Como ensinar o antirracismo

Como ensinar o antirracismo

Da família à escola, como ensinar o antirracismo a crianças e adolescentes

Aprendizado deve começar em casa, por iniciativa de mães e pais, antes mesmo da criança chegar à escola

18/11/2022

Lisiane Belloli, mãe de Bruno e Raphael, conta que já notou diferença no tratamento recebido pelos dois filhos

Lisiane Belloli, mãe de Bruno e Raphael, conta que já notou diferença no tratamento recebido
pelos dois filhos.  Lisiane Belloli / Arquivo Pessoal

 

Todos os anos, o dia 20 de novembro tem significado de luta e resistência em razão do Dia da Consciência Negra. Por causa da data, o mês todo costuma ser marcado por iniciativas, eventos e abordagens que falem sobre o racismo. 

O tema pode ser trabalhado de diversas maneiras e depende, também, do contexto em que será introduzido. No caso de crianças e adolescentes, a pauta tem sido cada vez mais presente desde o ambiente familiar, em casa, até a escola e espaços coletivos. No entanto, nem todos esses lugares abordam o assunto com a maneira e frequência que deveriam.

Um exemplo disso é a presença da lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que tornaria obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira em todas as escolas de Ensino Fundamental Médio, tanto públicas quanto privadas. Contudo, passados 19 anos, a lei ainda não foi efetivada. 

A Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) está em um grupo de trabalho chamado 26A que, junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) verifica como (e se) as escolas dos 497 municípios do RS efetivam essa lei. Mas, na maioria dos casos, os planos de ensino incluem a pauta da diversidade racial apenas em datas simbólicas, como o próprio 20 de novembro, ou 13 de maio (Dia da Abolição da Escravatura) sem uma abrangência mais profunda em outros períodos.

— Nós pergutamos aos diretores: há diversidade na sua escola? E a resposta normalmente é que sim, mas no mês de novembro. Ou seja, a lei não é efetivada. Falar sobre negritude e as histórias da população negra não é só em novembro ou maio. Pelo contrário, é preciso conversar em todas as disciplinas. Todo assunto deve incluir a temática racial de alguma maneira — afirma o professor Wagner Machado, doutorando em comunicação na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) que participa do grupo de trabalho.

A carência de ensino antirracista e da cultura afrobrasileira em escolas é sentida não só nas instituições públicas, mas também nas privadas do RS. A professora de educação básica Jéssica Val atua em duas escolas privadas de Porto Alegre. Para ela, a ausência do conteúdo reflete a a falta de pessoas negras no topo das decisões.

— Não vejo como possibilidade viável aplicarmos essa lei de forma adequada enquanto quem administra toda a dinâmica são somente pessoas brancas — aponta a professora.

A realidade não é diferente quando se fala de quem ocupa as carteiras nas salas de aula. Segundo Jéssica, o ideal seria que houvessem abordagens específicas para alunos negros, vítimas de racismo, e para alunos brancos, para que não cometam atos preconceituosos. Porém, professores acabam tendo que falar a todos de uma vez só, sendo a maior parte dos alunos brancos. Dessa forma, não é possível aprofundar a pauta antirracista:

Uma criança me perguntou: "é moreno?". Então, perguntei o que significava alguém moreno. Ela respondeu que seria alguém como eu. Logo, ensinei que eu não era morena, mas preta, e que ela poderia falar assim. Depois, falamos sobre como se referir ao cabelo, e assim por diante.
PAMELA DUTRA - Psicóloga e psicopedagoga

— A alternativa que resta é trazer vivências em que teremos um comportamento antirracista e corrigi-las. Por exemplo, se estamos falando sobre religiões de matriz africana e um aluno faz uma piada, a gente procura dar uma orientação, ensinar que aquilo é errado e apresentar e ele aquela realidade. Só que o preço disso para mim é um desgaste tremendo e gatilhos como pessoa preta que já passou por momentos assim.

Ensino por meio da arte

Se por um lado a explicação teórica pode ser mais dura a quem ocupa o lugar de fala é de difícil compreensão para crianças e adolescentes, iniciativas surgem com apoio em um caráter mais lúdico para trabalhar o tema. As ideias costumam utilizar o imaginário infantil como estratégia para facilitar o entendimento dos pequenos. 

Uma dessas ações é o Sarau Sopapo Poético, um encontro de arte negra que reúne artistas negros e apresenta obras e espetáculos para as crianças. O sarau é organizado pela Associação Negra de Cultura e reúne inúmeras expressões como poesia, pintura, contação de histórias, música, teatro e dança.

