio é também um dos 1,29 milhão de gaúchos que vivem na linha da pobreza, com menos de R$ 178 por mês, conforme dados divulgados em outubro pelo Departamento de Economia e Estatística do governo do Estado.
Mas esta não é uma reportagem sobre números, tampouco sobre conceitos acadêmicos. Essa é a história de pessoas que dormem com o estômago roncando, sem saber se terão algo à mesa no dia seguinte.
Dejanira (de viseira), 86 anos, aposentada: “Ou eu pago o aluguel, ou compro as coisas para dentro de casa”. Jefferson Botega / Agencia RBS
As manhãs de segunda-feira são sagradas para a auxiliar de enfermagem Dejanira Vieira Rolim. Aos 86 anos, ela sai de casa antes das 7h, puxando um carrinho de feira. Boné enterrado na cabeça, óculos quadrado de lentes grossas, precisa de 300 passos para percorrer pouco mais de uma quadra até chegar ao destino: um armazém no bairro Santana onde revira frutas e verduras impróprias para venda.
Em caixas de papelão umedecidas de chorume, Dejanira separa batatas, laranjas, cenouras, todo alimento que escapa à decomposição orgânica da semana que passou. Não é tarefa fácil para uma idosa de braços curtos, mãos pequenas e cega de um olho. A cada nova carga trazida pelos funcionários, várias mãos se cruzam num movimento frenético. Quem tem fome tem pressa. E quem chega mais rápido tem chances maiores de encher a panela ao meio-dia.
No final de 2020, a prefeitura de Porto Alegre entregava 900 cestas básicas por mês. Hoje são 10 mil. E teria demanda para 100 mil. É uma ação que mitiga, mas não resolve. Temos 61 mil famílias vivendo abaixo da linha da pobreza na cidade. É a pior crise da história, nem em 1929 tivemos uma crise social, política e sanitária como esta.
LÉO VOIGT - Secretário de Desenvolvimento Social de Porto Alegre
Dejanira oferece pouca concorrência na xepa da miséria. Pouco depois das 8h, ela sai devagar de volta para casa. O carrinho tropeça no chão, vira, o milho desliza no asfalto. Estoica, ela se agacha e recolhe as guarnições do almoço em família. Morando com o filho e o neto desempregados, Dejanira mal consegue pagar as contas com a aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo.
— O dinheiro não dá, tenho sempre que usar meu limite do banco. Agora já gastei todo, nem sei como vou comer até o fim do mês. Falta leite, falta arroz. Carne eu compro um franguinho, um pedaço de porco, quando dá. Ontem fiz orelha de macaco pra mim e pro meu neto. É só misturar farinha, água e um pouquinho de sal e açúcar. Depois frita. Foi a nossa janta.
A 20 quilômetros dali, nos fundos de um terreno no bairro Mathias Velho, em Canoas, Maria Cleci da Conceição espera aflita a visita dos servidores da Ceasa. É a entrega mensal de um sacolão com frutas, legumes e verduras do programa Prato para Todos, que garante a alimentação da auxiliar de serviços gerais e dos dois filhos, ambos desempregados. Aos 67 anos, Cleci perdeu o emprego em 2018, quando a firma em que trabalhava decidiu rejuvenescer o quadro de funcionários. Desde então, tenta sobreviver com a aposentadoria de um salário mínimo.
— Ou eu pago o aluguel, ou compro as coisas pra dentro de casa. Por três meses, fiquei no escuro, cozinhando numa panela de ferro, porque não tinha gás nem luz. Juntava lenha na rua e trazia pra dentro. As pessoas riam. Um dia eu estava olhando as notícias e mostrou aquela fila na Ceasa, todos com uma sacolinha. Então fui lá pedir. Hoje eles trazem aqui. Minha família é a Ceasa, são os meus padrinhos, mais ninguém. Eu chego a rezar para eles chegarem.
O que é insegurança alimentar grave?
