Carta à comunidade escolar do RS

Carta à comunidade escolar do RS

Carta às educadoras, estudantes/mães/pais e comunidade escolar do RS

 

O RS tem 2.497 escolas na rede estadual de ensino. Isso envolve mais de 800 mil alunos e em média 60 mil educadores (entre professores e funcionários). Uma parcela dessas pessoas depende de transporte (escolar, vans particulares e transporte público). Mas as escolas não são só números e dados, tampouco apenas paredes de concreto. Escola é espaço de gente. Gente que se reúne INEVITAVELMENTE.

Aglomerações acontecem na sala de aula, nos corredores, muitas vezes estreitos, no refeitório, no pátio.

Na aula, a professora chega perto dos alunos, os colegas ajudam-se mutuamente, merendeiras e estudantes têm contato todos os dias. O governo do RS até lançou protocolos para o retorno das aulas, mas para quem conhece minimamente a realidade das escolas públicas, sabe bem que não é possível que eles sejam aplicados.

Sem a pandemia, todos os dias as escolas lidam com crianças gripadas, doentes, com febre, com dor de cabeça. Todos os dias é preciso entrar em contato com algumas famílias em função dessas situações. E neste momento de pandemia, como a escola faz? Manda a criança embora ao primeiro sintoma? Chama familiar? E aqueles que precisam esperar o ônibus buscar? Algumas coisas parecem simples mas quando a gente vivencia a realidade escolar percebe que é tudo muito mais complexo. As salas de aula, que deveriam respeitar o espaço de 1m² por aluno, não tem essa possibilidade em situação normal. Como vai manter o distanciamento orientado pela Organização Mundial de Saúde ou mesmo dos protocolos lançados pelo governo – de 2m de distância? Não existem salas de aula sobrando nas escola para dividir as turmas como sugere o governo que, ao que parece, anda bem distante da realidade das escolas de sua competência.

O governo coloca ainda como medida, “garantir que os estudantes lavem as mãos com água e sabonete líquido ao entrar na escola”. Boa parte das escolas tem falta de monitores para resolver problemas básicos do dia a dia. Quem vai conseguir garantir esse tipo de cuidado, quando a escola em situação comum, já tem seus trabalhadores ocupados com as tarefas necessárias da rotina escolar? Ou será que o governo quando coloca que “os funcionários devem ajudar os alunos menores a fazer a devida higienização” está propondo que se feche a secretaria, que funcionárias da limpeza deixem de fazer o que necessitam para a higienização da escola? Que horas começa a aula depois da fila e da aglomeração nos banheiros para higienização das mãos? Sem contar que o governo não se coloca responsável, nestes protocolos, por adquirir sabonete líquido, toalha de papel, álcool em gel, etc. Os repasses financeiros para as escolas estão atrasados há meses! Não é apenas a Saúde que está em colapso, a Educação vive esta realidade há tempos!

O número de contaminados tem aumentado assustadoramente no Brasil. Se 1% dos estudantes do RS se contaminar, teremos quantas famílias afetadas? O governo diz que irá resguardar os trabalhadores do grupo de risco, mas quem vai conseguir proteger os familiares das crianças e dos professores que são do grupo de risco e que terão membros da família frequentando um ambiente com alto potencial de contaminação como a escola? É preciso ainda, pensar nos alunos que têm doenças respiratórias. Não são poucos. Um/a professor/a pode entrar em até 5 turmas por turno e para que a aprendizagem se dê de forma eficiente, o profissional que educa precisa chegar perto dos estudantes para auxiliar nas atividades, tem contato com os trabalhos e materiais dos alunos. A chance de se contaminar é muito grande e de transmitir o vírus após o contágio também. Nossas vidas importam!

O que precisamos neste momento é pensarmos o que é mais importante para os estudantes, pois é em função deles que o ano letivo tem sentido. Passou um trimestre, quase um semestre. O que é importante? “Vencer” um ano burocraticamente apenas para constar no histórico escolar daqui a alguns anos? Ou queremos que os estudantes aprendam e vivenciem a escola com segurança e tenham direito a usufruir do conhecimento dos professores e que acima de tudo sejam sujeitos na construção coletiva do conhecimento? Como os estudantes acompanharão o próximo ano, com aprendizagem defasada apenas porque não se repensou o ano letivo? Aliás, o ano letivo não precisa ser necessariamente cumprido dentro do ano civil como estamos acostumados. Um ano que foi pensado para 2020, por motivos de força maior e pela segurança da vida de todos, pode ser adiado para ser concluído mais à frente, quando a pandemia não for mais um problema real e fatal.

A aprendizagem é influenciada por diferentes fatores, como econômicos, sociais, psicológicos, habitacionais, nutricionais. No momento atual, não podemos dizer que algum desses aspectos está indo bem para que os estudantes não tenham prejuízos na aprendizagem e os profissionais da educação não tenham seu desempenho afetados.

Que ano letivo é este em que, os estudantes ou professores sob qualquer suspeita de gripe precisam ficar em casa isolados, para que, na hipótese de estar com Covid não transmitam para mais pessoas da escola? Como fica a garantia do aprendizado dos alunos que precisarão faltar nesse caso. Como fica o andamento das aulas se os alunos estarão se revezando em faltas diante dos problemas respiratórios que acontecem no inverno? Já que este será um inverno com o covid como diferencial?

Será que é possível considerar perda do ano letivo, quando o aluno em segurança, puder ter seu aprendizado garantido com a presença do professor em sala de aula dedicado exclusivamente a tarefa de ensinar? Será que podemos considerar que os estudantes estão perdendo o ano se voltarem para a escola num ambiente de troca de saberes para o qual ela existe, com a concentração voltada apenas para o aprendizado? Retornar agora de forma arriscada não garante que as aulas não tenham que ser suspensas logo ali na frente diante da provável tragédia anunciada. Como ocorreu em diversos países onde as aulas retornaram apesar da pandemia. Não deu certo. O que o governo nos propõe com seus projetos é uma verdadeira gambiarra pedagógica.

As demissões em meio à pandemia têm sido um problema real/brutal enfrentado pela classe trabalhadora. Se as escolas estiverem abertas a possibilidade de trabalhadores com filhos na escola se infectarem aumenta. Não há política de garantia para as pessoas não perderem seus empregos. Ficar doente e precisar se afastar do trabalho é arriscado, visto que o distanciamento social não tem sido tratado como direito e sim como privilégio de poucos.

Não é momento de afrouxar ainda mais o isolamento, em especial locais como escolas, de grande aglomeração. A escola não tem estrutura física ou humana para garantir a segurança dos estudantes, dos profissionais e de suas famílias em um momento tão delicado como o de uma pandemia mundial. É hora de fazer a defesa radical pela vida de cada um e de cada uma. Ano letivo é possível recuperar.

Quem recupera as vidas perdidas? Acreditamos no sentido da escola como ambiente de construção do conhecimento, desenvolvimento da autonomia e espaço de socialização. Não aceitamos que esse momento dramático seja utilizado para diminuir o sentido da escola e prejudicar os estudantes que não terão garantia de qualidade e aprendizado em meio a tantas preocupações, apenas para que haja um cumprimento burocrático daquilo que é essencialmente humano.

 

Gil Duarte, professora da rede pública estadual do Rio Grande do Sul.




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