CIEPs – 40 anos

CIEPs – 40 anos

CIEPs – 40 anos

Mural no CIEP Darcy Ribeiro

 

Por MICHEL HOOG CHAUI DO VALE & NILCE ARAVECCHIA*

 

Os CIEPs foram algo excepcional no país naquele momento: uma escola de tempo integral para as crianças pobres que se concentravam massivamente nos grandes centros urbanos

 

A eleição de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro

Em maio de 1985 (mais precisamente no dia 8), o Rio de Janeiro acompanhava um fato histórico no campo da educação pública, que ficaria marcado na memória e na paisagem carioca a partir de então: a inauguração do primeiro Centro Integrado de Educação Pública – CIEP.

Há 40 anos, o conjunto escolar, instalado no bairro do Catete, chamava atenção por algumas características notáveis. Seus edifícios em concreto armado, que combinavam linhas retas e curvas, levavam a assinatura do maior arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer, responsável por, entre outras façanhas, a criação da nova capital brasileira.

Além disso, o projeto havia sido realizado em tempo recorde ao lançar mão da tecnologia de pré-fabricação em concreto armado. Tal solução foi o meio encontrado para viabilizar a produção anunciada de 500 escolas de tempo integral com capacidade para 1000 alunos cada uma – o que ocorreria durante as duas gestões do governador Leonel Brizola (1983-87 e 1991-94).

A proposta fazia parte de um programa ambicioso de duas figuras historicamente ligadas à educação pública: Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, eleitos governador e vice na primeira eleição da redemocratização brasileira, o que levou a população a batizar informalmente o projeto de “Brizolão”. Em 1982, a dupla fez história com um vitorioso plano de governo de escala inédita que enfrentava, ao mesmo tempo, alguns dos nossos principais problemas históricos: a consolidação da democracia, a redução das desigualdades e a promoção de educação pública de qualidade.

A eleição da chapa pelo PDT retomava, com o partido recém-criado, a tradição trabalhista, herdeira do PTB de Vargas e Jango, atualizada para os anos 1980. Reafirmava os princípios do nacionalismo, da soberania e do desenvolvimento. Incorporava ainda bandeiras contemporâneas relativas às minorias e aos movimentos negro e feminista – lembrando da militância partidária de Lélia Gonzales e Abdias do Nascimento, entre muitos outros.

Representou ainda a articulação de discursos e formulações de lideranças consagradas, reaglutinadas na nova agremiação, a um trabalho de mobilização de bases populares que atuaram na construção de um programa democrático de governo para o estado do Rio de Janeiro.

Políticos educadores

As trajetórias dos dois líderes eleitos se combinaram na campanha eleitoral de 1982, mas era tributária da atuação política no período democrático interrompido pelo golpe militar de 1964. Enquanto Darcy Ribeiro marcava presença no gabinete ministerial de João Goulart, o gaúcho Leonel Brizola despontava como importante liderança de esquerda no seu mandato de deputado federal pelo Rio de Janeiro. Em situação de exílio, ambos mobilizaram esforços para reorganizar setores progressistas e reconstruir a democracia no país. Já no ambiente da redemocratização, materializavam seus desejos de reconectar suas trajetórias e lutas ao solo brasileiro.

Desde sua aproximação ao educador Anísio Teixeira ainda nos anos 1950, o ex-comunista Darcy Ribeiro havia redirecionado seu interesse acadêmico para a questão educacional.  Consolidou-se como expoente dessa causa ao lutar pela viabilização da Universidade de Brasília na nova capital, apresentando-se ao mesmo tempo como político e realizador, em adição à sua atuação inicial no campo da antropologia, diversificando as suas “peles” e ampliando os seus “fazimentos”, como costumava dizer.

Leonel Brizola, que iniciara sua atividade política como militante do campo trabalhista, desde os tempos de prefeito (1956-1958)  e depois governador no Rio Grande do Sul (1959-1963), havia combinado políticas de desenvolvimento, reforma agrária e infraestrutura a um programa de construção de milhares de pequenas escolas pré-fabricadas em madeira, as chamadas “brizoletas”, que se espalharam pelo território gaúcho ampliando significativamente o acesso à educação.

Dois grandes entusiastas instrumentados por uma visão histórico-crítica da formação do Brasil e dos seus desafios convergiam em suas trajetórias para a proposição da educação como meio de transformação da sociedade brasileira. A combinação de um pensamento arguto sobre o país e do desejo de mudança presente em ambos desaguou no programa do governo carioca eleito democraticamente em 1982, cuja prioridade máxima foi a política educacional, sistematizada no Programa Especial de Educação (PEE), cuja principal ação seria uma escola de educação integral em tempo integral.

O projeto dos CIEPs

Os CIEPs nasceram assim, de uma ideia que, ainda que não fosse exatamente original, era algo excepcional no país naquele momento: uma escola de tempo integral para as crianças pobres que se concentravam massivamente nos grandes centros urbanos. As precárias condições de subsistência das milhares de famílias nas favelas e periferias eram resultado do processo de urbanização descontrolado e da persistência de níveis baixíssimos de renda para a maior parte da população.

Nesse contexto, o diagnóstico apontava que a educação pública era insuficiente e inadequada para as camadas populares. A resposta seria uma escola voltada para as famílias dos trabalhadores que cuidasse das crianças durante todo o dia, garantindo alimentação e saúde através de tratamento médico-odontológico, além de higiene pessoal. Suas atividades seriam abrigadas em um conjunto de edifícios para salas de aula, biblioteca e ginásio coberto com vestiários, cuja volumetria deveria se constituir em referência urbana nos mais variados contextos de implantação. A arquitetura, como signo, deveria comunicar a presença do Estado e do fortalecimento das relações comunitárias, e convidar a população a uma interação e identificação com o equipamento público da mais alta qualidade espacial e construtiva.