— São histórias e exemplos que trazem a identidade que crianças negras muitas vezes não encontram em outros ambientes. É um momento de dar voz e empoderamento para elas se expressarem. Buscamos mostrar histórias escritas por autores(as) negros(as). Eles(as) precisam estar presentes pra que a própria criança enxergue essa representatividade — afirma Silvia Regina Ramão, psicóloga clínica e social e integrante da associação. 

Tenham livros e os leiam para suas crianças. Busquem matérias, reportagens. Mostrem a elas o que aconteceu no passado e questionem se isso é correto. Pergunta o que podemos fazer em relação a isso ou como melhorar.
LISIANE BELLOLI - Psicopedagoga

De mãe para mãe

Não só as crianças agradecem quando recebem um espaço de representatividade, mas as mães da mesma maneira. Pensando nisso surgiu, há cerca de quatro anos, o grupo Mães Pretas.

Atualmente, o coletivo reúne em torno de 70 mães negras que trocam ideias e compartilham vivências sobre o desafio de criar os filhos e filhas em uma sociedade onde o racismo ainda está presente. A professora Jéssica Val é uma das integrantes da iniciativa. 

— O principal propósito é o convívio, o poder de fala, a troca de ideias e o aprendizado com as experiências que se apresentam. Somos mães pretas falando sob o viés vivencial, sobre o que significa a maternidade negra — explica.

Além de um perfil no Instagram que reúne relatos, reflexões e dicas, o Mães Pretas tem um grupo de mensagens no WhatsApp onde as 70 mães têm espaço para se manifestar e conversar sobre a educação dos filhos. 

Ensinar desde cedo

Antes mesmo de chegar o momento de ir para a escola, o aprendizado sobre questões raciais começa em casa, por meio dos ensinamentos de mães e pais. De acordo com a psicóloga e psicopedagoga Pamela Dutra, essas práticas precisam ser adotadas de uma maneira empática e acolhedora e que sejam conduzidas conforme a faixa etária. 

Pamela é negra e lembra que frequentemente outras famílias pretas a procuram para que ela possa ser uma referência à criança. Para ela, é importante que os responsáveis estejam preparados até mesmo antes do nascimento do bebê.

— Na preparação de ser pai e mãe, é interessante buscar informações e entender sobre a luta antirracista, conhecer a história, até porque as primeiras aprendizagens da criança serão dentro do ambiente familiar. Então, é importante que a família proporcione momentos de debate e demonstre exemplos positivos — orienta a psicóloga. 

Pamela ainda explica que a didática e empatia devem ser utilizadas para ensinar o antirracismo de forma leve e afetuosa com as crianças.

— Uma criança me perguntou: "é moreno?". Então, perguntei o que significava alguém moreno. Ela respondeu que seria alguém como eu. Logo, ensinei que eu não era morena, mas preta, e que ela poderia falar assim. Depois, falamos sobre como se referir ao cabelo, e assim por diante — recorda. 

Lisiane Belloli / Arquivo Pessoal

Lisiane com o marido, Rafael, e os filhos Bruno e Raphinha.
Lisiane Belloli / Arquivo Pessoal

Lisiane Belloli também é psicopedagoga e também é negra. Ela é casada com um homem branco e tiveram dois filhos, um de cada cor. Com o passar do tempo, ela recorda que começou a perceber diferenças de tratamento das pessoas em relação a Bruno e Raphael (conhecido como Raphinha, atacante convocado para jogar pela Seleção na Copa do Mundo). Foi quando decidiu que precisava entender mais sobre o tema para repassar isso aos filhos

Para Lisiane, existem, hoje, inúmeros recursos que podem ser utilizados para levar às crianças o ensino antirracista, mas é preciso tomar iniciativa:

— Tenham livros e os leiam para suas crianças. Busquem matérias, reportagens. Mostrem a elas o que aconteceu no passado e questionem se isso é correto. Pergunta o que podemos fazer em relação a isso ou como melhorar.

https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2022/11/da-familia-a-escola-como-ensinar-o-antirracismo-a-criancas-e-adolescentes-clan6f92800ad0170x8q4gp7v.html 

 

 

Educação antirracista vira disciplina em escolas de Caxias e destaca protagonismo negro em aula

Ações são coordenadas por núcleo criado pela Secretaria Municipal de Educação e levam música, arte e literatura da cultura negra para a rotina de 42 mil estudantes da rede pública

18/11/2022   LEONARDO PORTELLA

 

