Cobrar mensalidade em Universidades

Cobrar mensalidade em Universidades

Cobrar mensalidade não resolve financiamento de universidades federais

O mestre em Física e doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) — Nelson Cardoso Amaral — explica a questão

06/09/2024

 

 

 

 

Mitos da Educação: cobrança de mensalidade não é solução para financiar universidades federais


Quando se discute sobre o financiamento das universidades federais brasileiras e, em especial, nos momentos em que elas estão subfinanciadas com relação às despesas de manutenção e desenvolvimento, surge a afirmação de que a solução para esse problemas seria a cobrança de mensalidades dos estudantes.

Esta afirmação se sustenta em dois mitos que permanecem ao longo do tempo. O primeiro deles é o de que a grande maioria dos estudantes das universidades federais são egressos de classes sociais mais abastadas, tendo frequentado o ensino médio em escolas privadas. E que, portanto, poderiam continuar pagando mensalidades, como faziam antes.

A ideia acima já era equivocada no passado, e torna-se ainda mais errada nos tempos atuais. A Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) realizou nos últimos 20 anos cinco pesquisas sobre o perfil socioeconômico e cultural dos estudantes das Universidades Federais (UFs). Elas foram feitas em 1996, 2003, 2010, 2014 e 2018. Ao serem perguntados se realizaram o ensino médio nos setores público ou privado, a resposta dos estudantes na pesquisa mais atual, de 2018, foi a de que 64,7% o fizeram nas escolas públicas e 35,3% nas escolas privadas. Mesmo em 1996, esses percentuais eram de 45,0% nas públicas e 55,0% nas privadas, o que também não confirma o mito de que a grande maioria dos estudantes das UFs frequentou o ensino médio em escolas privadas.

O segundo mito é o de que os estudantes de famílias mais ricas são os que frequentam as UFs. A pesquisa de 2018 também mostrou que esta afirmação não é verdadeira. O percentual dos estudantes com renda mensal de até 1 e ½ salário-mínimo por pessoa da família, a chamada renda per capita, é de um valor muito elevado, 70,2%, lembrando que esse percentual na pesquisa realizada em 1996 esse percentual era de 44,3%.

Note-se que mesmo em 1996, já era grande o número de estudantes que pertenciam a esse estrato mais baixo de renda. Esse limite de renda per capita, de até 1 e ½ salário-mínimo por pessoa da família, é o mesmo utilizado pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) para possibilitar a obtenção de uma bolsa integral em instituições privadas e, são portanto, famílias que não poderiam pagar mensalidades para seus filhos e filhas.

A pesquisa de 2018 chama ainda a atenção pelo fato de que 26,6% dos estudantes com o benefício vêm de famílias cuja renda mensal é de até meio salário mínimo por pessoa. É inegável que estudantes com esse perfil sócioeconômico necessitam de moradia, alimentação e algum tipo de bolsa para permanecerem frequentando seus cursos de graduação até a conclusão.

Pode-se creditar essa mudança de perfil dos estudantes - tanto na origem, se de escolas públicas ou privadas, quanto no perfil de renda - à aprovação da Lei 12.711 de 29/08/2012, a chamada Lei de Cotas, que estabeleceu:

“As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” e ainda que “No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita” .

Deve-se registrar que o perfil dos estudantes das UFs mostrado na pesquisa Andifes de 2018 ainda não reflete o perfil socioeconômico da população brasileira. A tabela que segue mostra, por classe de rendimento mensal total familiar, o percentual da população brasileira e o percentual dos estudantes das UFs na pesquisa de 2018. Os dados da população brasileira são da PNAD 2015, tabelas 6.1 e 7.3.

É flagrante a assimetria existente entre as classes de rendimentos da população brasileira e dos estudantes das UFs a partir da renda de cinco salários-mínimos, o que implica na necessidade da continuidade da Lei de Cotas e com parâmetros inclusivos ainda mais eficientes.

Pode-se considerar que a reformulação da Lei de Cotas realizada em 2023, a Lei N° 14.723 de 13/11/2023 já efetivou mais um passo nesse caminho ao estabelecer que “no preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% deverão ser reservadas aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo per capita”. E que “no preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% deverão ser reservadas aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo per capita.”

Houve, portanto, uma redução de salário mínimo e meio para 1 salário mínimo na renda das famílias, o que permitirá a entrada de pessoas oriundas de famílias de renda ainda mais baixa que na versão anterior da Lei de Cotas. Próximas pesquisas a serem realizadas pela ANDIFES permitirão acompanhar a evolução do perfil socioeconômico dos estudantes sob essas novas condições, e compará-los com o perfil da população brasileira.

É preciso lembrar, também, que a educação superior brasileira já é uma das mais privatizadas do mundo, 78,0% das matrículas estão nesse setor, segundo o Censo da Educação Superior de 2022. A introdução de mensalidades nas instituições públicas é uma ação que pode ser associada à privatização, o que inviabilizaria ainda mais a presença das pessoas oriundas de famílias com renda mais baixa realizando educação superior.

Registra-se, ainda, que devido à enorme desigualdade brasileira e o perfil das famílias dos estudantes, como visto anteriormente, teríamos um valor equivalente a apenas 5,5% dos recursos totais das UFs, se considerarmos que o valor total dessas instituições, se considerarmos que o valor anual a ser cobrado de cada estudante seria equivalente a R$ 3.332,00 com renda por pessoa da família a partir de 2 salários-mínimos, o que equivaleria a 10% da renda per capita da população brasileira.

A manutenção desse mito, se considerarmos os argumentos apresentados anteriormente, pode ser considerada uma abominação pelo fato de ele estar suportado na grande desigualdade existente na sociedade brasileira. Além de contrariar a Constituição Federal de 1988, que no seu artigo 206 registra e garante um de seus mais importantes direitos relativos à educação: “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”.

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