Colapso na Educação Pública
Das Big Techs ao Consenso de Washington: o colapso na Educação Pública
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Ligia Bacarin
O que vivemos atualmente no chão da escola é a engrenagem de um projeto de morte: o sangue da professora Elisabete Tenreiro, esfaqueada aos 71 anos por um aluno de 13 em São Paulo, não escorreu apenas no chão da sala de aula. Escorreu de feridas abertas por décadas de políticas que transformaram a educação em território de guerra. O caso, tratado como “tragédia isolada”, é a ponta de um iceberg: o Brasil lidera rankings globais de violência contra educadores, com 54% dos professores relatando agressões verbais, físicas ou psicológicas. Mas a violência visível é apenas o sintoma mais brutal de um projeto político que une o neoliberalismo predatório ao conservadorismo autoritário, cujas raízes remontam ao Consenso de Washington – um pacote de medidas que, a partir dos anos 1990, transformou a educação em commodity e professores em corpos descartáveis.
I. Consenso de Washington: A Raiz do Colapso
O Consenso de Washington, formulado em 1989 por FMI, Banco Mundial e Tesouro dos EUA, foi a cartilha que orientou a devassa neoliberal na América Latina. Suas diretrizes – privatização, austeridade fiscal e desregulamentação – converteram o Estado de garantidor de direitos em gestor de mercadorias. Na educação, isso significou:
- Subfinanciamento estratégico: O investimento público em educação foi reduzido para menos de 5% do PIB, metade do previsto no Plano Nacional de Educação.
- Mercantilização: Escolas públicas foram entregues à lógica do mercado, com terceirizações e parcerias público-privadas que drenaram recursos para empresas.
- Precarização do trabalho docente: Concursos públicos foram substituídos por contratos temporários, fragilizando a categoria e silenciando dissidências.
Como analisa Vitor Henrique Paro em Educação como Exercício do Poder, o neoliberalismo não se limita a reformas econômicas: é um projeto de reconfiguração do poder social, onde a educação é instrumentalizada para produzir subjetividades compatíveis com a lógica de mercado.
O neoliberalismo não se limita a reformas econômicas: é um projeto de reconfiguração do poder social, onde a educação é instrumentalizada para produzir subjetividades compatíveis com a lógica de mercado.
II. Big Techs e Plataformização: O Neocolonialismo Digital
A pandemia foi a janela de oportunidade para a invasão definitiva das Big Techs na educação. Sob o discurso da “modernização”, empresas como Google, Microsoft e Meta avançaram sobre escolas públicas, impondo plataformas que transformam professores em operadores de algoritmos e alunos em fontes de dados.
Mecanismos de Controle:
1. Vigilância e extração de dados:
- 90% das escolas públicas usam ferramentas de Big Techs sem políticas de proteção de dados.
- Dados de 36 milhões de alunos brasileiros são vendidos para empresas de recrutamento e até forças armadas estrangeiras.
2. Precarização do ensino:
- Plataformas como Google Classroom e Quizizz padronizam conteúdos, apagando culturas locais e substituindo a relação pedagógica por métricas de engajamento.
- Professores são demitidos por criticar ferramentas digitais, como o caso da professora Marília Rocha, demitida no Paraná por postar “Quizizz é digitalização da exploração”.
A pesquisadora Giuliana Volfzon Mordente, em Neoliberalismo Escolar: Subjetivações Submissas da Educação Brasileira, demonstra como a “inovação educacional” opera como mecanismo de controle biopolítico:
“A plataformização não é ferramenta, mas estratégia de governo neoliberal que elimina o dissenso ao transformar educação em zona de saque de dados e adestramento”.
Mordente desmonta a falácia da neutralidade tecnológica, revelando como as Big Techs recodificam práticas pedagógicas sob lógicas empresariais, onde estudantes se tornam “empreendedores de si” e o conhecimento é reduzido a competências para o mercado.
90% das escolas públicas usam ferramentas de Big Techs sem políticas de proteção de dados.
Lucros astronômicos, educação espoliada:
- O mercado global de EdTech vale US$ 404 bilhões, dominado 74% por Big Techs.