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), insegurança alimentar se dá quando a pessoa não tem acesso regular à alimentação conforme suas preferências, qualidade e quantidade necessária. A insegurança alimentar grave é quando falta comida no domicílio e a pessoa passa fome, ficando sem comer, sendo obrigada a pedir doações ou buscar alternativas para se alimentar.
E carne, dona Cleci, tem comido?
— Carne? Não fala nesse bicho. Não fala nesse bicho, pelo amor de Deus.
Faz tempo que a senhora não come?
— Ah, um guisadinho com uma polentinha cai tão bem.
A senhora lembra a última vez em que comeu?
— Vizinho, não me deixa doente, o senhor veio me entrevistar. Eu tenho vergonha, não me leva a mal. A coisa tá tão feia. Eu nunca pensei... Olha, eu sou mãe solteira, criei meus filhos trabalhando. Tinha dia que eu trabalhava em dois lugares. Saía da firma às cinco da tarde e ia fazer faxina até nove, 10 da noite, para só depois ir para casa. No outro dia, sete da manhã estava lá de novo. Nunca pensei que um dia eu iria me aposentar e estar nessa situação.
Paulo, 53 anos, e Eduardo, 47, dupla premiada pelo trabalho com teatro de bonecos hoje conta com a ajuda de amigos. Jefferson Botega / Agencia RBS
No Centro Histórico, em Porto Alegre, Eduardo Custódio, 47 anos, abre a porta de casa, um sobrado de dois andares a 500 metros da orla do Guaíba. A decoração composta por elementos cenográficos, a sala de TV com antigas poltronas do Cine Guion, o escritório cheio de miniaturas, livros e cartazes e o pequeno estúdio, equipado com refletores, cortinas e espelhos, revelam o ofício dos moradores. Custódio e o marido, Paulo Martins Fontes, 53 anos, conduzem a Cia. Gente Falante, um grupo de teatro de bonecos criado há três décadas.
A fome não é mais do morador de rua, do mendigo. Até os taxistas da praça vem nos pedir uma marmita, pessoas que vem ao Centro atrás de emprego e já almoça para deixar a janta em casa para os filhos ou então leva a marmita para um parente. A gente se esforça, mas não é suficiente.
EDUARDO OSÓRIO - Coordenador da Cozinha Solidária do MTST em Porto Alegre
Multipremiado, o casal tem no portfólio 11 espetáculos consagrados, com os quais já excursionou pela Europa e quase toda América do Sul. Em março de 2020, estavam prestes a estrear uma nova peça quando a pandemia paralisou o planeta. De imediato, tiveram mais de 30 apresentações canceladas. Os cachês de R$ 4 mil sumiram. A renda média, que nos melhores meses girava em torno de R$ 20 mil, foi reduzida a zero.
Com as reservas financeiras se esgotando em três meses, o plano de saúde foi suspenso e as dívidas, renegociadas. A família ajudou pagando algumas contas, os amigos fizeram uma vaquinha, e o auxílio emergencial do governo federal garantiu o fornecimento de água, luz e as recargas no telefone. Um dia começou a faltar comida — o que é diferente de passar fome.
— Faltar comida é dividir o almoço pela metade para ter janta e não saber o que terá para comer no dia seguinte. É dividir o que tem para poder passar a semana. Tinha dias que não tinha nada na geladeira. Daí vinha uma vizinha e nos levava na feira. Batia aqui na porta e nos trazia um prato de comida. Se não fosse assim, não teríamos o que comer. Todo dia é uma batalha — conta Eduardo.
Paulo salienta o que é sentir fome, diferente de faltar comida:
— Fome é uma sensação de morte. Parece que tudo vai acabar. A gente chegou a ficar 15 dias sem ter nada. Eu dormia pra ver se passava. A gente tinha uma vida muito boa. Quando queria comer, comia. Saía pra tomar um café, sentava em algum lugar. Hoje só temos arroz e feijão. Feijão porque uma vizinha trouxe um potinho.