Alunos são os responsáveis pela preparação dos painéis que serão expostos na escola

Alunos são os responsáveis pela preparação dos painéis que serão expostos na escola
Juliano Gambini / RBS TV

 

O combate ao racismo e à intolerância se tornou uma disciplina obrigatória no currículo escolar dos cerca de 42 mil estudantes matriculados na rede pública municipal de Caxias do Sul. O que antes era trabalhado em sala de aula apenas em determinados períodos do ano, como no Dia Nacional da Consciência Negra, lembrado neste domingo (20), agora é discutido durante o ano inteiro, em todas as áreas do conhecimento, fazendo com que uma educação antirracista apresente resultados práticos para além das escolas. 

A temática é coordenada pelo núcleo permanente Qualificar a Educação para as Relações Étnico-Raciais (QuERER), da Secretaria Municipal da Educação (Smed), que tem a missão de promover, orientar e monitorar as atividades de combate ao racismo e de valorização da cultura e do protagonismo negro nas escolas de ensino fundamental e infantil da cidade. 

Na prática, o grupo multidisciplinar organiza atividades e assessora projetos a serem desenvolvidos em todas as instituições, permitindo que professores e coordenadores pedagógicos sejam capacitados para realizarem as ações em sala de aula. 

Segundo a professora e assessora pedagógica do QuERER, Joelma Couto Rosa, o núcleo busca ser um apoio aos docentes em sala de aula. 

— É fazer com que os professores vençam essa dificuldade, esse medo muitas vezes de falar de racismo. Para que seja falado de uma forma natural, através da literatura, de curtas, de filmes, dos materiais pedagógicos que hoje em dia temos muitos. A gente sugere, faz formações para que os professores se sintam à vontade para trabalhar essas questões com os estudantes e com as crianças desde a educação infantil— explica. 

Juliano Gambini / RBS TV
Joelma é uma das assessora pedagógicas do núcleo e acompanha as atividades realizadas nas escolas. Juliano Gambini / RBS TV

Mais do que uma iniciativa recente, a criação do núcleo é percebida como uma política pública permanente e não como um projeto, onde a finalidade é que a cultura antirracista seja continuada nas instituições. 

De acordo com último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),  82% da população caxiense se declarou como branca, 13% parda, 3% negra, 0,41% amarela e 0,11% indígena.  

— A escola é uma porta para se trabalhar para uma sociedade melhor, uma sociedade  antirracista de fato. E ser antirracista não é fácil, é um movimento constante. A gente precisa estar sempre se reeducando. Às vezes é uma palavra, uma expressão, é um olhar e é isso que a gente tem que trabalhar com as crianças e com certeza reverbera nas famílias, na sociedade como um todo — afirma Joelma. 

Juliano Gambini / RBS TV
Jesse é um dos integrantes do coletivo e percebe que o projeto tem ajudado outras pessoas a não repetirem práticas racistas. Juliano Gambini / RBS TV


Escola cria coletivo de estudantes e professores e destaca protagonismo negro

Os corredores da Escola Municipal de Ensino Fundamental Prefeito Luciano Corsetti, no bairro Kayser, em Caxias do Sul, será tomado por rostos negros. Os estudantes de 8º e 9º anos escolheram dez personalidades  afrodescendentes da política, da cultura e religiosa - nomes como Martin Luther King, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. 

As imagens serão acompanhadas de pinturas feitas pelos alunos na estética do afrofuturismo, um conceito que projeta um futuro do ponto de vista da comunidade negra e bastante explorado em filmes. 

Além da imagem, o currículo de cada um. O objetivo é que a informação e o conhecimento ajudem a mostrar a importância do negro para a sociedade. 

Juliano Gambini / RBS TV
Painéis com personalidades negras acompanhada de pintura da estética afrofuturista busca aproximar figuras importantes da história ao dia a dia dos estudantes.
Juliano Gambini / RBS TV


Essa é uma das atividades realizadas na instituição, considerada uma das maiores da cidade. Desde o início do ano, professores e alunos participam de um coletivo, que se reúne para debater ações e promover iniciativas que visam reduzir o preconceito e destacar a cultura  de autores afrodescendentes. 

— Quanto mais os alunos se identificam nas aulas, mais eles aprendem. Quanto mais autores das mais diversas etnias e raças são incorporados nas aulas de todos os componentes, mais os alunos se identificam — explica o professor e coordenador da escola, Ramon Tissot. 

