Como as democracias morrem

Como as democracias morrem

Como as democracias morrem: o jogo de poder por trás da vontade popular

A democracia não acaba com um golpe. Ela se desfaz por dentro, aos poucos, com apoio das elites e silêncio de quem deveria reagir

 05/08/2025  - Antonioni Cassara/Mídia Ninja

 

 

 

Por Leila Cangussu

 

Você ouve falar de democracia todos os dias. Está nos discursos políticos, nas propagandas, nos debates eleitorais. Mas o que essa palavra significa na prática? E mais: como governos eleitos pelo voto popular podem virar as costas para o próprio povo que os elegeu?

Este artigo parte do livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, para explicar por que tantos regimes democráticos têm ruído por dentro — e o que isso tem a ver com o Brasil de hoje. Como a democracia se desfaz aos poucos, diante dos nossos olhos?

O que significa a palavra democracia?

Você já se perguntou o que significa a palavra democracia? A definição clássica costuma dizer que é o “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Mas quantas vezes você viu isso acontecer de verdade?

A ideia parece simples. Mas, na prática, democracia é conflito. É tensão entre interesses. É um campo de disputa constante sobre quem manda, quem decide e quem fica de fora. Entender o que significa a palavra democracia é o primeiro passo para não cair no conto de quem diz defender o povo, mas governa para os mesmos de sempre.

No papel, democracia é o regime em que a soberania pertence ao povo. Mas o que isso quer dizer num país em que as decisões centrais passam por acordos entre líderes partidários e ministros, longe dos olhos da população? O que significa dizer que o poder é do povo quando esse povo é empurrado para fora do orçamento, das pautas e dos espaços de decisão?

Daniel Ziblatt vai direto ao ponto. O maior risco não é o fim visível da democracia, mas sua desmontagem silenciosa. “A democracia não é um presente; é um projeto em disputa”, afirma.

Sem uma sociedade civil ativa, as instituições viram cenário. Estão lá, mas não funcionam como deveriam. Viram mecanismos de legitimação de quem já detém o poder. Continuam funcionando, mas para manter tudo como está.

Por isso, entender o que é democracia hoje vai muito além de apertar um botão na urna. É prestar atenção no que se faz com o orçamento público. É defender a liberdade de imprensa, a autonomia do Judiciário, a atuação dos órgãos de controle. É vigiar quem ocupa cargo público. É fazer barulho quando os espaços de participação são fechados.

Ziblatt lembra que a morte da democracia não é um evento. É um processo que começa quando você para de fazer a pergunta certa: quem está mandando aqui — e pra quem?

Como as democracias morrem: os sinais que ninguém te contou

Nos anos 1970, era fácil identificar um golpe: tanques nas ruas, parlamentos fechados, censura aberta, como vimos durante a ditadura militar. Hoje, o caminho é mais sutil.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostram que as ameaças ao sistema democrático não acontecem mais com rupturas espetaculares. Elas nascem de dentro. Presidentes eleitos democraticamente, com apoio popular, podem manipular leis, aparelhar instituições, intimidar a imprensa e sabotar adversários sem cancelar uma eleição sequer.

“As instituições continuam existindo. As eleições ainda acontecem. Mas os espaços democráticos se tornam cada vez menos competitivos. O jogo é manipulado de dentro.”  Daniel Ziblatt

Não se trata mais de acabar com a democracia de forma explícita, mas de esvaziá-la sem alarde. O voto segue acontecendo, mas deixa de ser capaz de mudar os rumos do poder. As instituições mantêm sua aparência, mas passam a funcionar em favor de um único projeto político. E é justamente essa forma silenciosa de erosão que torna o fenômeno tão difícil de combater.

“As democracias morrem por dentro, com a cumplicidade de elites políticas que preferem fechar os olhos em nome da estabilidade ou dos próprios interesses”, completa Daniel Ziblatt.

 

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Ciência Política da Universidade de Harvard, autores do livro

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Ciência Política da Universidade de Harvard, autores do livro “Como as democracias morrem”, lançado em 2018. Foto: Stephanie Mitchell

 

Os quatro sinais de alerta

Antes que a democracia deixe de existir, ela emite sinais. Ziblatt e Levitsky identificaram quatro atitudes comuns entre líderes que colocam a democracia em risco:

  1. Rejeição às regras do jogo democrático

  2. Negação da legitimidade dos adversários

  3. Tolerância à violência política

  4. Restrição às liberdades civis, inclusive da imprensa

Esses sinais já apareceram em democracias como a dos Estados Unidos sob Donald Trump, da Hungria com Viktor Orbán, na Turquia com Erdoğan e, sim, do Brasil nos últimos anos.