Além de contar com um projeto pedagógico específico que considerava o repertório dessas comunidades e priorizava a alfabetização, o CIEP foi pensado para se tornar um espaço gregário e acolhedor, ao mesmo tempo que se consolidasse como um equipamento de práticas que reforçava os traços culturais da população local. Para tanto, foi criada a figura do animador cultural, que era recrutado geralmente na própria comunidade e fazia a ponte entre o ensino e a cultura popular.

Com essa visão, o CIEP se tornou escola, centro comunitário, ponto de cultura, ambulatório médico e odontológico, refeitório, biblioteca comunitária, moradia para crianças em situação vulnerável e centro esportivo para todo o bairro, aberto sete dias por semana. Uma escola-casa que era também uma escola-cidade em lugares onde o Estado até então ou não marcava presença, ou aparecia somente como força opressora.

A arquitetura dos CIEPs

O conjunto construído que formava o CIEP no bairro do Catete seria reproduzido em mais de 500 localidades de todo o estado do Rio de Janeiro. O projeto arquitetural de Oscar Niemeyer se diferenciava pela aplicação de algumas peças pré-fabricadas em concreto armado, empilhadas como um jogo de montar. Os três principais edifícios – o prédio de aulas, a biblioteca e o ginásio – seriam organizados de acordo com os terrenos disponíveis, geralmente cedidos pelas prefeituras, ávidas em receber os brizolões.

A capital e a Baixada Fluminense, que concentravam as maiores demandas, tiveram suas paisagens marcadas por inúmeros conjuntos formados por três volumetrias principais: o grande bloco de sala de aulas com três pavimentos, com suas características janelas de cantos arredondados; a biblioteca de planta octogonal; e a quadra multiuso coberta, com suas grandes vigas em “Y” apoiadas sobre pórticos igualmente arredondados. Em todos os casos, nos diferentes arranjos possíveis dos blocos, se criava uma presença arquitetônica muito forte, cheias de surpresas estéticas, como observou o professor e poeta Eucanaã Ferraz, que iniciou sua trajetória profissional como animador cultural no CIEP Nova Aurora, em Nova Iguaçu.

A produção dos CIEPs – legado de uma “tradição” de educadores-pensadores

Além de movimentar a paisagem urbana e transformar a vida de milhares de estudantes e famílias de baixa renda em todo o estado, os CIEPs (e o programa educacional do governo como um todo) foram responsáveis por estimular a economia de forma impressionante. Com a aplicação de recursos públicos da ordem de 20 a 30% do orçamento carioca e fluminense direcionados para a rubrica da educação, parte desses investimentos se deram justamente na sua construção. Além dessa dinamização com geração de empregos, o programa foi responsável pela aplicação massiva de tecnologia construtiva pré-fabricada, estimulando o desenvolvimento técnico e a expansão da pesquisa no setor. Não à toa, o programa era conduzido pela Faperj, sob a coordenação geral do vice-governador Darcy.

Se, por um lado, os CIEPs eram produzidos por empreiteiras de grande porte, com capacidade técnica e financeira de replicar o projeto desenvolvido por Oscar Niemeyer, por outro lado escolas isoladas, casas comunitárias, casas da criança e postos de saúde eram viabilizados por outro sistema pré-fabricado. Tratava-se de centenas de outras construções de menor porte, feitas em argamassa armada, uma técnica de peças esbeltas estruturadas com finas telas metálicas, produzidas na Fábrica de Escolas, equipamento público mantido pelo estado.

O projeto foi idealizado pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, responsável pelo desenvolvimento dessa tecnologia em escala industrial, cujos componentes seriam aplicados em muitas áreas de urbanização precária, onde não estavam disponíveis lotes de grandes dimensões necessários para a implantação de um CIEP. Lelé, que iniciara sua carreira em Brasília e que seria reconhecido mais tarde pelos seus projetos de hospitais públicos de reabilitação – a Rede Sarah –, aplicava no Rio de Janeiro sua expertise em produção leve pré-moldada de equipamentos urbanos, já experimentada em Salvador e Abadiânia.

Juntos, CIEPs e Fábrica de Escolas representaram um esforço inédito de ampliação da rede pública escolar com resultados expressivos que combinavam diferentes abordagens produtivas para a construção de prédios e de infraestrutura pública, motivado pela gigantesca demanda por educação. Serviram de estratégias combinadas que não se restringiram a reduzir o déficit de vagas na rede escolar, mas atrelaram a volumosa construção de edifícios a um propósito claro de desenvolvimento tecnológico lastreado na produção de uma arquitetura de ponta.

Um projeto de desenvolvimento que adotava técnicas de planejamento econômico no território estadual, e que tinha tanto por princípio quanto por objetivo a dimensão reprodutiva da vida dos trabalhadores. Por fim, ao reunir arquitetos que haviam participado diretamente de um projeto de país no pré-64, esses sujeitos públicos deram sinais importantes de que a identidade nacional e moderna deixara estruturas indeléveis. Mas depois de passados 40 anos, intriga pensar que tenha sido efetivado justamente na década de 1980, que seria chamada depois de “perdida” por parte da intelectualidade que analisou a situação do endividamento dos países latino-americanos.

Mas se tamanho feito teve lugar diante de tantas vicissitudes, talvez seja passível de ser recuperado a qualquer tempo. Sua rememoração é necessária não para repeti-lo como farsa, mas para requerer a herança de uma construção intelectual obstinada, que fincou raízes de maior duração.

*Michel Chaui do Valearquiteto e urbanista, é doutorando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

*Nilce Aravecchia é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

 

 

Relatório do 1º Congresso do PDT – contribuições para a política cultural. Fonte: FUNDAR




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