Câmeras não educam
Câmeras não educam

Aline Kerber (*)
A recente aprovação do Projeto de Lei 671/23, do vereador Jesse Sangali (PL), que institui a instalação de câmeras dentro das salas de aula da rede municipal de Porto Alegre, representa um grave retrocesso para a educação e para os direitos fundamentais de estudantes e educadores. O fato de ter sido aprovado, contudo, não o torna legítimo ou benéfico. Pelo contrário, consolida uma medida que interfere diretamente no processo pedagógico e viola garantias constitucionais.
Na audiência pública que precedeu esta triste aprovação, tive a oportunidade de manifestar minha posição contrária ao PL, fundamentando-me em diversos aspectos legais e pedagógicos. Relembrei a Indicação do CME/POA 15/21, um documento técnico e democrático do Conselho Municipal de Educação que expressamente veda o uso de câmeras e videomonitoramento em sala de aula. Destaquei, ainda, os artigos 5º e 6º da Constituição Federal, que asseguram a inviolabilidade da imagem, da intimidade, da vida privada e, sobretudo, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.
O projeto é uma afronta não só à Carta Magna, mas também ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), pois expõe dados pessoais sensíveis de crianças e adolescentes, transformando seu ambiente de aprendizado em um palco de vigilância constante.
O clima daquela audiência foi um retrato fiel de como o medo continua sendo um mau conselheiro para as políticas públicas. Foram recorrentes falas que criminalizam professores, classificam eventuais agressores como “doentes mentais” e defendem medidas disciplinares com base na lógica punitivista das gravações. Trata-se da mesma lógica autoritária que dialoga com o fantasma do “Escola sem Partido” – movimento que, vale recordar, já foi judicialmente derrotado em Porto Alegre por uma ação conjunta do Simpa, da Defensoria Pública e do PSOL.
A mensagem que fica com a aprovação deste PL é perversa: em vez de buscar garantir segurança, o poder público fomenta a perseguição, a censura e o silenciamento no espaço escolar. Câmeras não constroem confiança; a substituem por suspeita. Não previnem violências estruturais; as deslocam para fora do campo de visão das lentes. Não fortalecem a escola; asfixiam o seu ambiente de livre pensamento e construção do conhecimento.
Educação de qualidade se constrói com confiança, não com vigilância. Onde há diálogo, transparência e relações saudáveis, o aprendizado prospera e a segurança se fortalece organicamente. Precisamos é de iniciativas que resgatem o valor da palavra, que cuidem da saúde mental de estudantes e educadores e que favoreçam ambientes pedagógicos verdadeiramente acolhedores.
Seria mais produtivo e efetivo retomar programas como o Serviço de Promoção da Vida na Educação, implementar políticas sérias de mediação de conflitos, garantir a climatização adequada das salas e estruturar uma ronda escolar da Guarda Municipal orientada por gestão de dados e voltada à prevenção social e situacional das violências.
Câmeras não educam. O que protege de fato crianças, adolescentes e educadores é a construção coletiva de um ambiente de confiança, o respeito à dignidade humana e a valorização intransigente da pluralidade de ideias no seio da comunidade escolar. A aprovação do PL 671/23 é uma vitória da vigilância sobre a educação, e sua sombra sobre as salas de aula de Porto Alegre será um lembrete diário de que escolhemos o caminho mais fácil do controle, e não o mais digno da confiança.

(*) Socióloga, especialista em Segurança Pública e Prevenção da Violência na Escola, presidenta de honra da Associação Mães e Pais pela Democracia
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2025/10/cameras-nao-educam-por-aline-kerber/