Ziblatt destaca que o maior risco não está apenas em quem rompe as regras, mas em quem se omite quando isso acontece. A democracia não morre só porque alguém a ataca — mas também quando quem deveria defendê-la se omite.

Tipos de democracia: teoria versus realidade

Você provavelmente já ouviu falar em democracia liberal, direta, representativa. Mas o que esses nomes significam no mundo real?

Daniel Ziblatt alerta: o risco à democracia não está só nos golpes explícitos, mas na distorção desses modelos por dentro, com aparência de normalidade institucional e manipulação silenciosa do poder.

Democracia direta

Inspirada na Grécia Antiga, prevê participação direta do cidadão nas decisões. Na prática, é pouco viável em países de grande escala. Mesmo com ferramentas digitais, a representatividade e a deliberação ainda enfrentam entraves reais.

Democracia liberal

A democracia liberal é o modelo mais comum no Ocidente. Baseia-se em eleições livres, separação de poderes e direitos civis. Mas, como mostram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, até democracias consolidadas, como a dos Estados Unidos, estão sob ameaça. A eleição de Donald Trump expôs o risco da quebra de normas democráticas não escritas.

“Democracias funcionam melhor — e sobrevivem mais tempo — quando essas regras não escritas de tolerância mútua e autocontenção institucional são respeitadas.”  Daniel Ziblatt

Segundo os autores, o problema não está apenas nas leis violadas, mas no abandono dos costumes políticos que mantêm o sistema de pé. A erosão dessas práticas abre espaço para o autoritarismo, mesmo sem rupturas formais.

 

 

Democracia representativa

Modelo predominante no mundo. Você escolhe alguém que decide por você. Mas o que acontece quando esse representante manipula o sistema para não sair do poder? Segundo Daniel Ziblatt, a crise atual tem muito a ver com essa ruptura da confiança entre representado e representante. Se a classe política se distancia das bases, o espaço para o populismo cresce.

Liberal x Representativa: qual a diferença?

A democracia liberal é um sistema baseado em instituições sólidas, separação de poderes e garantia de direitos individuais. Já a democracia representativa é uma forma de organizar a participação: em vez de votar diretamente nas decisões, você elege representantes para isso. Ou seja, uma complementa a outra — mas não são sinônimos. Um país pode ter eleições e parlamento (representativa), mas violar liberdades civis (não liberal).

Democracia autoritária

À primeira vista, tudo parece em ordem. Eleições acontecem, partidos existem, há parlamento e tribunais. Mas, na prática, o jogo está manipulado. É o que Ziblatt chama de autoritarismo competitivo.

Essa forma de governo não precisa acabar com o voto. Basta esvaziar seu impacto real. O resultado é um sistema onde o poder se perpetua sob uma fachada de normalidade institucional, dificultando a reação da sociedade e o reconhecimento do problema.

Democracia do Brasil em tempo de alerta

O Brasil vive numa democracia, mas com sinais preocupantes. Os últimos anos deixaram claro o quanto as instituições podem ser tensionadas, esvaziadas ou instrumentalizadas. E os alertas descritos por Ziblatt no cenário internacional também se aplicam por aqui.

8 de janeiro: uma tentativa de ruptura

invasão das sedes dos Três Poderes em 2023 escancarou a fragilidade institucional do país. Para Ziblatt e Levitsky, movimentos assim não acontecem do nada. Eles fazem parte de estratégias autoritárias que usam o próprio sistema contra ele. Quando líderes políticos instigam ou se omitem diante da violência contra instituições democráticas, o dano vai além do episódio: compromete a confiança no processo democrático.

Presidencialismo de coalizão: quando tudo vira moeda de troca

O modelo político brasileiro exige que o presidente componha alianças com diversos partidos para conseguir governar. Mas quando essa negociação vira moeda de troca constante, abre espaço para práticas clientelistas, favorecimentos e enfraquecimento da responsabilidade pública. Ziblatt alerta que, nesses contextos, a confiança nas regras do jogo se deteriora e o cinismo se instala.