O coletivo tem a liderança do estudante Jésse Ribeiro Britto, uma voz que se destaca em meio aos colegas. Para ele, discutir o racismo em sala de aula ajuda a reduzir o preconceito e evitar práticas do senso comum, 

— É importante inserir a cultura (negra) para as pessoas aprenderem e não saírem falando qualquer coisa, né, porque tem certas brincadeiras que, falas assim, do dia a dia, que tu nem percebe — afirma. 

Para a estudante Ana Carolina Marchet, o racismo e outras formas de discriminação são possíveis de se combater com uma ferramenta. 

— O preconceito é a falta de informação que nós temos isso por não pesquisar, não estudar e por não se colocar no lugar dessas pessoas — ensina.  

Juliano Gambini / RBS TV
Apresentação criada na escola e que será exibida durante a Semana da Consciência Negra em Caxias do Sul. Juliano Gambini / RBS TV
 

Músicas e instrumentos afro-brasileiros ganham espaço na sala de aula

Os sons do surdo, bumbo, chocalho e as vozes que declamam poemas de autores negros se destacam nas aulas de música de alunos do 7º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Engenheiro Mansueto Serafini, no bairro Pôr do Sol. A única instituição de ensino integral da rede municipal de Caxias do Sul possui um grupo de música, formado pelos estudantes, que agora se apresenta mostrando para a cidade a cultura africana.  

Os estudantes utilizam composições de Clementina de Jesus e do poeta Oliveira Silveira. O ritmo que embala a apresentação é o coco, difundido no Nordeste, que traz o recorte da cultura negra ao passo em que também preserva uma matriz indígena. Os jovens se apresentam na próxima terça-feira (22), 14h, na Praça Dante Alighieri, durante a Semana da Consciência Negra. 

— No momento que a gente valoriza essa manifestação e demonstra e apresenta para eles como uma manifestação do povo negro ela automaticamente já é uma ação antirracista  —  explica o professor de Música, Dinarte Paz. 

Juliano Gambini / RBS TV
"Tem sido legal fazer esse trabalho com os amigos sobre o racismo, conscientizando os alunos a não fazerem na escola e aos alunos negros de criarem coragem e se manifestarem", diz Bryan.   Juliano Gambini / RBS TV
 

Para os estudantes, iniciativas como essa ampliam o conhecimento e dão mais voz aos negros, como Bryan de Araújo.

— Tem sido legal fazer esse trabalho com os amigos sobre o racismo, conscientizando os alunos a não fazerem na escola e aos alunos negros de criarem coragem e se manifestarem — afirma o jovem. 

Juliano Gambini / RBS TV
"A gente é a nova geração, temos que evoluir os nossos pensamentos, abrir a nossa mente", ensina Agatha. Juliano Gambini / RBS TV
 

—A gente é a nova geração, temos que evoluir os nossos pensamentos, abrir a nossa mente. A gente tem que pensar fora da caixa, mostrar para o mundo que isso é errado e isso é falta de conhecimento sobre aquilo — explica a também estudante Agatha da Silva. 

Os mesmos estudantes produziram uma revista digital elaborada anteriormente, ainda neste ano letivo, pelos estudantes de 6º e 7º anos, dentro da disciplina de Língua Portuguesa, abordando as questões de bullying e racismo. 

— Aconteceu um caso de racismo entre duas turmas com a chegada de um estudante novo na escola e eu aproveitei para trabalhar essa questão. Pensei por que esperar a semana da consciência negra se é um tema que a gente tem que trabalhar o ano todo — explica a professora de Língua Portuguesa, Manuela Matté, responsável pela organização do textos produzidos pelos jovens. 

Juliano Gambini / RBS TV
Alunos exercitaram a escrita por meio da produção de uma revista digital.
Juliano Gambini / RBS TV

 

Atividades realizadas o ano todo e que ganham mais visibilidade nesta época do ano. 

—  O que mais nos enche de alegria é ver os estudantes, os estudantes negros se empoderando, falando com alegria de quem eles são, das suas origens. Sem vergonha de mostrar quem eles são, sem vergonha de se autodeclarem negros, de se autodeclarem pretos, pardos. Ver essa gurizada mobilizada, mostrando a cultura negra, a cultura dos povos originários. Isso é demais — afirma Joelma Couto Rosa, assessora pedagógica do núcleo QuERER. 

 

https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/geral/noticia/2022/11/educacao-antirracista-vira-disciplina-em-escolas-de-caxias-e-destaca-protagonismo-negro-em-aula-clamqkxyw002b014ulexkpyfb.html 

 




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