Júlio Cezar, 48 anos, e Ana Paula, 44, desempregados: “Estamos reaprendendo a viver”, diz ele. Jefferson Botega / Agencia RBS
Sobreviver sob o tênue limite entre a fome e a falta de comida também é rotina para Júlio Cezar Costa, 48 anos, e Ana Paula Carvalho, 44. Moradores da Vila João Pessoa, na zona leste da Capital, eles estão desempregados há três anos, desde que ele foi demitido do emprego de segurança e ela foi dispensada pelas famílias para as quais trabalhava como cuidadora de idosos. Atualmente, o casal vive de bicos, cada vez mais escassos com a pandemia e a crise econômica.
Nosso inquérito mais recente mostrou metade da população do país com alguma insegurança alimentar. Os números da fome dobraram em dois anos, passando de 10 milhões para 19 milhões de pessoas. É uma sindemia, não só uma pandemia: há uma situação socioeconômica relacionada.
DANIELA FROZI - Membro da coordenação-executiva da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Na pequena casa de paredes rachadas, cada chuva forte provoca medo. As goteiras no teto facilitam a entrada de água por cima, e a correnteza do Arroio Moinho nos fundos do terreno ameaça uma inundação por baixo. É na última peça da casa, à janela do córrego, que eles fazem as refeições, em geral arroz, feijão e ovo, cozidos num fogão à lenha. Em julho, Ana Paula ganhou um botijão de gás de aniversário, mas prefere deixar guardado para alguma emergência.
— Desde o ano passado a gente cozinha só com lenha. Cato na rua, ganho dos vizinhos. Ou tu compra gás ou tu come. Aqui já faltou massa, margarina, café. Teve dias que ela comia uma coisa e eu outra, a gente se combina pra ninguém ficar sem comer. O baque mesmo foi quando cortaram a luz, porque ficamos com medo de perder o pouco que tinha na geladeira. Parcelei a conta em 15 ou 20 vezes, ainda estamos pagando. É um dinheiro que poderia ser usado para comprar comida. Agora a gente vive de doações ou promoção — relata Júlio.
A cada 25 dias, o casal recebe uma cesta básica da ONG Ação da Cidadania, umas das principais entidades de combate à fome do país. Quando conseguem algum serviço temporário, as compras são feitas meticulosamente, acompanhando o calendário de ofertas do comércio local.
— Pão a gente só compra quarta e domingo, na promoção, e depois torra. Tem uma fruteira aqui perto que faz liquidação no domingo, vou lá e compro batata por R$ 1, brócolis por R$ 1. Já comprei margarina por R$ 1 também. Azeite custa R$ 9, não dá para usar, então cozinho com margarina. Essas carnes de R$ 30, R$ 40, faz dois anos que a gente não come, só guisado ou frango. Agora mesmo estamos há dois meses sem comer carne vermelha. Esses dias consegui um bico. Ganhei R$ 70 e comprei carne de porco a R$ 9,99. Estamos reaprendendo a viver, somos heróis da resistência — resume Júlio.
Josué, 68 anos, aposentado: “Se não tivesse isso aqui nem sei como ia fazer”. Jefferson Botega / Agencia RBS
Com camisa branca impoluta, calça jeans e sapatos pretos lustrosos, Josué Telles de Lima destoa dos demais ocupantes da fila formada na Praça Princesa Isabel, no bairro Azenha, em Porto Alegre. Em geral, as 150 marmitas diárias distribuídas pela Cozinha Solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) atraem moradores de rua. Nas últimas semanas, porém, a carestia tem levado ao local motoristas de aplicativos, motoboys, desempregados que circulam pelas redondezas atrás de ocupação e até mesmo funcionários de empresas da região.“Antes a gente atendia só população de rua, mas agora tem muito mais gente por causa do desemprego. Começou a aparecer famílias inteiras, pessoas com curso superior, gente que perdeu casa, trabalho, tudo, e não tem sequer um prato de comida.”