A disputa por emendas e o controle do orçamento

Nos últimos anos, o orçamento público passou a ser influenciado por arranjos informais, como o chamado “orçamento secreto”. Na prática, isso reduz a transparência e dificulta o controle social. Quando os processos orçamentários se tornam opacos, a democracia se desgasta por dentro: enfraquece-se a noção de responsabilidade pública. O povo vota, mas não consegue acompanhar para onde vai o dinheiro.

Democracias perdem força quando a alocação de recursos escapa da fiscalização da sociedade e passa a sustentar projetos de poder.

 

Audiência no STF sobre orçamento secreto (10/10/2024). Executivo e Legislativo respondem a questionamentos do ministro Flávio Dino sobre transparência nas emendas RP8 e RP9. Foto: Rosinei Coutinho/STF

Audiência no STF sobre orçamento secreto em 10/10/2024. Executivo e Legislativo respondem a questionamentos do ministro Flávio Dino sobre transparência nas emendas RP8 e RP9. Foto: Rosinei Coutinho/STF

O cenário global: recessão democrática e novos autoritarismos

O mundo passa por um processo preocupante de retrocesso democrático. Mas ao contrário do que ocorreu em outras épocas, o autoritarismo atual não se instala com tanques nas ruas ou com a suspensão explícita das eleições. O que se vê é o uso estratégico da legalidade para enfraquecer, pouco a pouco, os pilares democráticos.

A democracia está em declínio?

Sim. E não se trata apenas de uma percepção subjetiva. Mais países estão restringindo liberdades do que ampliando. Daniel Ziblatt e Steven Levitsky são categóricos:

“Estamos vivendo uma recessão democrática. A democracia está sendo desmontada por meio das instituições, e não por fora delas”  Daniel Ziblatt e Steven Levitsky

Esse fenômeno pode ser descrito como uma forma de autocratização eleitoral: eleições continuam a ocorrer, mas seu poder de gerar alternância e responsabilização vai se diluindo. Em vez de romper com a aparência democrática, os líderes autoritários modernos preferem manter as formalidades e esvaziar o conteúdo.

Exemplos recentes

 

Hungria: Viktor Orbán reconfigurou o sistema legal e a imprensa para consolidar sua permanência no poder. Ziblatt cita o caso como típico de “autoritarismo competitivo”, em que o governo manipula as regras, mas mantém o verniz democrático

Turquia: o regime de Erdoğan combina eleições com repressão sistemática à oposição. O judiciário é utilizado para punir adversários e jornalistas, e o controle sobre a mídia sufoca o pluralismo.

Estados Unidos: o trumpismo mostrou que mesmo democracias centenárias não estão imunes. Como Ziblatt observa, “Donald Trump não violou regras explícitas, mas testou todos os limites do sistema. Isso é o que o torna perigoso: ele expôs a fragilidade das normas não escritas”.
Ziblatt aponta que o perigo não está apenas nos líderes, mas em partidos que aceitam essa lógica em nome de ganhos eleitorais. Quando partidos democráticos acolhem extremistas ou se recusam a enfrentá-los, pavimentam o caminho para o autoritarismo.

A democracia brasileira

O Brasil não está isolado nesse cenário. Os sinais de erosão democrática descritos por Ziblatt e Levitsky — enfraquecimento institucional, manipulação das regras, uso estratégico da legalidade — também se manifestam por aqui. O processo pode ser mais lento ou sutil, mas segue a mesma lógica: concentrar poder, reduzir a fiscalização e corroer a confiança pública.Ziblatt lembra que o autoritarismo moderno não exige tanques. Basta que os partidos se tornem indiferentes, que a imprensa seja atacada, que o orçamento público seja capturado. “As instituições ainda existem, mas funcionam de forma distorcida”, diz. O risco é que essa distorção se torne rotina e, com o tempo, deixe de causar incômodo.

A democracia não desaparece de uma vez. Ela vai sendo desmontada peça por peça, muitas vezes com aplausos. Quando a sociedade já não se surpreende com o fechamento de espaços participativos, com a compra de apoio político, com o enfraquecimento das regras, é sinal de que algo grave já aconteceu. Como alertam os autores, “democracias não morrem por acidente. Elas morrem quando quem deveria defendê-las escolhe se calar.”