- O Brasil gastou R$ 23 bilhões em contratos com techs estrangeiras (2014-2025), enquanto 80% das escolas não têm climatização ou internet estável.
“Plataformas não ‘modernizam’: transformam educação em mineração de dados para o capital financeiro”.

III. Militarização: O Braço Armado do Conservadorismo
Enquanto as Big Techs controlam o método, a militarização controla os corpos. O Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim), criado em 2019, é a face mais visível dessa aliança entre neoliberalismo e autoritarismo:
Dados da Repressão:
- Expansão acelerada: 792 escolas militarizadas em 2025 (aumento de 245% desde 2018).
- Censura e violência:
- 72% dos docentes em escolas militarizadas relatam assédio moral.
- No Paraná, policiais vetam livros sobre ditadura e expulsam alunos que “questionam a disciplina”.
- Perseguição ideológica: Em Minas Gerais, 47 professores foram processados por “doutrinação” (2020-2023).
A Aliança Perversa:
- Interesses econômicos: Escolas militarizadas recebem até R$ 410 mil/ano em verbas extras, enquanto escolas regulares sofrem cortes.
- Controle social: Como analisa Rosana Campos (UFSM), “o neoliberalismo fabrica indivíduos competitivos, não cidadãos críticos”. A militarização é a engrenagem que força essa transformação.
IV. Adoecimento e Morte: O Preço da Resistência
A fusão entre plataformização e militarização produz um ambiente de terror que consome professores vivos:
Estatísticas do Extermínio:
- Burnout: 30% dos professores brasileiros sofrem de esgotamento profissional (o dobro da média nacional).
- Assédio institucional: 75% dos professores sofrem assédio moral, 49% praticado por direções escolares.
- Morte como epílogo: Só no Paraná, 8.888 afastamentos por saúde mental em 2024 (24 professores/dia).
Casos que Escancaram a Crueldade:
- Silvaneide Monteiro (PR): Morreu de infarto em sala após cobranças por “baixo engajamento” no Quizizz.
- Rosane Maria Bobato (PR): Colapsou em escola terceirizada sem receber socorro.
- Elisabete Tenreiro (SP): Esfaqueada por aluno – a violência física como ápice de anos de assédio.
“O Burnout é o estágio final da violência: quando o professor acredita que sua dor é culpa sua”.
Mordente (2024) analisa que o burnout docente é necropedagogia: resultado planejado de um sistema que descarta corpos quando esgotados. A patologização do sofrimento – tratado como “falha individual” – oculta sua gênese política: a exploração capitalista que extrai até a última gota de energia vital.
V. Para Romper a Engrenagem:
- Desmercantilizar a educação: Estatizar redes terceirizadas e banir parcerias que vendem dados de alunos.
- Desmilitarizar as escolas: Extinguir o Pecim e retomar a gestão democrática.
- Proteger professores: Leis federal contra assédio moral e reconhecimento do burnout como doença ocupacional.
A resistência, como gritaram nas ocupações de 2016, segue viva: “Escola sem democracia é cela de condenação em massa!”. Resta saber se a sociedade brasileira terá a coragem de encarar o monstro que criou – e matá-lo antes que ele devora todos os que ousam ensinar.
Foto principal: Shutterstock
Referências
Mordente, Giuliana. Neoliberalismo Escolar e Processos De Subjetivação: Como a Educação ‘Inovadora’ Opera? UFRJ, 2023.
PARO, Vitor Henrique. Educação como exercício do poder: crítica ao senso comum em educação. São Paulo: Cortez. Acesso em: 20 ago. 2025. 2016
https://www.ufsm.br/midias/arco/sociedade-neoliberal-educacao-servico-mercado
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/3251
https://blogdaboitempo.com.br/2025/07/01/as-big-techs-e-a-invasao-colonial-da-educacao-publica
https://pecim.ibict.br/sobre-o-pecim
https://www.brasildefato.com.br/2025/08/14/quem-perde-quando-as-big-techs-ganham-dentro-do-brasil
https://www.marinha.mil.br/com3dn/ESCOLAS_C%C3%8DVICO-MILITARES
https://ojs.revistacontemporanea.com/ojs/index.php/home/article/view/5047
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Formada em História, Doutora em Educação e militante do Fortalecer.
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