DANIELA SOARES - Assistente social da Rede Calabria e do Pop Rua RSAos 68 anos, Josué já trabalhou na construção civil, em lojas de sapatos e posto de combustíveis. Nunca esbanjou, mas sempre teve uma vida digna. Agora aposentado, recebe um salário mínimo por mês e precisou fazer um empréstimo para pagar o funeral de um parente. A dívida liquidou suas finanças. Hoje ele mora de favor numa casa emprestada e precisa recorrer às quentinhas para garantir ao menos o almoço.
— Pego comida aqui todo dia. O pouco que sobra eu cuido: é a janta. Quando tem, tem. Quando não tem, não janto. Agora faz bastante tempo que eu não janto, uma semana ou mais. Bate a fome, dá uma dor no estômago, mas vou fazer o quê? Carne às vezes eu como, vou na casa de um, na casa de outro, daí eu como. Tenho muita amizade, mas não vou chegar todo dia na casa dos outros. Quando sobra um dinheirinho eu compro ovo. Mas essa marmita aqui é muito boa. Se não tivesse isso aqui nem sei como ia fazer. Não tenho nada de comida em casa. Nunca vivi uma situação como essa. Eu tinha uma vida boa quando era mais novo. Trabalhava, vivia bem, até um dinheirinho no banco eu tive. Agora não tenho mais nada. Sou aposentado, mas me sobram só R$ 200 por mês. Ficou ruim a situação pro meu lado depois de velho. Na idade que tô, não tenho mais o que fazer também. Esperança de que eu vá viver bem de novo é bobagem. Vou fazer 69 anos, não faço mais planos pra vida. Não tem emprego pros mais novos, vai ter pra mim?
A resignação de Josué diante do próprio destino é comum a vários personagens desta reportagem. Antonio Augusto Costa Lima, o primeiro a relatar os sintomas da fome, no início do texto, era casado, tinha uma vida tranquila e vários clientes. Sem carteira da OAB, conduzia os processos que a ex-mulher, advogada, assinava.
Temos 1 milhão de pessoas no Rio Grande do Sul em situação de extrema pobreza, vivendo com menos R$ 89 por mês. Já arrecadamos 700 toneladas de alimentos, distribuímos 65 mil cestas básicas, mas não basta, já que as pessoas não têm dinheiro para comprar gás.
JULIANO SÁ- Presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável
Com a separação, veio a ruína. Hoje ele vive num terreno invadido, numa casa sem água nem energia elétrica. Lava as roupas na praça, na mesma torneira onde enche bombonas para tomar banho.
Com a renda restrita a R$ 150 do Bolsa Família, Antonio mendiga passagens no trensurb para se deslocar entre Canoas a Porto Alegre e conseguir comer no Pop Rua RS, um centro de acolhimento criado pelo governo do Estado que todo dia distribui café da manhã, almoço, café da tarde e jantar a 300 pessoas no CTG Estância da Azenha. Depois do almoço, ele senta à sombra de uma árvore e escreve, rascunhando poemas e histórias enquanto esperando a hora da janta.
Antonio diz estar desenvolvendo quatro peças de teatro e pretende vender poesias nos semáforos. Não procura mais emprego. Cansou de pedir trabalho. Vive apenas atrás da próxima refeição, “qualquer coisa que se debruce na língua/ que distraia em mordidas, mordidelas, as arcadas dentárias/ que enterre, soterre a líquida, tão ácida saliva, tão sempre salivante por tão famélica/ que pela goela passe, que desça/ que ao estômago chegue/ E lá chegando se assente/ alimente”, conforme versou em folhas catadas ao léu.
— Pensei que ia ser fácil pra mim conseguir emprego. Sei vender, me comunico bem, escrevo bem, sei até cozinhar. Comecei a procurar, me oferecer. Nada. Nunca apareceu nada. Daí resolvi que vou ser poeta, escritor, dramaturgo. E dane-se. Se eu não conseguir, morri — conforma-se.