Como as democracias morrem: o papel das elites políticas

Governos autoritários não se impõem sozinhos. Eles contam com a conivência ou omissão de quem já tem poder dentro do sistema. Para os autores de “Como as democracias morrem”, o comportamento das elites políticas é decisivo: elas podem fortalecer os pilares democráticos ou abrir as portas para sua destruição.

Casos emblemáticos

Quando elites se calam ou se alinham ao autoritarismo, a democracia perde sustentação. A história mostra o que acontece quando quem deveria defender as regras prefere ignorá-las.

Alemanha, anos 1930

As elites conservadoras acreditaram que poderiam controlar Adolf Hitler e se beneficiar politicamente. Subestimaram seu projeto autoritário e acabaram entregando o poder total a um regime nazista. Democracias raramente morrem sozinhas. Alguém por dentro precisa puxar o gatilho.

 

 

A ascensão de Adolf Hitler ao poder se deu por meios legais. Ele foi nomeado chanceler pelo presidente Hindenburg no dia 30 de jnaiero de 1933, após o Partido Nazista conquistar ampla popularidade. Foto: Holocaust EncyclopediaA ascensão de Adolf Hitler ao poder se deu por meios legais. Ele foi nomeado chanceler pelo presidente Hindenburg no dia 30 de janeiro de 1933, após o Partido Nazista conquistar ampla popularidade. Foto: Holocaust Encyclopedia

 

Brasil, 2016

impeachment de Dilma Rousseff foi conduzido dentro da legalidade, mas desencadeou um processo de instabilidade institucional. O sistema passou a operar com base em exceções e acomodações oportunistas. Para Ziblatt, contextos assim criam brechas para a deterioração das regras do jogo, principalmente quando o foco deixa de ser o bem público e passa a ser a disputa de poder a qualquer custo.O ponto central: não são apenas os autoritários que colocam a democracia em risco. São também aqueles que, por interesse ou covardia, deixam de barrar esses avanços

“A elite política tem a responsabilidade de isolar quem ataca a democracia. Quando isso não acontece, os danos são profundos e duradouros.” Daniel Ziblatt

O que é democracia e por que você deveria se importar?

Muita gente associa democracia apenas ao ato de votar. Mas, como mostram Levitsky e Ziblatt, essa visão é superficial e perigosa.

Democracia de verdade pressupõe muito mais do que urnas. Ela envolve práticas contínuas que limitam abusos e garantem diversidade de vozes. Entre os principais pilares estão:

  • Capacidade de protestar sem repressão

  • Existência de uma imprensa livre e plural

  • Independência do Judiciário

  • Respeito às regras do jogo, mesmo quando se perde

Ziblatt define democracia como “um ecossistema de normas, instituições e compromissos que freiam o poder e protegem o pluralismo político.” Se uma dessas peças quebrar, todo o sistema vai enfraquecer.

O que você pode fazer?

Você não precisa ser parlamentar, juiz ou jornalista para defender a democracia. Mas precisa estar atento. Democracias dependem da ação — e da indignação — das pessoas comuns.Aqui estão quatro atitudes práticas sugeridas por Ziblatt:

  • Rejeitar líderes que atacam o sistema: não normalize discursos autoritários, mesmo que travestidos de “antissistema”.

  • Exigir transparência de quem ocupa cargo público: cobre prestação de contas, participe de audiências, acompanhe o uso do dinheiro público.

  • Valorizar instituições que funcionam: apoie o trabalho sério de órgãos como o TSE, o STF, tribunais de contas e defensorias públicas.

  • Informar-se por fontes confiáveis: evite cair em desinformação. Cheque, compare, valorize o jornalismo profissional.

“A democracia depende de cidadãos dispostos a defendê-la” 
Daniel Ziblatt e Steven Levitsky


Como as democracias morrem hoje (e o que fazer para não repetir a história)

As democracias morrem devagar. Morrem por dentro. Morrem quando líderes autoritários avançam e ninguém os freia. Morrem quando mentiras ganham força e a verdade vira alvo. Morrem quando cidadãos comuns deixam de se importar.

Daniel Ziblatt mostra que não é preciso um golpe militar para que tudo desmorone. Basta a conivência com abusos de poder, o silêncio diante da violência política e o descaso com a verdade.

A pergunta não é se você vive numa democracia hoje. As perguntas são: você está prestando atenção? Você está disposto a defendê-la?

Porque, se você não estiver, alguém vai decidir por você. 

FONTE:

https://iclnoticias.com.br/conhecimento/como-as-democracias-morrem/ 




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